Nossa Saga
O termo saga significa narrativas históricas e lendárias, mescladas com fatos verídicos, imaginários e folclóricos, que contam os feitos heróicos de um povo. Não tendo vindo da Finlândia e Escandinávia, nem sendo falsa, inventada com a palavra alada na prosa poética de Guimarães Rosa, a saga da civilização cacaueira na Bahia é muito especial e importante. Forjada no espaço ocupado por uma geografia elementar, a saga do homem do cacau no Sul da Bahia foi implantada com suor e sangue, cobiça e morte. No enfrentamento da natureza bárbara estabeleceu-se um modo singular de vida ao longo dos anos.
O homem do cacau não mandou, ele mesmo foi com o facão na bainha, o machado na mão, o de-comer no embornal, para recuar a selva hostil e impenetrável. Derrubar, derrubar, derruba. Plantar , plantar, plantar. Nas vestes simples carregou sombras e sortilégios, deu voo à razão, alimentou o coração com uma vontade de ferro para conquistar a terra, que lhe acenava e atraía com suas léguas cobertas pela mata virgem.
Mal surgia a manhã, esse homem levantava na solidão de seus confins, de tal sorte era o destamanho da terra que um não sabia se o outro existia. Conversava com os rios quando ia se banhar perto de clarear o dia. Contas, Pardo, Jequitinhonha, Almada, Salgado, Aliança, Cachoeira, os amigos que lá estavam com uma música líquida cheia de vozes cantantes para ressoar nos seus ouvidos.
Essa era a sua morada improvisada na infância da selva. O homem do cacau esteve no baile da caipora, levou mel, fumo de corda, cachaça, farinha, pólvora. Encontrou no mato escuro a prata derramada pela madrinha lua. Escutou acauã nas manhãs e tardes prenunciando chuva ou estiagem. Dormiu com o boitatá no galho da jaqueira. Sonhou que era macaco, chupando amêndoas doces que valiam muito dinheiro. Os caroços chupados eram jogados com os dentes na terra virgem. As sementes brotavam e viravam, daí a três, quatro, cinco anos, roças cheias das árvores dos frutos que tinham a cor de ouro quando amadureciam.
A força, a alma e a vida do cacau ergueram vilarejos e cidades, enquanto o relógio do sol resvalava-se nos cacaueiros entre o brotar dos verdes e a queda dos maduros. O rigor do tempo que comandava os passos do homem, de sol a sol, tinha as estações temperadas com a chuva, que tocava piano quando caía grossa nas folhas secas cobrindo o chão da mata.
O homem do cacau adubou a terra com a carne dos dedos, molhou-a com o suor do rosto, teve o primeiro jardim no cacaueiro florido. Sorriu com a bela surpresa que um dia fez seus olhos ter um brilho vivo, o rosto com tanto riso que ele não se agüentou em pé, de tanto que ficou contente. Criou uma folhinha tão dele para marcar os dias nos talhos da jaqueira. Comeu jaca no café com rapadura, assou e mastigou bicho do ar e do chão, na noite escura foi iluminado a candeeiro. Guardou debaixo da cama de vara a criação do terreiro,
Esse homem dormiu ouvindo a orquestra fantasmal dos sapos que coaxavam lá fora no brejo. Soube do rastejo da noite escura, o bote da tocaia nas serras e baixadas. O estampido na curva da estrada, os cacaueiros inventando ciladas na trama da ambição desmedida. Matou, morreu, sujou-se de sangue. Renasceu como um mato qualquer. Nas carnes profundas da terra com avidez instalou seu reino. Teve nessa hora tensa, entre o épico e o dramático, a barba por fazer, o visgo nas mãos, o cipó nos pés, as unhas de gavião crescidas, a pele grossa como casca de madeira velha.
Ébrio de frescor silvestre, de repente se viu nas cidades que criou com umas mãos rudes e persistentes, amamentando-se com o tempo desalmado de todos os dias. Esperou, esquecido, a vida inteira. Colheu a vida inteira. Quebrou, transportou a vida inteira. Pisoteou a vida inteira, respirou todo o ar do deserto. Na trama dos acontecimentos, cuja música era tocada pela orquestra do destino, viu seu território pulsar e crescer, superar a marca de cem municípios, movimentar-se na energia de uma população com mais de um milhão de habitantes. Os ventos trouxeram a benesse das safras, o mel para alguns, o fel para muitos. Custa a acreditar que, depois do auge das ricas plantações do cacau no passado, viva hoje em clima de melancolia, sem entender a razão de estar sitiado de ocasos. Se a terra tremia antes com o nome daquele que era um dono abastado de roça de cacau, hoje somente ele e a tristeza, nada mais.
Esse homem que veio de longe, muito longe, cheio de sonhos, para conquistar a terra e ficar rico da noite para o dia, com orgulho dizia ao chegar ao Sul da Bahia :
- Cheguei para ser um próspero dono de roça de cacau.
E, tendo a certeza da guerra vencida, finalizava sem hesitar:
- Deixei mãe quando menino.
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