Emoções
do Trem
Cyro de Mattos
O trem
fagulhava, atritava, resfolegava. Soltava fumaça que o vento levava e se
perdia no verde da várzea. O trem alegrava a moça que ficava na
janela, recebia adeuses das pessoas que estavam no terreiro quando passava
apitando. Dentro do trem havia coisas que cheiravam a mato. Havia também choro
de criança e aquela conversa tola, falando das coisas corriqueiras da vida,
entre alguns passageiros que calçavam alpercata para aliviarem os calos dos pés
que andavam bastante em grandes distâncias. Eram pessoas que fumavam seu
cigarrinho de palha na tarde de verão enquanto o trem resfolegava quando
contornava a serra.
Desde aquele
dia em que o amigo Babinha perdeu a perna quando foi saltar do trem em
movimento, decidi esquecer para sempre aquela máquina terrível com sua voz
barulhenta, que infundia agora medo
quando chegava à cidade. Tornou-se uma coisa pavorosa com suas rodas de ferro,
atritando nos trilhos, triturando nos ferros. Era um bicho estúpido quando
partia, apitando e soltando fumaça.
Quando o trem apitava, lembrava-me
do amigo Babinha, o goleador do time de futebol da Rua do Quartel Velho onde eu
morava. Babinha era um pretinho esperto, ligeiro com a bola
nos pés, não havia quem o marcasse. Tinha dribles inacreditáveis, deixavam
sempre o marcador batido no chão. Os jogadores de defesa do outro time tremiam
quando viam que ele ia jogar. Quantas vezes ele impedira a derrota do time da
Rua do Quartel Velho quando parecia impossível de ser evitada, já tinha perdido
a conta. Com ele, um goleador incrível, a vitória era certa quando o time da
Rua do Quartel Velho jogava contra o time da Rua de Cima.
As partidas de futebol com o time da Rua de Cima eram realizadas no
campinho improvisado de um terreno
baldio, na Rua da Linha, que era assim
chamada porque por ali passava o trem quando vinha da cidade vizinha. No
litoral. Babinha comprava cordas de caranguejo, caju e coco da
praia na cidade vizinha. Trazia a mercadoria no trem para vender em Itabuna.
Dessa maneira ajudava aos pais na luta pela sobrevivência. A mãe era lavadeira,
o pai fazia carvão, que vendia num cômodo da pequena casa, situada na única
avenida que existia naquele quarteirão da Rua do Quartel Velho.
Daquela vez em que o trem vinha
cheio de gente, Babinha também estava
entre os passageiros. Tinha ido à cidade vizinha comprar cordas de caju para
vender na feira. Avistou pela janela do primeiro vagão o time da Rua do Quartel
Velho jogando uma partida contra o time da Rua de Cima, no campinho da Rua da
Linha, perto de um brejo. Não pode controlar a vontade, logo quis participar
também do jogo, entre os dois times de meninos com mais rivalidade na cidade.
Disputavam outra vez uma partida
acirrada. Babinha tentou saltar do trem
em movimento, mas escorregou e por sorte não ficou debaixo das rodas. Os
meninos saíram correndo quando ouviram aqueles gritos do amigo, assim que o
trem havia acabado de passar por cima de
uma das pernas dele..
Parecia um saci agora, só com
uma perna participava das peladas no
campinho da Rua da Linha. Dava pena vê-lo correr apoiado na muleta e não
conseguir alcançar a bola uma só vez.
Tentando aliviar minha tristeza, a
mãe disse-me que o tempo se encarregava de fechar as feridas, sepultando as
coisas amargas na medida em que os dias
vão passando. O tempo era o melhor remédio para curar as dores, explicara a mãe
com a sua voz mansa. Transcorridos dois anos do acidente com Babinha, resolvi
ir comprar guloseimas na estação do trem: amendoim torrado, bolinho de arroz
doce, sonho, cocada, quebra-queixo, roletes de cana, sem esquecer o mingau de
tapioca, que Vovó Maria Conga, uma preta vestida de baiana, vendia na
plataforma.
Foi quando de repente escutei vozes
e ruídos que se propagavam pela plataforma. Era sábado. O trem havia acabado de chegar de uma das
cidades vizinhas. Os passageiros faziam algazarra no desembarque como acontecia
sempre. No meu peito, a tarde brilhava as cores do verão. Numa sensação difícil
de explicar, pulsaram dentro de mim naquele instante sentimentos de uma paisagem que me era íntima. Dava-me um prazer na boca como
uma coisa que tem um sabor especial, que eu
pensava ter esquecido.
Era aquela mesma paisagem que o
trem costumava mostrar-me durante as
viagens, ou através daquelas cenas que os passageiros faziam quando partiam ou
chegavam. Cenas formadas com adeuses, abraços e beijos. Naquele dia, o trem
voltou a aparecer em meu sonho com seus
ventos generosos. Mostrou-me pela
janela uma paisagem quente e pura enquanto subia e descia pelos campos verdes
do meu pequeno coração.
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