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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016



          ADEUS À MAIOR POETA DO BRASIL
                      
                       RUY ESPINHEIRA FILHO
        
            “Estão mortas as mãos daquela dona”. Foi com este verso, como marcação recorrente, que o poeta Augusto Frederico Schmidt falou da morte da maior poeta do Brasil, Cecília Meireles, em 1964. Lamento não ter guardado aquela crônica, tão bela e que tanto me comoveu. Mas me ficou na memória a repetição, a cada abertura de parágrafo, do belíssimo verso de Alphonsus de Guimaraens: “Estão mortas as mãos daquela dona.”
         Sim, penso agora na crônica e neste verso: “Estão mortas as mãos daquela dona”. E foi de imediato, quando me deram a notícia da morte de outra grande voz da poesia – Myriam Fraga. A meu ver, sem favor nenhum, a mulher que melhor escreveu poesia em nosso país, depois da grande Cecília. Isto fiz questão de frisar nas duas rápidas entrevistas que dei por telefone: trata-se da maior poeta do Brasil. Uma das entrevistadoras disse que as pessoas se referiam à dedicação de Myriam à cultura – e eu lhe respondi: sim, todo mundo sabe disso, da imensa dedicação de Myriam Fraga à cultura, especialmente à frente da Fundação Casa de Jorge Amado, mas é preciso que se diga algo muito mais importante: foi a maior poeta do Brasil nas últimas décadas.
         Sempre que se falava em grandes poetas eu não deixava de observar que Myriam era a melhor entre as mulheres e no nível do melhor que escreviam os homens. Sei que há muitos outros poetas, mulheres e homens, mais conhecidos, mas aí é outra coisa, não tem nada a ver com qualidade. São mais conhecidos porque agradam a certos professores, que os indicam para leituras nas escolas e universidades, acabando por formar leitores menos exigentes. Fui professor universitário de literatura durante quinze anos, sei de quantos equívocos são capazes os nossos mestres e doutores. O que é compreensível, pois ler bem é um talento especial que muitos não possuem, mesmo arrotando toda a erudição do mundo. Afinal, a literatura é uma arte – e exige uma sensibilidade sem a qual os tais equívocos acabam dominando tudo.
         No caso de Myriam Fraga, outro problema: era nordestina e morava no nordeste, o que a tornava duas vezes discriminada. E problema maior por ser da Bahia, já há tempos culturalmente um dos piores estados do nordeste. Em outros lugares continuam existindo suplementos de letras e artes, crítica, publicações, debates de alto nível – enquanto por aqui tudo é reservado ao que há de pior, inclusive com participação ativa e festiva dos poderes públicos. Foi ruim, primário, grosseiro, vulgar, estúpido – ótimo, está aqui um gordo financiamento. E assim vamos nós – não mais descendo, mas rolando ladeira abaixo, no rumo de um poço sem fundo.
         Além da grande artista, a grande figura humana. Comecei a conviver com Myriam lá pelos anos 70. Cheguei a frequentar-lhe a bela casa, na Graça, quando fazia reuniões com gente como Jorge Amado, James Amado, Jayro Simões, Florisvaldo Mattos, por exemplo. E lá ficávamos nós, entre um uísque e outro, sonhando projetos literários. E depois trabalhamos juntos, quando ela dirigia o Departamento de Literatura da Fundação Cultural do Estado. Eu apenas colaborador, ao lado de nomes importantes como Guido Guerra, Carlos Anísio Melhor, Florisvaldo Mattos, Carlos Cunha, José Carlos Capinan, sob o incansável comando de Myriam, realizando eventos e até publicando coleção de livros de jovens autores baianos.
         Myriam Fraga era a cultura, o talento, a amizade, a generosidade. Tantas virtudes em uma só pessoa é coisa muito rara – e ela as possuía de maneira vigorosa e cintilante. Sinto-me honrado por ter sido seu contemporâneo. E sinto muita, muita pena da Bahia e do Brasil, mais pobres, muito mais pobres, agora que estão mortas as mãos daquela dona.  
                                                                                 


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