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segunda-feira, 8 de agosto de 2022

 

             Cyro de Mattos e Jorge Amado: um encontro grapiúna*

                  Por Nelson Cerqueira

 

É um encanto o encontro temático que Cyro de Mattos realiza com Jorge Amado ao apresentar em seu livro de ensaios um rico conjunto de saberes sobre a obra do famoso romancista baiano. Nas leituras de romances e de outros aspectos importantes, o ensaísta aborda primeiro a infância do romancista quando era ainda um menino grapiúna, na época da conquista da terra. Incursiona depois   sobre o universo do cacau, prossegue com os comentários sobre o fazer literário, no qual contempla estudos sobre os temas, personagens, invenções com base na realidade popular, enfim, em tudo que da narrativa prazerosa possa expressar uma forma de biografia da vida no ato da escrita.

 

No aspecto construtivo do uso do saber da vida transposto para o plano do fazer literário, o ensaísta dá-nos uma visão humanista da criação e da vida existencial do célebre escritor.  Suas leituras assim sobre o legado amadiano facilitam o entendimento de uma obra de valor inconfundível para os novos e velhos leitores. Estão tão bem urdidas acerca do comportamento feito de saberes na escrita sensual e no imaginário do romancista que bem poderia esse livro de ensaios funcionar como um manual literário para alunos da escola secundária, das faculdades de letras e até mesmo para estudiosos que se disponham a rever e refazer conceitos assumidos e propalados. 

 

Sem falar na contribuição que poderia prestar a muitos segmentos da crítica formalista que impera no meios acadêmicos e universitários, nas mentes tradicionais às vezes tendenciosas, através de interpretações engajadas, padrões de dominância analítica  municiadas pelos preconceitos, situados esses no discurso crítico conforme concebe Hans Georg Gadamer, em Wahrheit und Methode, e até mesmo Francis Bacon, em seu Novum Organum, quando nos alerta para os ídolos cultivados na escuridão, nas imagens pelas quais se pode ficar aprisionado, sem ver a claridade dos seres e coisas nem vislumbrar uma face da verdade.

 

As narrativas de juventude, junto com o universo do cacau, pela primeira vez aparecendo na obra de Jorge uma incursão romanesca em Itabuna, se constituem em capítulos capilares para a hermenêutica de romances como Cacau, Terras do Sem Fim, Gabriela, Cravo e Canela, São Jorge dos Ilhéus, A Descoberta da América pelos Turcos e Tocaia Grande. Os saberes são apresentados aqui pelo ensaísta de forma erudita, referidos em crítica textual eclética, na qual são selecionadas personagens como testemunhas reais e fictícias, de acordo com o que se encaixa melhor para o resultado desejado no estudo. Nenhum personagem ou momento existencial descrito recebe favorecimento teórico, ao invés disso o ensaísta sempre vai descrevendo e provocando a reflexão do leitor, auxiliando-o na fixação de sua opinião, para assim ir mostrando o texto impregnado de lucidez interpretativa com os elementos extrínsecos e intrínsecos necessários à elucidação da escritura em conexão com a vida, tanto na forma quanto no conteúdo para conseguir o efeito. 

 

Parece que Cyro está abraçado com o melhor da crítica do século XIX quando se escrevia sem viés de preferência diante de um manuscrito, com uma disposição poética e alexandrina que impressionavam. Conscientemente usa elementos de muitas teorias literárias e filosofias da interpretação da obra e assim permite que as ideias se interconectem com a fatura romanesca de Amado, com sua existência, seu conhecimento abundante dos seres e das coisas, valores, razões, pensamento mágico e lógico, linguagens literárias e populares. Os saberes são apresentados, passo a passo, como numa atitude rosácea, conduzida por uma variedade de estilos, que nos lembram a lição de Hume quando observa que não existe um único caminho para se chegar à beleza, e pode ser, por isso mesmo, o que Cyro preferiu nesse modelo de práxis literária com diversos prismas para comentar os saberes de Jorge. O ensaísta debruça-se principalmente sobre fontes primárias do saber e do fazer, ao mesmo tempo que cobre o espaço de uma cultura mestiça do povo baiano com a variedade de ângulos que elaborou com felizes descobertas e achados importantes no correr do estudo.

 

O capítulo analisando Capitães da Areia está tão bem urdido que me trouxe de volta a análise que fiz das apropriações de Amado do universo medieval, a narrativa centrada em Pedro Bala, louro com sua cicatriz vermelha, a liderar o grupo, fugindo da tentativa bastarda de transformá-lo em negro, para atender a supostos preceitos do politicamente correto, tão em voga nesses dias de desvario em que se deseja até queimar todo o acervo de Monteiro Lobato. O enfoque desse romance de aspirações sociais mostra como nesses pobres meninos abandonados na areia acontecem mazelas, que são as de hoje, e que já existiam na década de 30, mas ainda recalcitrantes quase cem anos depois, no novo século.

 

Em certo momento da leitura que fiz preferi também ficar com o ângulo idealizado de Amado no que diz respeito à imagem de personagens com a dimensão dos contrastes raciais, dentro das discussões da época, lideradas por Gilberto Freire em sua tese de estudos multirracial, escrita sob a orientação de Franz Boas, vinculada a uma época em que se buscava novas ideias sobre raças para dar uma resposta ao crescente arianismo defendido por Adolf Hitler.

 

As narrativas de pesquisas e memórias, contidas nesses saberes de Jorge Amado, abordando a cidade da Bahia assentada numa cultura popular mestiça e sua preferência pela vida urbana, com feitiçarias e heróis míticos como os de Os Pastores da Noite e Tenda dos Milagres, assim como os ensaios sobre as mulheres heroínas e guerreiras com suas imagens impregnadas de ousadia e coragem,  são todas elas excelentes leituras para compreender a dimensão do ficcionista e seu compromisso com as questões sociais, lutas de classe e escárnio à burguesia dominante.

 

É magnífica a interpretação do ensaísta sobre a realidade da vida popular  no romance de Jorge Amado, como um dos saberes configurado na expressão mística, fantástica, mágica, socialista, enfatizado em Tenda dos Milagres, Os Pastores da Noite, O Sumiço da Santa e Dona Flor, mas que navega em toda a narrativa do romancista, desde País do Carnaval, a englobar, até mesmo, seu relato de caráter autobiográfico, onde existência e imaginação se misturam como vinho e água durante certa navegação de cabotagem.

 

O ensaísta Cyro de Mattos teve a iluminação para tratar de todas as variações de realismos e estilos literários usados por Jorge Amado de uma forma poética e grapiúna, dialogando com os pés na terra, viajando por toda complexificação do flutuar de teorias, usando aqui a ali alguma fonte teórica, mas mantendo em suas leituras dos saberes a base maior para o entendimento do autor: sua fortuna crítica literária. Do ponto de vista crítico é marcante como esse conjunto de ensaios ou crônicas teorizantes sobre o amado escritor baiano adote como pano de pesquisa as obras do romancista e uma dose de referências a muitas ações conjuntas, de amizade, advindas das relações sociais, vivências e convivência no mundo grapiúna, no universo pré-místico do cacau, e que também inclui nelas a religiosidade trazida pelos descendentes de africanos, sobretudo a religião dos orixás, ijexá e dos Bantus de Angola e sul da África.

 

Os capítulos sobre o criador de personagens, o prosador e o poeta, não podem deixar de ser apreciados com cuidado, em razão de sua riqueza de detalhes.

 

Resulta esse livro de um conjunto de ensaios que produzem uma análise clara e imprescindível para o conhecimento da obra de Jorge Amado. O ensaísta Cyro distribui também farto conhecimento sobre os personagens masculinos e femininos. Aponta como ocorre a fusão entre engenho e arte para traçar o modo de construção desses protagonistas, tanto no romancista estudado como em outros da grandeza de Machado de Assis e Graciliano Ramos. Tem razão quando pergunta como esquecer Baleia, de Graciliano Ramos, Moby Dick, de Melville, Dona Flor ou Pedro Archanjo, do autor de Tenda dos Milagres, personagens que ocupam lugar de destaque na galeria das fascinantes criações de todos os tempos, eternizadas como referências obrigatórias na literatura ocidental.

 

Por fim, lembremos que Jorge Amado rompeu com o partido comunista, mas permaneceu, em toda sua dimensão de construção narrativa, ligado às verdades essenciais de um sistema organizado com feição igualitária. Podemos ver isso na delimitação de personagens, dentro da estética com mensagens de teor libertário conduzido para um mundo melhor. Escreveu neste sentido a fábula infantil O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, tão bem lembrada por Cyro em um de seus lúcidos ensaios. 

*Grapiúna é assim chamado o pioneiro ou o que nasceu no tempo da conquista da terra.  Ao longo dos anos, o termo passou a significar aos que se identificam com as tradições e valores de uma civilização criada com bases na lavra do cacau, no sul da Bahia.   

**Nelson Cerqueira é escritor, tradutor, poeta, professor doutor em Letras.

 

 

 

 

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