Cyro de Mattos e Jorge Amado: um encontro grapiúna*
Por
Nelson Cerqueira
É um encanto o encontro temático que Cyro de Mattos realiza
com Jorge Amado ao apresentar em seu livro de ensaios um rico conjunto de
saberes sobre a obra do famoso romancista baiano. Nas leituras de romances e de
outros aspectos importantes, o ensaísta aborda primeiro a infância do
romancista quando era ainda um menino grapiúna, na época da conquista da terra.
Incursiona depois sobre o universo do
cacau, prossegue com os comentários sobre o fazer literário, no qual contempla
estudos sobre os temas, personagens, invenções com base na realidade popular,
enfim, em tudo que da narrativa prazerosa possa expressar uma forma de
biografia da vida no ato da escrita.
No aspecto construtivo do uso do saber da vida transposto
para o plano do fazer literário, o ensaísta dá-nos uma visão humanista da
criação e da vida existencial do célebre escritor. Suas leituras assim sobre o legado amadiano
facilitam o entendimento de uma obra de valor inconfundível para os novos e
velhos leitores. Estão tão bem urdidas acerca do comportamento feito de saberes
na escrita sensual e no imaginário do romancista que bem poderia esse livro de
ensaios funcionar como um manual literário para alunos da escola secundária,
das faculdades de letras e até mesmo para estudiosos que se disponham a rever e
refazer conceitos assumidos e propalados.
Sem falar na contribuição que poderia prestar a muitos
segmentos da crítica formalista que impera no meios acadêmicos e
universitários, nas mentes tradicionais às vezes tendenciosas, através de
interpretações engajadas, padrões de dominância analítica municiadas pelos preconceitos, situados esses
no discurso crítico conforme concebe Hans Georg Gadamer, em Wahrheit und
Methode, e até mesmo Francis Bacon, em seu Novum Organum, quando nos
alerta para os ídolos cultivados na escuridão, nas imagens pelas quais se pode
ficar aprisionado, sem ver a claridade dos seres e coisas nem vislumbrar uma
face da verdade.
As narrativas de juventude, junto com o universo do cacau,
pela primeira vez aparecendo na obra de Jorge uma incursão romanesca em
Itabuna, se constituem em capítulos capilares para a hermenêutica de romances
como Cacau, Terras do Sem Fim, Gabriela, Cravo e Canela, São
Jorge dos Ilhéus, A Descoberta da América pelos Turcos e Tocaia
Grande. Os saberes são apresentados aqui pelo ensaísta de forma erudita,
referidos em crítica textual eclética, na qual são selecionadas personagens
como testemunhas reais e fictícias, de acordo com o que se encaixa melhor para
o resultado desejado no estudo. Nenhum personagem ou momento existencial
descrito recebe favorecimento teórico, ao invés disso o ensaísta sempre vai
descrevendo e provocando a reflexão do leitor, auxiliando-o na fixação de sua
opinião, para assim ir mostrando o texto impregnado de lucidez interpretativa
com os elementos extrínsecos e intrínsecos necessários à elucidação da
escritura em conexão com a vida, tanto na forma quanto no conteúdo para
conseguir o efeito.
Parece que Cyro está abraçado com o melhor da crítica do século XIX
quando se escrevia sem viés de preferência diante de um manuscrito, com uma
disposição poética e alexandrina que impressionavam. Conscientemente usa
elementos de muitas teorias literárias e filosofias da interpretação da obra e
assim permite que as ideias se interconectem com a fatura romanesca de Amado,
com sua existência, seu conhecimento abundante dos seres e das coisas, valores,
razões, pensamento mágico e lógico, linguagens literárias e populares. Os
saberes são apresentados, passo a passo, como numa atitude rosácea, conduzida
por uma variedade de estilos, que nos lembram a lição de Hume quando observa
que não existe um único caminho para se chegar à beleza, e pode ser, por isso
mesmo, o que Cyro preferiu nesse modelo de práxis literária com diversos
prismas para comentar os saberes de Jorge. O ensaísta debruça-se principalmente
sobre fontes primárias do saber e do fazer, ao mesmo tempo que cobre o espaço
de uma cultura mestiça do povo baiano com a variedade de ângulos que elaborou
com felizes descobertas e achados importantes no correr do estudo.
O capítulo analisando Capitães da Areia está tão bem
urdido que me trouxe de volta a análise que fiz das apropriações de Amado do
universo medieval, a narrativa centrada em Pedro Bala, louro com sua cicatriz
vermelha, a liderar o grupo, fugindo da tentativa bastarda de transformá-lo em
negro, para atender a supostos preceitos do politicamente correto, tão em voga
nesses dias de desvario em que se deseja até queimar todo o acervo de Monteiro
Lobato. O enfoque desse romance de aspirações sociais mostra como nesses pobres
meninos abandonados na areia acontecem mazelas, que são as de hoje, e que já
existiam na década de 30, mas ainda recalcitrantes quase cem anos depois, no
novo século.
Em certo momento da leitura que fiz preferi também ficar
com o ângulo idealizado de Amado no que diz respeito à imagem de personagens
com a dimensão dos contrastes raciais, dentro das discussões da época,
lideradas por Gilberto Freire em sua tese de estudos multirracial, escrita sob
a orientação de Franz Boas, vinculada a uma época em que se buscava novas
ideias sobre raças para dar uma resposta ao crescente arianismo defendido por
Adolf Hitler.
As narrativas de pesquisas e memórias, contidas nesses
saberes de Jorge Amado, abordando a cidade da Bahia assentada numa cultura
popular mestiça e sua preferência pela vida urbana, com feitiçarias e heróis
míticos como os de Os Pastores da Noite e Tenda dos Milagres,
assim como os ensaios sobre as mulheres heroínas e guerreiras com suas imagens
impregnadas de ousadia e coragem, são
todas elas excelentes leituras para compreender a dimensão do ficcionista e seu
compromisso com as questões sociais, lutas de classe e escárnio à burguesia
dominante.
É magnífica a interpretação do ensaísta sobre a realidade
da vida popular no romance de Jorge
Amado, como um dos saberes configurado na expressão mística, fantástica,
mágica, socialista, enfatizado em Tenda dos Milagres, Os Pastores
da Noite, O Sumiço da Santa e Dona Flor, mas que navega em toda a
narrativa do romancista, desde País do Carnaval, a englobar, até mesmo,
seu relato de caráter autobiográfico, onde existência e imaginação se misturam
como vinho e água durante certa navegação de cabotagem.
O ensaísta Cyro de Mattos teve a iluminação para tratar de
todas as variações de realismos e estilos literários usados por Jorge Amado de
uma forma poética e grapiúna, dialogando com os pés na terra, viajando por toda
complexificação do flutuar de teorias, usando aqui a ali alguma fonte teórica,
mas mantendo em suas leituras dos saberes a base maior para o entendimento do
autor: sua fortuna crítica literária. Do ponto de vista crítico é marcante como
esse conjunto de ensaios ou crônicas teorizantes sobre o amado escritor baiano
adote como pano de pesquisa as obras do romancista e uma dose de referências a
muitas ações conjuntas, de amizade, advindas das relações sociais, vivências e
convivência no mundo grapiúna, no universo pré-místico do cacau, e que também
inclui nelas a religiosidade trazida pelos descendentes de africanos, sobretudo
a religião dos orixás, ijexá e dos Bantus de Angola e sul da África.
Os capítulos sobre o criador de personagens, o prosador e o
poeta, não podem deixar de ser apreciados com cuidado, em razão de sua riqueza
de detalhes.
Resulta esse livro de um conjunto de ensaios que produzem
uma análise clara e imprescindível para o conhecimento da obra de Jorge Amado.
O ensaísta Cyro distribui também farto conhecimento sobre os personagens
masculinos e femininos. Aponta como ocorre a fusão entre engenho e arte para
traçar o modo de construção desses protagonistas, tanto no romancista estudado
como em outros da grandeza de Machado de Assis e Graciliano Ramos. Tem razão
quando pergunta como esquecer Baleia, de Graciliano Ramos, Moby Dick, de
Melville, Dona Flor ou Pedro Archanjo, do autor de Tenda dos Milagres, personagens
que ocupam lugar de destaque na galeria das fascinantes criações de todos os
tempos, eternizadas como referências obrigatórias na literatura ocidental.
Por fim, lembremos que Jorge Amado rompeu com o partido
comunista, mas permaneceu, em toda sua dimensão de construção narrativa, ligado
às verdades essenciais de um sistema organizado com feição igualitária. Podemos
ver isso na delimitação de personagens, dentro da estética com mensagens de
teor libertário conduzido para um mundo melhor. Escreveu neste sentido a fábula
infantil O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, tão bem lembrada por Cyro
em um de seus lúcidos ensaios.
*Grapiúna
é assim chamado o pioneiro ou o que nasceu no tempo da conquista da terra. Ao longo dos anos, o termo passou a
significar aos que se identificam com as tradições e valores de uma civilização
criada com bases na lavra do cacau, no sul da Bahia.
**Nelson Cerqueira é
escritor, tradutor, poeta, professor doutor em Letras.
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