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sábado, 30 de novembro de 2013

Andanças em Portugal,
 Espanha e Rio


Com 75 anos de idade, busco reunir forças para continuar na jornada de  criação literária em prosa e verso. Nos meses de setembro e outubro últimos, estive em Coimbra, Portugal, e em Salamanca, Espanha. Em  Coimbra, no final de setembro,  lancei  em edição portuguesa (www.palimage.pt) o livro “Vinte e Um Poemas de Amor”, com ilustrações da baiana  Edsoleda Santos, na Casa da Escrita, um dos espaços culturais mais importantes de Portugal, situado no Centro Histórico da Universidade de Coimbra e que pertence à Câmara Municipal. A leitura pública do livro foi realizada pela Professora Doutora Graça Capinha, da Universidade de Coimbra.
Nos dias 2 e 3 de outubro, participei  como convidado do XVI Encontro de Poetas Iberoamericanos organizado pela Fundação Cultural de Salamanca, com apoio da Universidade e Centro de Estudos Brasileiros.  Li  poemas no Teatro Liceu e inaugurei a exposição de  livros publicados, narrativa e poesia, no Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Salamanca. Fiz  lançamento do livro Onde Estou e Sou/Donde Estoy y Soy,  prefácio e tradução do poeta Alfredo Pérez Alencar,  no Centro de Estudos Brasileiros, com leitura de  poemas. O livro foi apresentado na oportunidade pelo filólogo e professor mexicano Juan Ángel Rechy, licenciado em Língua e Literatura Hispânicas pela Universidade de Vera Cruz, , México.
       De retorno ao Brasil, tomei posse no Pen Clube do Brasil, no dia 23 de outubro, tendo sido saudado na ocasião pela  Professora Emérita Doutora Olívia Barradas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em um dos trechos de meu discurso,  disse:  “ Precisamos da literatura como a atmosfera. Dela nos servimos para inaugurar novos sentidos da vida. Sem querer polemizar, penso que a literatura é uma profissão da qual não pode fugir quem a abraçou como verdade. É condição,  ato ou efeito de professar, perseguir, proferir crenças e valores. Declarar publicamente ao outro que não vivemos sozinhos, navegamos em águas precárias em que as perplexidades avultam. Nosso discurso não é feito para agradar a grupos. Com a diversidade que celebra seres e coisas, costuma perdurar nas lembranças, incertezas e esperanças. Se quiserem, pode ser uma missão, pois tudo dá ao outro sem nada querer de volta. A literatura é capaz de salvar o mundo. É o caminho  para que os povos encontrem-se como  irmãos, sintam-se em total união do amor como verdade”.
     Enquanto isso, no dia 25 de outubro, no Rio, recebi o Prêmio Jean Paul Mestas, da União Brasileira de Escritores, no salão nobre Raimundo Magalhães Junior, da Academia Brasileira de Letras, por meu livro  De tes instants dan le poème/ De teus instantes no poema, tradução de Pedro Vianna, publicado em Paris, em 2012, pelas Editions du Cygne, na Coleção Poesia do Mundo (WWW.editionsducygne.com).
Neste ano de 2013, tive publicados os livros seguintes: Vinte e Um Poemas de Amor, Editora Palimage, Coimbra; Il Bambino e Il Trio Elétrico, infantil,  Editora Romar, Milão, Itália, www.romar-editrice.it; Onde Estou e Sou/Donde Estoy y Soy,poesia,  Ler Editora, Brasília; “Ecológico”, poesia, Editora da Universidade do Estado da Bahia (EDUNEB), Coleção Nordestina, Salvador; O que eu vi por aí, infantil, Editora Biruta, São Paulo; “Um Grapiúna em Frankfurt e outras crônicas”, Dobra Editorial, São Paulo;  “Berro de fogo e Outras Histórias”, segunda edição, Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz. Estão no prelo:  Nada Era Melhor, romance juvenil, Editora Biruta, e Os Brabos, novelas, segunda edição, pela Ler Editora.

Minha Prima Gringa




Gringa era uma das primas que morava na cidade vizinha de Ilhéus. Minha tia Bebé escreveu para minha mãe avisando que a prima Gringa ia passar quinze dias na casa da tia de Itabuna quando chegassem as suas férias no final do ano.  Estava ansioso para que chegasse o dia de conhecer aquela prima, que devia saber muita coisa sobre o mar de Ilhéus, uma cidade que tinha praias belíssimas, prédios antigos, ruas estreitas no comércio e casas nos morros, segundo um dia meu pai me informou.
 Uma das coisas que me deixava triste era não conhecer o mar. Tinha muita vontade de conhecer. O menino que conhecia o mar julgava-se importante, gozava de prestígio e certo respeito pelos outros garotos de sua turma. Por mais que a turma dos meus queridos amigos gostasse do rio Cachoeira, nada se comparava ao mar, de tão bonito com sua imensidão, brilho no azul e ondas que rugiam como leões,  antes que se partissem na praia e inventassem espumas na areia.
Tudo isso que eu sabia sobre o mar era porque meu pai contava. Agora queria ouvir da boca de minha prima mais coisas sobre o mar. Gringa  foi chegando lá em casa e mostrou logo que era muito faladeira. Devia ter uns quinze anos de idade,  parecia que já era uma moça feita. Tinha o corpo cheio, os quadris largos, cintura grossa, cabelos alourados, olhos claros. 
Ela tinha chegado pelo sábado, no ônibus das 10 horas.  Minha mãe levou a prima para assistir à missa das 7 horas na Igreja de Santo Antonio, no domingo. Fiquei sabendo que minha prima era mais velha do que eu seis anos de idade.  Ela já tinha feito a primeira comunhão, o que ainda não tinha acontecido comigo. Contou-me que tinha um namorado em Ilhéus, chamava-se Zuca, era o dono de um saveiro, ganhava a vida viajando pelo mar. Trazia no saveiro a carga com vassoura, balaio, moringa e outros utensílios populares. Ele comprava em Aracaju e vendia aos feirantes no cais de Ilhéus.
Fui no domingo à tarde com a prima para assistir à fita de bangue-bangue no Cine Itabuna. Ela vibrou, deu suspiros e risos fortes quando o mocinho afugentou os bandidos com tiros de revólver e conseguiu salvar a mocinha. Estava sendo levada pelo chefão na carruagem carregada de sacos moedas de ouro, que a bandidagem tinha acabado de assaltar. 
A prima fez amizade com duas meninas, Tania e Blandina, que moravam em nossa rua. À noite ficavam as três contando histórias, cada uma mais bonita do que a outra. Eu ficava sentado no meio-fio do passeio, ouvindo a prima contar histórias dos pescadores nos mares de Ilhéus. Ela falou certa vez para as duas novas amigas que da casa no morro onde morava avistava o mar cheio de azul na barra, balançando na imensidão das águas, cujas vagas perdiam-se até lá na curva do horizonte. De lá, do alto do morro, avistava-se os saveiros como pontos brancos, singrando nas águas da baía, assim como os navios que entravam no canal, apitando, quando vinham atracar no porto. Falou também que, quando terminava de descer o morro com os irmãos dela, os meus primos Velho, Preto, Lurdinha, Mariana e Judite, era só andar mais um pouco e já estava pisando na areia da praia do Cristo de pedra com os braços abertos para o mar. Ali tomava banho de mar com Judite, a irmã caçula, enquanto os irmãos ficavam pescando peixe com vara de anzol e siri com a siripóia.
Meio sem graça, disse à prima que não conhecia o mar. Um menino de minha turma gostava de mangar de mim porque eu não conhecia a coisa mais bonita que Deus fez na natureza. Ele informou que estava rezando para que chegassem logo as férias no final do ano para que fosse com os pais veranear no Pontal dos Ilhéus.  Uma coisa é tomar banho na água salgada, que faz bem ao corpo, é fonte de saúde, outra coisa é tomar banho nesse rio sem graça, arriscado qualquer um pegar doença no abrir e fechar do olho, finalizou, trancando os lábios para não sorrir.
Minha prima Gringa falou com meu pai e minha mãe para que deixassem o primo viajar com ela no seu retorno para Ilhéus. Para minha surpresa o pai consentiu, depois de ouvir os apelos de minha mãe, lembrando que eu era um bom filho, gostava de estudar e não lhe dava trabalho. 
De calção azul, peito nu e pé no chão, desci o morro com minha prima e os outros primos, ansioso para entrar pela primeira vez no mar. Fui levado para tomar banho na praia que ficava em frente da avenida. Quando vi aquelas águas roncando ali perto sem parar, como se fosse um bicho do outro mundo, segurei a mão da prima e apertei. Fiz esforço para não chorar.
- Não tenha medo. Logo você acostuma – ela disse.
Estava certa. No segundo dia já me sentia com mais coragem para entrar no mar. No terceiro não queria sair de dentro da água. Mergulhava nas ondas quando elas vinham ligeiras na minha direção querendo me derrubar. E todos os dias em que  passei com a prima Gringa e os outros primos em Ilhéus, durante três semanas,  pela manhã eu só queria tomar banho de mar.
Viajei de volta para a minha cidade naquele domingo de verão com o sol brilhando forte no céu, de cegar os olhos. Antes de embarcar no ônibus, tomei a bênção à minha tia Bebé. Beijei minha prima Gringa em cada face de seu rosto rechonchudo.   Retornei para Itabuna como o menino mais feliz do mundo. Já não era mais um daqueles garotos  de minha turma que não conhecia o mar.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Um Pescador Imbatível

                                 (Cyro de Mattos)

                                           


De primeiro nadava feito cachorrinho, batendo na água com os pés e, ao mesmo tempo, puxando-a com as mãos. Era uma maneira mentirosa de nadar, só prestava no raso. Ninguém dava valor a quem nadava feito cachorrinho. Comecei a aprender nadar de verdade quando segui o conselho do amigo Duda para engolir uma piaba. Batia agora   com  os pés na água e, ao mesmo tempo, ia puxando-a com as braçadas seguras.       Semanas depois não tinha mais medo de atravessar os poços fundos. De nadador verdadeiro a mergulhador corajoso tudo aconteceu em pouco tempo. Para não falar nos saltos a partir do barranco íngreme. Saltava do alto para mergulhar de cabeça ou dando uma cambalhota no ar.
           Antes de aprender a nadar no sério e me tornar um bom mergulhador,  pescava com vara de anzol quando então pegava apenas peixes miúdos. Depois que me tornei um nadador e mergulhador de estilo apurado, passei a pegar com a mão o peixe escondido na loca  de barro, camarão e acari nas pedras. Quando ia pegar acari, tinha o cuidado de meter a mão por baixo da barriga do bicho, conforme me ensinou o pescador Patrício. “Se você meter a mão por cima, o acari incha, prende  sua mão e você morre afogado”, ele disse.
            Patrício ensinou-me também a pegar pitu no laço.  Era só jogar bolinho de farinha que o pitu saía da loca para comer a ceva. Então  pegava o bicho com o laço feito de  arame fino preso na ponta da vara. Deixava que ele ficasse comendo a farinha molhada e, quando entrasse  no laço,  puxava-o ligeiro para fora da água.
         Chegava lá em casa agora com a capanga cheia de peixe, acari,  camarão e pitu. Minha mãe fazia a moqueca, que comia com os amigos à tarde no pátio. À mesa os pratos com as iguarias no cheiro ativo da moqueca. Os olhos de cada amigo cresciam  diante da comida apetitosa a dar água na boca.  Enchia meu prato fundo  com farofa, arroz e o peixe na moqueca,  os amigos faziam o mesmo.
        Um dia abri o baú velho, apanhei o estilingue,  o pião, a peteca, o iô-iô,  o álbum de figurinhas, a bola de couro, os patins e o jogo de botão. Chamei os amigos e anunciei que ia fazer um leilão dos meus brinquedos. Era o primeiro que ia se realizar  na Rua do Quartel Velho. Maneca, o filho do advogado Ubaldino Brandão,  aconselhou-me que não fizesse aquilo. “Você vende  os brinquedos e com  o dinheiro apurado no leilão  não vai conseguir comprar outros”, disse. Lembrou que, se eu fizesse o leilão,   minha mãe não ia gostar e podia não me dar mais brinquedo.
          A rua ficou cheia de meninos quando a notícia correu que eu ia fazer um leilão de  meus brinquedos. O leilão aconteceu em lances  rápidos, mas só não vendi fiado. Nunca tinha visto tanto dinheiro, os bolsos ficaram cheios de cédulas grandes. No dia seguinte fui até  ao armazém de seu Júlio Sergipano e comprei a tarrafa novinha, pendurada no prego da parede, que tanto estava me tirando o sono. O dinheiro apurado no leilão  deu certinho para comprar a tarrafa.
           Era agora o menino mais admirado lá na rua, o único que tinha uma tarrafa para pescar no rio Cachoeira como se fosse gente grande, se bem que pedisse ajuda ao pescador Patrício para arremessá-la nos poços fundos. Quando chegava à minha casa agora, era  com o cesto   cheio de peixes grandes. Dava alguns peixes  para minha mãe fazer a moqueca e ia vender os outros aos vizinhos. Com o dinheiro que apurava com a venda dos peixes ia comprando e recuperando cada brinquedo que tinha vendido no leilão.
            Em poucas semanas tive de volta a bola de couro, os patins, a peteca, o pião e o álbum de figurinhas com retrato de artista americano, Cheguei até a comprar um jogo de botão novinho com  a mesa do campo que tinha as balizas com rede. Por último comprei um jogo de pingue-pongue, que foi a distração mais procurada pelos meninos lá da rua do Quartel velho durante as férias escolares. Só que para jogar três partidas seguidas de pingue-pongue, cada  jogador tinha que pagar um bom dinheirinho ao  dono do jogo.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Conversa com o escritor Cyro de Mattos: poesia, tradução e topofilia



Conversa com o escritor Cyro de Mattos: poesia, tradução e topofilia

Objetivo: Dar conhecimento da poesia bílingue de Cyro de Mattos, a partir da leitura e análise de algumas de seus poemas traduzidos do Português para o Espanhol, numa perspectiva poético-afetiva.

Data: 04/12/2013
Local: Auditório Jorge Amado
Horário: 8h30min às 12h

Atividades:

1-
A indissociabilidade ensino, pesquisa e extensão vista a partir da literatura Sulbaiana  Professora doutora Reheniglei Rehem

2- Leitura cênica do poema "Agudo mundo" Tacila Souza (Fundação Itabunenese de Cultura e Cidadania-FICC)

3- Nos seus versos, o olhar do Outro 
Professor doutor Juan Facundo UESC)

4- Resultado do concurso de resenha acadêmica 
Tema: Percepção e afeto na poesia de Cyro de Mattos Participantes: Graduandos do oitavo semestre de Letras da UESC

4-Sessão de autógrafos com o escritor

Promoção: Literatura Sulbaiana / Letras

Coordenação geral:  Profa.  dra. Reheniglei Rehem

Público alvo: acadêmico em geral

Entrada livre (até o limite de lugares).

                                         Os Negros

                                                   (Relato de  Cyro de Mattos)
                       
              
O negro Sinfrônio Barbadura  chegou por essas bandas do Japará  quando tudo aqui era ainda um lugarejo, com pouca gente e algumas ruas de chão batido nas proximidades do rio. Se muito tinha o lugarejo eram umas 525 casas. A mata fechada na vizinhança, com índios, pássaros grandes, macacos, escuridões. Soube dos que voltavam para a caatinga que isso aqui era terra de bandidos, onça e cobra, léguas onde Satanás reinava. Das  muitas informações colhidas daquela gente desiludida, fixou-se em alguns detalhes e concluiu que aquelas brenhas do Japará não eram o paraíso, mas um lugar para ficar rico porque chovia muito,  a terra tinha fama de que era boa para o plantio de lavouras permanentes ou de pouca duração. Para não se falar nas matas cobertas de árvores frondosas com madeira de lei.
 Chegou acompanhado de Sabina, uma negra pequena e ainda jovem. Foram morar primeiro numa cabana de pescador abandonada na ilha.  Depois ele  se apossou de  um estirão de mata nas Salteadas, lugar que tinha esse nome porque por lá passava um ribeirão forte com muitos trechos encachoeirados. Ergueu uma  casa de taipa na clareira aberta com as árvores que derrubou a golpes de machado. Plantou roça de milho e mandioca em poucas semanas. Sabina cuidava de fazer a comida no fogão a lenha, aproveitando a caça fresca e o peixe pescado no  ribeirão ali perto da tapera.          
            Eles viajaram de navio dois dias para chegar nessas terras do Japará. E ainda tiveram de caminhar alguns dias no meio do mato para chegar até aqui no lugarejo. Caminharam através das picadas feitas pelos caçadores. Protegeram-se da chuva no oco grande de uma sapucaia. Dormiram  nas redes que armavam entre dois pés de pau. Passaram a noite junto da fogueira feita  com galhos de pau-brasil e jacarandá. Enquanto ela dormia, ele ficava acordado, vigiando  com a repetição engatilhada. Às vezes alimentava a fogueira para que não apagasse  com galhos e folhas secas. Revezavam-se durante a noite escura e quieta. Acordavam com o grito dos macacos nos galhos altos, os cantos das inhumas, sabiás, macucos, mutuns, arapongas  e outras aves.  Comiam carne salgada com farinha seca quando paravam para descansar da viagem pelo meio do mato fechado.  Matavam a sede bebendo na folha larga a água de ribeirão, que escorria escuro dentro  da mata impenetrável.
          . Ela causou espanto  a quem viu  quando apareceu no lugarejo com ele  pela primeira vez. Vestia calça e camisa de homem, mas era  uma mulher, disso ninguém duvidava. Tinha os cabelos crespos, a pele preta como a dele, os lábios carnudos, o nariz grosso. Os seios grandes apertados por baixo da camisa de algodão. Mulher naquele tempo era coisa rara por essas bandas do Japará.  Os caçadores pegavam índia  no mato a dente de cachorro. Trocava-se  na feira aquela mulherzinha quase nua por um pedaço de mata derrubada, já com alguma plantação de milho, mandioca, banana e cacau.
             Passaram meses naquela vida de trabalho e solidão no meio da mata. Faltavam-lhes  roupas,  sal,  sabão, munição  e ferramenta de trabalho. Ele chegou a ficar alguns anos derrubando as árvores nativas para o plantio de cacau. Ela ajudava-o a limpar o terreno,  abria  com a ponta do facão as covas  para que ele  jogasse  as sementes dentro. Ele chegou a colher duzentas arrobas de cacau no ano  e ainda  tinha várias roças com plantações novas, entremeadas com bananeiras.
 Nos idos de 1915, dois soldados bêbados  quiseram desarmá-lo na feira, dando ordem para que entregasse o revólver. Resistiu, brigou com os soldados, mas foi preso e teve as mãos amarradas. Lá na cadeia, os soldados  espancaram-no. Ficou num quarto escuro, sem comida e água. Duas semanas depois foi posto em liberdade
              Um dia teve notícia de que os dois  soldados estavam em Ferradas, fazendo  diligência para  capturar um bandido perigoso. Na tocaia acertou um deles no peito com tiros de repetição, o outro foi ferido na perna e no braço. O soldado ferido arregalou uns olhos de medo,  ficou tremendo no corpo todo. Disse: “Seu Sinfrônio, eu não quis lhe prender nem bater naquele dia.  Foi o outro soldado que me forçou a fazer aquilo. Tenha piedade de mim.” Tirou um cigarro do bolso, acendeu e fumou sem pressa. Quando acabou de fumar, pegou  o punhal e bradou: “Prepare-se, seu  peste,  pra engolir este doce!” O punhal entrou até o cabo na goela do soldado, que ficou com a língua de fora,  os olhos esbugalhados querendo cair na estrada.
              O delegado Procópio, um amarelinho  que tinha feito parte da volante que matou Lampião e seu grupo de cangaceiros na caatinga,  comandou   os vinte soldados que partiram num dia chuvoso para as matas das Salteadas. O negro Sinfrônio Foi atingido com uma bala de fuzil, que lhe  estourou o osso da perna. Não havia como ele escapar daquele cerco armado pelo delegado com os soldados. Até que ele então  foi atingido com outra  bala de fuzil, que  penetrou no braço e foi sair no ombro.  Foi preso e amarrado como um bicho perigoso. Sabina  assistiu tudo escondida por trás de uma moita de goiabeiras.
             No outro dia foi encontrado enforcado na cadeia. Dizem que foi o delegado Procópio que mandou fazer aquilo para vingar as mortes dos dois soldados. Ninguém soube explicar como de repente a fazendinha nas Salteadas, com as lavouras que foram  plantadas pelo  negro Sinfrônio Barbadura e a negra Sabina, foi parar nas mãos do delegado Procópio. O resto do que aconteceu ficou aí grudado na negra Sabina, pesando no  corpo e alma dela com tudo que não presta nessa vida.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Associação Nacional de Livrarias Lança Manifesto contra a Censura

A ANL  - Associação Nacional de Livrarias -  lançou no dia 22 de outubro de 2013 um manifesto público sobre a polêmica das biografias no País, O discurso do escritor Luiz Ruffato na Feira de Frankfurt e a realidade do mercado do livro brasileiro. Confira o texto na íntegra:
O livro como base da civilização - Uma luta em favor da liberdade
“Embora sua mercadoria seja a base da civilização, pois que é nela que se fixa a experiência humana, o livro não interessa ao nosso estômago nem à nossa vaidade. Não é, portanto, compulsoriamente adquirido. O pão diz ao homem: ou me compras ou morres de fome. O batom diz à mulher: ou me compras ou te acharão feia. E ambos são ouvidos. Mas se o livro alega que sem ele a ignorância se perpetua, os ignorantes dão de ombros, porque é próprio da ignorância sentir-se feliz em si mesma... Suprima-se o livreiro e estará morto o livro – e com a morte do livro retrocederemos à idade da pedra, transfeitos em tapuias comedores de bichos de pau podre. A civilização vê no livreiro o abnegado zelador da lâmpada em que arde, perpetua à trêmula chamazinha da cultura.”(Monteiro Lobato)
Em comemoração aos 25 anos de nossa Constituição Federal (a Constituição Cidadã), celebramos não apenas o texto, em seu conteúdo, mas principalmente seu significado para a cidadania brasileira: Um grito de liberdade após um longo período de aprisionamento.
A palavra livro provém do latim "liber", que é a mesma raiz da palavra liberdade.
Nos dias atuais, em meio às polêmicas da postura, da realística adotada pelo escritor Luiz Ruffato, com sua corajosa explanação na abertura da Feira de Frankfurt em 2013, à censura às biografias não autorizadas, defendida por alguns artistas brasileiros, e ao ressurgimento do exercício democrático com as manifestações públicas no Brasil, sentimo-nos na obrigação de nos posicionar mais uma vez a favor da liberdade, da expressão livre e da concepção e difusão de ideias tão frequentemente fomentadas nos livros!
A ANL, defensora de todas as formas de expressão da liberdade, há 35 anos defende o mercado livreiro brasileiro e testemunha a determinação e resistência por parte de diversas livrarias espalhadas em todo território nacional.
Assistimos com tristeza, em 2012, a uma queda de 12%* no número de livrarias em nosso país, prejudicando, de fato, o acesso ao conhecimento, já que na maciça maioria de nossos municípios não temos sequer uma livraria.
Mesmo diante da difícil realidade apresentada e das dificuldades que estamos enfrentando, mantemos vivas nossas esperanças para que esse panorama possa mudar, pois as livrarias existentes têm cumprido seu papel social na formação de leitores.
Como conclusão da 23ª Convenção Nacional de Livrarias, realizada em agosto deste ano no Rio de Janeiro, a ANL convida a sociedade a encarar o livro, não como um produto qualquer, mas como a base da civilização, pois é nele que se perpetua sua história, o legado da sociedade. Dessa forma, o livro não pode ser tratado como um simples produto, precisa de uma lei específica que contemple sua importância, seu significado. Uma lei que reconheça as especificidades de sua comercialização e o momento atual do livro e da leitura no país:
- O Brasil lê pouco, mas o mercado de livros cresce em publicações, mesmo adiante da contraditória escassez de pontos de exposição e vendas de livros por todo o país. Será que toda a população tem acesso ao livro e à leitura, para que possamos nos tornar uma nação de cidadãos leitores?
- Constatamos a baixa cobertura de pontos de vendas de livros em todo o território nacional, com mais de 2/3 dos municípios não dispondo de nenhuma livraria, o que prejudica muito a distribuição da produção cultural editada em nosso país. A quem favorece a concentração de mercado?
- Sofremos com baixos índices de leitura da nossa população, que embora crescentes, permanecem muito aquém do necessário para melhorarmos a qualidade de vida. A presença de livrarias nos mais diversos locais não poderia contribuir para a formação de leitores?
- As dimensões continentais de nosso país requerem um pacto nacional para garantir a distribuição mais igualitária aos longínquos pontos de vendas espalhados pelo país. É preciso alinhar o papel de cada um na cadeia do livro. Estamos fazendo isso?
- A concentração do mercado varejista em poucas empresas ameaça a liberdade de expressão, a criação e fruição da leitura, causando o fechamento de pequenas e médias livrarias. Assim como prejudica a geração de emprego, o empreendedorismo e a própria arrecadação de receita para os cofres públicos. Será que somente grandes centros têm direito ao acesso ao livro e à leitura?
Por isso, é necessário discutirmos, além da liberdade e suas formas de expressão, uma política de estado que reconheça o papel social da livraria como difusora do conhecimento e a importância desse ponto de venda como forma de garantir a bibliodiversidade. Afinal estamos falando de livros, estamos falando de livre-arbítrio!
A ANL clama pelo reconhecimento da supremacia do artigo 5º, que diz “IV – É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; V – É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; IX – É livre a expressão da atividade intelectual artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.”
Pois assim esse é o papel do Estado, segundo o artigo 215 da Magna Carta: "O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização da difusão das manifestações culturais."
A Constituição é clara! Todos têm o direito à informação e lhes é garantida a liberdade de expressão!

Ednilson Xavier
Presidente da ANL – Associação Nacional de Livrarias
22/10/2013

                                            Dor de dente

                                                                  Cyro de Mattos
                     
                Passei dois dias com a dor de dente. Escondi de minha  mãe até quando pude. Não queria ir ao dentista, tinha medo. Soube que o dentista metia a seringa na boca para furar lá dentro a gengiva com a agulha e naquele local da dor aplicava a anestesia. Gostava também de passar o motorzinho no dente, depois de extraído o nervo, tentando deixar a obturação com um bom acabamento. Essas coisas bem desagradáveis apareciam no íntimo de cada menino, antes de ir ao dentista. Ficavam desafiando a sua coragem quando  fosse tratar do dente. Nessas horas, o menino devia ser um homem para não se borrar e urinar  na calça.
          No terceiro dia não consegui mais esconder de minha mãe a dor de dente. À noite comecei a chorar no quarto e tentei abafar o choro no travesseiro. Teve uma hora que não suportei mais, solucei e comecei a chamar por minha mãe.
          Ela veio até o meu quarto.
           - Por que está chorando?
           - Não agüento  mais.
           - É alguma dor na barriga?
           - Não, é no dente.
           Ela mandou que eu esperasse um pouco. Foi até o armário da cozinha e ali, na gaveta, apanhou a pasta  Tira-Dor. Aplicou o remédio em minha gengiva, no local onde o dente doía. Logo senti  um alívio.
           - Vá dormir. Amanhã cedo vou lhe levar à dentista.
           O que ela me disse foi o suficiente para que eu ficasse alarmado e demorasse a pegar no sono.
           Minha mãe chegou cedo comigo no outro dia ao consultório da dentista.  Já havia na sala um menino para fazer o tratamento no dente. Estava acompanhado da mãe. Daí a pouco instante a  dentista abriu a porta do gabinete e disse que a mãe já podia entrar  com  o filho  para começar o tratamento.  
           Estava inquieto junto à minha mãe. O que é que se passava  mesmo  lá dentro entre a dentista e o menino? Não tinha  bons pensamentos, imaginava que o pior estava acontecendo com o menino no tratamento de seu dente.  Depois de algum tempo, o menino saiu com a mãe como se nada de mais tivesse acontecido lá dentro durante o tratamento de seu dente.  Vi que o menino era do meu tamanho,  devia ter a minha idade, uns oito anos. A dentista despediu-se do menino, fazendo um agrado com a mão na cabeça dele.
              Elogiou:
              - Parabéns, menino, você já é um homem. Não chorou um minuto, não se borrou nas calças nem urinou na cadeira.
             A mãe do menino saiu puxando o filho pela mão, feliz com o que acabara de ouvir da dentista.
              Agora seria a minha vez para a dentista examinar meu dente. Comecei a tremer e, a seguir, chorar, dizendo à minha mãe que não ia abrir a boca para a dentista furar com a agulha e depois meter lá dentro o  motorzinho.
            Chorei alto e demorado, esperneei e solucei, até que fui diminuindo o choro e aí eu parei de soluçar.   A dentista e minha mãe esperaram que eu ficasse calmo depois da crise de choro.  Então minha mãe  puxou-me  pela mão e me levou para dentro do gabinete.
            Lá dentro:
            - Abra essa boca, menino, que não vai doer, é pura impressão sua.
            Fiquei de boca fechada.
            Ela insistiu, dizendo para  minha mãe:
             - Pensei que você ia me trazer um menino corajoso como um homem e me trouxe um mariquinha, bom de vestir saia como uma menina.
            Não gostei do que a dentista disse e resolvi, aborrecido,  abrir a boca.
            Fechei os olhos quando ela furou minha gengiva com a agulha da seringa e aplicou a anestesia. Fechei de novo quando ela começou a examinar meu dente, escarafunchando com um estilete minha dentadura. Aplicou alguns pequenos jatos de água no dente atingido pela dor. Fez a limpeza, pulverizou. Aplicou uma pasta branca e encerrou o tratamento. Marcou o dia do meu próximo retorno para continuar o tratamento,
            - Não vai ser preciso  extrair o dente do menino, vamos obturá-lo.
             Minha mãe recebeu dela a receita para comprar o remédio. As pílulas deviam ser tomadas três vezes ao dia, uma de cada vez,  para que eu não sentisse mais dor no dente, até  que chegasse o  próximo dia marcado para o meu retorno  ao gabinete da dentista. 
             Cheguei suado lá em minha casa, o rosto com uma cor pálida, os olhos esbranquiçados, a voz saía sumida, sem graça.  Estava preocupado com o que poderia acontecer comigo quando retornasse ao gabinete da dentista para continuar o tratamento.  Minha mãe pediu que eu tirasse a calça. Ficou aborrecida quando notou que estava borrada e manchada de  urina.





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quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Editora da UNEB Participa da Bienal do Livro da Bahia

Pela quarta vez, a Editora da Universidade do Estado da Bahia (Eduneb) está presente em mais uma edição da Bienal do Livro da Bahia,  o maior evento literário do estado. A Eduneb está na Rua E, estande E09/D14, com 169 publicações universitárias expostas e  muitas delas terão lançamento  durante o evento . Entre os livros da EDUNEB que participarão da Bienal estão  Ecológico, poesia, de Cyro de Mattos,  Educação e cultura midiática, de Maria Olívia de Matos e Lucila Pesce, Revelações literárias, de Ricardo Tupiniquim,  Marujos de primeira viagem,de Raul Barreto Neto, e  Jorge Amado: da ancestralidade à representação dos orixás, de Gildeci de Oliveira  Leite  
         A 11ª Bienal Internacional do Livro da Bahia acontece de 8 a 17 de novembro, no Centro de Convenções da Bahia, localizado na Av. Simon Bolivar, s/n, Jardim Armação, em Salvador. A diretora da Eduneb, Nadja Nunes, acredita que “a importância da Bienal do Livro é  promover os autores, socializar o conhecimento produzido na universidade e desafiar a editora a conquistar o leitor para o título exposto”. Nessa edição a entrada custa R$ 4,00 (inteira) e R$ 2,00 (meia), metade do valor cobrado em 2011. Estudantes e idosos que apresentarem identificação estudantil e carteira de identidade, respectivamente,  pagam meia-entrada e os menores de um metro não pagam para entrar.
        Desde 2006, a Editora da UNEB participa das grandes bienais do livro no Brasil, como em São Paulo, Pernambuco, Maceió e Rio de Janeiro. Inclusive, Jorge Amado: da ancestralidade à representação dos orixás - um dos livros a serem lançados - participou da última edição carioca e esgotou antes mesmo do lançamento iniciar. Na Bienal do Livro, os visitantes têm a oportunidade de conhecer pessoalmente autores, folhear livros, participar de bate-papos com personalidades, escritores e jornalistas, além das atividades recreativas. Com programação diversificada e voltada para toda a família, a 11ª Bienal Internacional do Livro da Bahia acontece de 8 a 17 de novembro, no Centro de Convenções da Bahia, localizado na Av. Simon Bolivar, s/n, Jardim Armação, em Salvador.

A Negação do Outro

                                


A criatura humana procura aspectos negativos no outro para com a exclusão afirmar-se como o bom ou o melhor.  O criador de realidades espirituais e o que pugna pelas coisas materiais não diferem, em essência, um do outro. É uma criatura só sob vários aspectos.  Existe o artista invejoso como o homem, e o homem invejoso  como o artista. Viver é perigoso, a romancista Virgínia Woolf disse. Se há riqueza nos gestos, pobreza da alma é clave na qual os seres humanos gostam de se fixar, estejam em qualquer lugar do rio da vida. Convivem com aquela sombra que infunde medo. O velho teme o novo, este recusa o velho. Quando em verdade se vê o velho, em sua maneira essencial de propor, também trazer o novo.  E o novo, na sua maneira de estar no mundo, incorporar o velho naquilo que já foi desbravado, transgredido e consolidado. A vida como ela é mostra-nos Nelson Rodrigues em retratos reais, que impõem o trágico e o cômico. 
O homem gosta de maquinar a razão e eleger o mal como modo de exercitar a vida. No enigma que é a vida fomos feitos frágil armação ante tudo que perdura indiferente. Nossa incompletude constantemente é feita de misérias, vaidades, egoísmo. Somos impelidos pelo instinto do símio que aniquila o anjo, sabendo-se que isso não leva a nada. O artista não foge à regra  quando projeta realidades  para abraçar círculos.
Nessa guerra que existe por aí, de cada um  só pensar em si, o habitante do país das letras possui também suas fraquezas. Na sua fina arte reinventa a vida, pesa o imponderável, no tecido das idéias avança um pouco na obscuridade das coisas. Tenta negar a morte com a palavra que simula emoções diante do mundo. Através da cumplicidade do leitor torna o mundo um pouco viável. Na guerra sem testemunhas entram o poder e a glória, conquistados na ampliação de espaços que abrangem o adversário, separado por barreiras de fogo, temores, invejas e incômodos.
Li em “Uma Nova História da Música”, de Otto Maria Carpeaux, que Tchaikovsky tinha opiniões grotescas sobre a  música ocidental. Dizia que “Bach é um bom compositor, mas não é um gênio”, Haendel “é compositor de quarta categoria.”  De Beethoven só gostava das obras da mocidade, achava as outras composições “caóticas”. Brahms seria “uma mediocridade arrogante”. Wagner inspirava-lhe “tédio infinito”. Seu ídolo era Mozart. Detestava assim toda a outra grande música.
Ante as opiniões de Tchaikowsky sobre alguns gênios da música ocidental e as daqueles que não reconhecem o escritor se não estiver na confraria ou na parceria da afetividade, eleita por conveniência, cada um à procura de salvar a si mesmo, cabe aqui a lembrança do que li certa vez em um pára-choque de caminhão: MUITAS SÃO AS FORÇAS  SÓ DEUS É O PODER.
Um dos verdadeiramente grandes escritores americanos do nosso tempo, um dos maiores de todos os tempos, Prêmio Nobel, o romancista William Faulkner confessou certa vez que, se não tivesse escrito seus livros, algum outro o teria feito: Dostoievski, Hemingway, todos nós. A prova do que afirmava estava no fato de que existiam três candidatos para a autoria das peças de Shakespeare, mas o que importava não era  quem  escreveu “Hamlet”, “Sonho de Uma Noite de Verão,  mas o fato de se ter escrito esses livros. De acordo com o renovador do romance moderno:

“O artista não tem importância. Só é importante o que ele cria, já que não existe nada de novo para ser dito. Shakespeare, Homero, Balzac, todos escreveram as mesmas coisas e, se eles tivessem vivido mil ou dois mil anos, os editores não teriam, desde então, necessidade de ninguém mais”. ( em “Escritores em Ação”, pág. 37, editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1968)

         O que afirmou o autor de várias obras-primas do romance universal não pode deixar de ser considerado.

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segunda-feira, 4 de novembro de 2013

CYRO DE MATTOS NO MIRANTE DO FLAMENGO

Matéria publicada no Blog Literatura e Rio de Janeiro,
Por Ivo Korytowski 


Cyro de Mattos — poeta, contista, cronista, ensaísta, antologista, em suma, ativista cultural de Itabuna, sul da Bahia — é velho colaborador deste blog, como você pode constatar clicando em seu nome no menu da barra vertical direita. Seu artigo sobre Lima Barreto é um "campeão de audiência", com mais de 3 mil visitas, e em Uma Amizade Antiga Cyro discorre sobre o segundo melhor amigo do homem, que é o livro (o primeiro dizem que é o cão).

Semana passada (23/10/13) tive a satisfação de comparecer à posse de Cyro como membro titular do PEN Clube do Brasil, na sede do clube, no décimo-primeiro andar de um prédio da Praia do Flamengo, na altura do Largo do Machado, onde tantas vezes no passado eu fora visitar (ou pegar para passear) o grande intelectual e memorialistaAntonio Carlos Villaça. Villaça, um homem que vivia num mundo paralelo, puramente intelectual (platônico?), e que nunca amealhou dinheiro por falta de vocação para as insignificâncias materiais, durante muitos anos, por intercessão do acadêmico Marcos Almir Madeira, morou de favor num quarto do clube, cujo terraço apropriadamente chamou de "Mirante do Flamengo". "Aqui estou no mirante do Flamengo. Nunca antes morei assim tão perto do mar. [...] Agora, estou no meu mirante solitário, diante do mar. E vejo a entrada da barra, o Pão de Açúcar", escreveu Villaça emDegustação. "O mirante do Flamengo me liga ao mar. O mar está perto de mim. O vento do mar vem até mim. E eu me debruço na varanda e olho o mar."


Em seu discurso de posse, Cyro faz sua profissão de fé no ofício do escritor e na literatura: "Há quem ache que ser escritor é destino, fatalidade que começa mal desponta a manhã. Não deve ser nada bom. Não pode ser mesmo para quem sustenta, na sua maneira de achar estranha a vida, todo o peso terrestre, embora existam os pássaros cantando a madrugada com suas cores suaves. Para que serve a poesia? Respirar e viver, disse Borges. Expressar que dentro de mim o rio flui, o mar cerca por todos os lados, anotou Eliot. Para que serve o romance? Conhecer Deus e o diabo nas vastidões do sertão alado do mineiro Guimarães Rosa. Ler o mundo quando ele diz que maior do que os confins daquele sertão mineiro é o que descamba sem fim depois do lado de lá, naquele destamanho de um enigma que ninguém consegue decifrar. 

Precisamos da literatura como a atmosfera. Dela nos servimos para inaugurar novos sentidos da vida. Sem querer polemizar, penso que a literatura é uma profissão da qual não pode fugir quem a abraçou de verdade. É condição, ato ou efeito de professar, perseguir, proferir crenças e valores. Declarar publicamente ao outro que não vivemos sozinhos, navegamos em águas precárias em que as perplexidades avultam. Nosso discurso não é feito para agradar a grupos. Com a diversidade que celebra seres e coisas, costuma perdurar nas lembranças, incertezas e esperanças. Se quiserem, pode ser uma missão, pois tudo dá ao outro sem nada querer de volta. A literatura é capaz de salvar o mundo. É o caminho para que os povos encontrem-se como irmãos, sintam-se em total união do amor como verdade." 


O editor deste blog concorda em gênero, número e grau, e assina embaixo.


O Brasil na Feira do Livro de Frankfurt

O Brasil, convidado de honra da feira do livro de Frankfurt, que começou no dia 9 de outubro último, quarta-feira, pretendeu ir  além dos clichês do samba, do futebol e da caipirinha, mostrando que também é terra de arte e literatura.

"A imagem que temos do Brasil não é associada ao livro. Ao contrário de seus vizinhos, o Brasil não é visto como um país de literatura", lamentou Ana Maria Machado, presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), em discurso pronunciado na cerimônia de abertura do evento, na noite de terça-feira.

"A literatura brasileira tem muito a oferecer na diversidade de seus protótipos, sua turbulência, a renovação dos seus formatos, a variedade de registros dos diálogos irônicos em relação aos padrões atuais, além de paródias e pastiches entre os mais estimulantes", acrescentou.

"Os estereótipos que colam aos olhares lançados sobre nós se voltam muito mais para a cultura daquilo que é imediatamente apreensível pelos sentidos, o corpo. Mas um corpo em que o cérebro costuma ser esquecido", ressaltou.

"É como se não tivéssemos espírito, na celebração da dança, da música, do futebol, da capoeira (...) das peles bronzeadas que se exibem nas praias,  do carnaval, dos sabores da caipirinha. Somos mais que isso", completou.

O ministro das relações exteriores da Alemanha, Guido Westerwelle, fez coro à presidente da ABL ao declarar que o Brasil era "um peso pesado da cultura". Para reforçar a posição do país no mundo literário, o governo brasileiro liberou desde 2011 uma verba de cerca de um milhão de euros para que cerca de 300 obras nacionais sejam traduzidas em 67 idiomas.

O Brasil é convidado de honra pela segunda vez, depois da edição de 1994. Maior evento de literatura do planeta, a Feira teve cerca de  7.100 expositores e acolheu  entre 250.000 e 300.000 visitantes. até domingo.



SELEÇÃO DE AUTORES
"Este evento é fonte de esperança para o Brasil", explicou Renato Lessa, Presidente da Fundação Biblioteca Nacional, que lidera a comitiva brasileira, representada por 70 autores e 170 editoras”.

A seleção dos autores, no entanto, foi motivo de polêmica. A imprensa alemã não deixou de destacar o fato que apenas um escritor negro viajou a Frankfurt, o carioca Paulo Lins, autor de "Cidade de Deus", livro publicado em 1997 que inspirou o filme de Fernando Meirelles, sucesso internacional de público e de crítica.

Outro incidente que causou alvoroço foi a ausência de Paulo Coelho, brasileiro mais publicado no mundo, que foi convidado, mas resolveu boicotar o evento, reclamando justamente da lista de autores selecionados.


O 'Mago' alegou que conhecia apenas vinte dos 70 escritores escolhidos para representar o país. "São provavelmente amigos de amigos. É nepotismo. Temos uma nova cena literária incrível no Brasil, mas muitos destes novos autores ficaram de fora", lamentou Paulo Coelho em entrevista ao jornal alemão Die Welt.

Apesar da vontade oficial de fugir dos clichês, muitos dos livros apresentados falam sobre futebol, pegando carona na Copa do Mundo de 2014, que será organizada no Brasil.

Muitas obras também tratam da desigualdade social do país, em meio à onda de protestos pedindo melhoria dos serviços públicos desde junho. "Cerca de 9% das pessoas não sabem ler nem escrever e 20% são considerados analfabetas.

"Ocupamos os últimos lugares no ranking que avalia o desempenho escolar no mundo: cerca de 9% da população permanece analfabeta e 20% são classificados como analfabetos funcionais", criticou o escritor mineiro Luiz Ruffato.

"A perpetuação da ignorância como instrumento de dominação, marca registrada da elite que permaneceu no poder até muito recentemente, pode ser mensurada", completou.
De resto, o fazer literário no Brasil continua manipulado pelo corporativismo institucional e acadêmico, cheirando mal. Uma lástima.

                           Esse Tempo de Mim


                                    Cyro de Mattos


O Rio
 A cidade toda sabia que o rio era uma dádiva. Tão ser, tão pedra, tão água. À margem o efêmero ante o eterno que passava. Pelas mãos do areeiro a argamassa das casas era feita de fibra específica: calo, suor e areia.

Boi São Bernardo
Foi vendido velho para cumprir seu destino de boi: pasta em conserva de lata. Mas nunca ficou longe de mim. Com seu mugido ausente ecoando no verde.

King
Acompanhou-me  nas mais incríveis aventuras. Tinha o melhor salto, o melhor olfato, o melhor agrado. Tempos depois se tornou uivo em hino. Até hoje patas no meu peito me festejam.

O Aguadeiro
Quando chegava o aguadeiro, o pessoal lá de casa não sabia o que era melhor. Se a água fresca e boa que o jumento trazia nos carotes ou a limpidez de sua voz, amiga, anunciando a manhã cristalina.

O Trem
Não ficou fogo morto, nem sucata quando o trem deu o último apito. Permaneceu aquele percurso de vagões em trilhos festivos. Bandeirolas nas janelas interligando estações coloridas. Vales e outeiros,  pastos e roças, criaturas simples nos vilarejos e cidades pequenas repletas de surpresas magníficas.

A Idade Pequena
Embora eu brincasse como qualquer menino  por todos os cantos da cidade, de maneira afoita e intensa, sujas não passavam minhas roupas pelas mãos da lavadeira.  No sol das manhãs claras certamente havia um fragor de espumas. Certamente as horas com música sem a impressão das impurezas.

O Leiteiro
Ensinava o preto velho a leitura do leite. Do seu amor, sua paz; de sua generosidade, sua alegria; de sua justiça, sua sabedoria; de seus sabores brancos e líquidos nunca me esqueço. De seu canto geral para matar todas as sedes no bebedouro da vida. Das manhãs sem mácula na cidade fresca.

O Areeiro
Quando homem passava com os jumentos carregados de latas de areia, cochichavam as casas que a areia sem a pá não seria dádiva. e a pá sem a areia não seria inventiva. E a  bênção  tomavam ao rio, ajoelhando suas fachadas.

Doceira
Velhas doceiras de minha cidade, cativando com açúcar. Minha mãe era uma delas. Em suas mãos de mel, as amargas nunca.



O Sábio
Um dia, o homem mais velho da cidade, beirando 100 amos de idade,  disse-me: “Sábio é o que descobre a importância da vida nos seres e coisas comuns”. No rosto enrugado pelo tempo, com a voz serena, disse  mais:  “A inveja, o ódio, a mentira e a intriga são as bebidas preferidas dos que bebem                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            os dias como cães. Roubam a  beleza da vida. Buscam matar Deus”.