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sexta-feira, 15 de novembro de 2013

                                         Os Negros

                                                   (Relato de  Cyro de Mattos)
                       
              
O negro Sinfrônio Barbadura  chegou por essas bandas do Japará  quando tudo aqui era ainda um lugarejo, com pouca gente e algumas ruas de chão batido nas proximidades do rio. Se muito tinha o lugarejo eram umas 525 casas. A mata fechada na vizinhança, com índios, pássaros grandes, macacos, escuridões. Soube dos que voltavam para a caatinga que isso aqui era terra de bandidos, onça e cobra, léguas onde Satanás reinava. Das  muitas informações colhidas daquela gente desiludida, fixou-se em alguns detalhes e concluiu que aquelas brenhas do Japará não eram o paraíso, mas um lugar para ficar rico porque chovia muito,  a terra tinha fama de que era boa para o plantio de lavouras permanentes ou de pouca duração. Para não se falar nas matas cobertas de árvores frondosas com madeira de lei.
 Chegou acompanhado de Sabina, uma negra pequena e ainda jovem. Foram morar primeiro numa cabana de pescador abandonada na ilha.  Depois ele  se apossou de  um estirão de mata nas Salteadas, lugar que tinha esse nome porque por lá passava um ribeirão forte com muitos trechos encachoeirados. Ergueu uma  casa de taipa na clareira aberta com as árvores que derrubou a golpes de machado. Plantou roça de milho e mandioca em poucas semanas. Sabina cuidava de fazer a comida no fogão a lenha, aproveitando a caça fresca e o peixe pescado no  ribeirão ali perto da tapera.          
            Eles viajaram de navio dois dias para chegar nessas terras do Japará. E ainda tiveram de caminhar alguns dias no meio do mato para chegar até aqui no lugarejo. Caminharam através das picadas feitas pelos caçadores. Protegeram-se da chuva no oco grande de uma sapucaia. Dormiram  nas redes que armavam entre dois pés de pau. Passaram a noite junto da fogueira feita  com galhos de pau-brasil e jacarandá. Enquanto ela dormia, ele ficava acordado, vigiando  com a repetição engatilhada. Às vezes alimentava a fogueira para que não apagasse  com galhos e folhas secas. Revezavam-se durante a noite escura e quieta. Acordavam com o grito dos macacos nos galhos altos, os cantos das inhumas, sabiás, macucos, mutuns, arapongas  e outras aves.  Comiam carne salgada com farinha seca quando paravam para descansar da viagem pelo meio do mato fechado.  Matavam a sede bebendo na folha larga a água de ribeirão, que escorria escuro dentro  da mata impenetrável.
          . Ela causou espanto  a quem viu  quando apareceu no lugarejo com ele  pela primeira vez. Vestia calça e camisa de homem, mas era  uma mulher, disso ninguém duvidava. Tinha os cabelos crespos, a pele preta como a dele, os lábios carnudos, o nariz grosso. Os seios grandes apertados por baixo da camisa de algodão. Mulher naquele tempo era coisa rara por essas bandas do Japará.  Os caçadores pegavam índia  no mato a dente de cachorro. Trocava-se  na feira aquela mulherzinha quase nua por um pedaço de mata derrubada, já com alguma plantação de milho, mandioca, banana e cacau.
             Passaram meses naquela vida de trabalho e solidão no meio da mata. Faltavam-lhes  roupas,  sal,  sabão, munição  e ferramenta de trabalho. Ele chegou a ficar alguns anos derrubando as árvores nativas para o plantio de cacau. Ela ajudava-o a limpar o terreno,  abria  com a ponta do facão as covas  para que ele  jogasse  as sementes dentro. Ele chegou a colher duzentas arrobas de cacau no ano  e ainda  tinha várias roças com plantações novas, entremeadas com bananeiras.
 Nos idos de 1915, dois soldados bêbados  quiseram desarmá-lo na feira, dando ordem para que entregasse o revólver. Resistiu, brigou com os soldados, mas foi preso e teve as mãos amarradas. Lá na cadeia, os soldados  espancaram-no. Ficou num quarto escuro, sem comida e água. Duas semanas depois foi posto em liberdade
              Um dia teve notícia de que os dois  soldados estavam em Ferradas, fazendo  diligência para  capturar um bandido perigoso. Na tocaia acertou um deles no peito com tiros de repetição, o outro foi ferido na perna e no braço. O soldado ferido arregalou uns olhos de medo,  ficou tremendo no corpo todo. Disse: “Seu Sinfrônio, eu não quis lhe prender nem bater naquele dia.  Foi o outro soldado que me forçou a fazer aquilo. Tenha piedade de mim.” Tirou um cigarro do bolso, acendeu e fumou sem pressa. Quando acabou de fumar, pegou  o punhal e bradou: “Prepare-se, seu  peste,  pra engolir este doce!” O punhal entrou até o cabo na goela do soldado, que ficou com a língua de fora,  os olhos esbugalhados querendo cair na estrada.
              O delegado Procópio, um amarelinho  que tinha feito parte da volante que matou Lampião e seu grupo de cangaceiros na caatinga,  comandou   os vinte soldados que partiram num dia chuvoso para as matas das Salteadas. O negro Sinfrônio Foi atingido com uma bala de fuzil, que lhe  estourou o osso da perna. Não havia como ele escapar daquele cerco armado pelo delegado com os soldados. Até que ele então  foi atingido com outra  bala de fuzil, que  penetrou no braço e foi sair no ombro.  Foi preso e amarrado como um bicho perigoso. Sabina  assistiu tudo escondida por trás de uma moita de goiabeiras.
             No outro dia foi encontrado enforcado na cadeia. Dizem que foi o delegado Procópio que mandou fazer aquilo para vingar as mortes dos dois soldados. Ninguém soube explicar como de repente a fazendinha nas Salteadas, com as lavouras que foram  plantadas pelo  negro Sinfrônio Barbadura e a negra Sabina, foi parar nas mãos do delegado Procópio. O resto do que aconteceu ficou aí grudado na negra Sabina, pesando no  corpo e alma dela com tudo que não presta nessa vida.

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