Discurso de posse de ALAOR BARBOSA na Cadeira 29 da ACADEMIA
BRASILIENSE DE LETRAS, na sede da Associação Nacional de Escritores (A.N.E.),
em Brasília, Distrito Federal, no dia 23 de maio de 2016, às 20 horas.
Minhas Senhoras.
Meus Senhores.
Já contei esta história. Não bem história, e sim uma pequena
experiência, que, no remoto ano de 1948, na minha cidadezinha natal, Morrinhos,
no Sul de Goiás, se repetia com alguma frequência. Eu tinha então oito anos de
idade e era aluno do segundo ano do curso primário no Grupo Escolar Coronel
Pedro Nunes – o único na cidade. Na sala de aulas, existia um mapa do Brasil,
mais ou menos comprido, pendurado à parede, ao lado do quadro-negro, um pouco
acima de meia altura. Eu gostava de olhar, com atenção, no mapa. (Nasceu então,
com certeza, meu hábito de ler mapas, que me tem proporcionado a agradável
sensação e confortante percepção de que sei bem onde se situam os diversos
lugares do mundo.) Desde a primeira vez que me postei diante dele, eu reparava
em um quadradinho colocado entre os limites do Estado de Goiás, com estas
palavras dentro: FUTURA CAPITAL FEDERAL. Eu via aquela mensagem, e me enchia de
esperança, um tanto prejudicada pela dúvida: Será que um dia mudam mesmo a
capital do Brasil pra cá pra Goiás? Apesar da minha idade bastante tenra, eu já
sabia bem o que é capital: uma cidade mais importante e principal, onde fica o
governo. Ali em Morrinhos falava-se muito na nova capital de Goiás, Goiânia, uma cidade muito
nova construída mesmo para ser a capital do nosso Estado de Goiás e que eu
conhecera de passagem três anos antes (em julho de 1945) em uma viagem, com
toda a família – meu pai, minha mãe e dois irmãos – à cidade de Trindade, aonde
fomos por causa da Festa do Divino. Meu pai sempre se referia a Goiânia não
pelo nome, mas pela condição de “nova capital”. Goiânia ocupava e excitava a
minha imaginação também como cidade muito desenvolvida, moderna e propícia para
gente jovem estudar, pois lá estudava, desde 1947, meu irmão Geraldo. Quem
quisesse se desenvolver tinha de ir morar em Goiânia.
O multifacético pioneirismo concretizado em Goiânia depressa
assumiu também, é preciso lembrar, uma certa liderança no movimento de luta em
favor da mudança da Capital Federal. Coerentes com esse fato, e com a tradição
dos goianos de participarem desse movimento, foram dois parlamentares goianos,
Diógenes Magalhães (nascido em Alagoas) e Guilherme Xavier de Almeida (este,
natural de Morrinhos), que conseguiram inserir no texto da Constituição de 1946
a norma que previa e ordenou a mudança. É preciso registrar também que existia
em Goiânia, se não me engano desde 1947, uma rádio de poderoso alcance, a Rádio
Brasil Central, fundada pelo governador Coimbra Bueno, cujo lema era mais ou
menos este: “Uma emissora da Fundação Coimbra Bueno dedicada à defesa da
mudança da capital do Brasil”.
A futura capital federal precisava de nome, e eu entrei a ver
o nome Brasília, que me agradava muito, referido de vez em quando, uns quatro
ou cinco anos depois daquela época em que eu estudava no Grupo de Morrinhos.
Acho que a primeira vez foi em 1952 ou 1953, em um encarte denominado Ingra, em formato tabloide, do Correio
da Manhã, um dos mais importantes jornais do Rio (que meu pai
assinava mais para obter papel de embrulho na sua venda). As duas ou quatro
páginas centrais do suplemento Ingra eram dedicadas à defesa da
causa da mudança da capital federal para o Planalto Central. Quem as editava
era uma jornalista goiana residente havia muitos anos no Rio de Janeiro, Dayse
Porto (que eu vim a conhecer em 1956, na Associação Goiana do Rio, e de quem me
tornei, posso dizer, amigo).
Tudo o que se referisse à mudança da capital federal me
interessava muito. Esse era um assunto que raro aparecia na imprensa do País.
Mas, iniciado o governo do Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, em
janeiro de 1956, passou a existir uma certa expectativa de que ele cumpriria a
promessa, feita em Jataí, de mudar a Capital Federal. E eis que, de
repente, em setembro ou outubro de 1956, saiu, em manchete da primeira página
do jornal Última Hora, do Rio de Janeiro, a
notícia de que Juscelino Kubitschek decidira tomar efetivas providências e
medidas para construir Brasília e transferir a Capital Federal para o Planalto
Central. Se não me engano, uma dessas medidas foi o envio, ao Congresso
Nacional, de um projeto de lei, assinado na cidade de Anápolis, em Goiás, para
a constituição da empresa construtora, a Companhia Urbanizadora da Nova
Capital, NOVACAP. Eu já morava no Rio, para onde me transferira também em
janeiro daquele ano, a fim de estudar. Ainda caminhando em direção ao
apartamento onde morava, na rua Corrêa Dutra, no Flamengo, decidi escrever uma
crônica sobre o que significava para Goiás e o Brasil aquela mudança que eu
considerava profundamente transformadora. Incontinenti a redigi e despachei,
pelo correio, para o meu irmão Eurico, em Goiânia, para que ele a publicasse no
semanário Jornal de Notícias, do deputado
Alfredo Nasser, no qual Eurico colaborava. A crônica foi publicada poucos dias
depois, mas eu só soube disso bem mais tarde.
E o Presidente Juscelino entrou a trabalhar, com rapidez e
inaudita eficiência, para realizar aquela que se tornou logo a principal, a
mais importante, a mais emblemática de todas as suas metas. Juscelino tinha
pressa, pois julgava que a mudança não se consumaria senão se feita por ele
mesmo. Eu acompanhei, muito atento a tudo o que acontecia, a marcha da
construção. A cada acontecimento positivo naquela história épica, eu vibrava de
entusiasmo. Na Revista Goiana, que ajudei a
ressuscitar na Associação Goiana, no Rio, em 1958, publicamos, na capa bastante
colorida, uma belíssima fotografia do Palácio da Alvorada, já pronto, ou quase
pronto. E uma das matérias principais daquela edição tinha por objeto a
construção de Brasília: um texto poético elaborado pelo jornalista José Asmar,
um jornalista goiano muito talentoso residente também no Rio havia muitos anos
e que trabalhava no jornal O Globo. Convém observar que
os jornais mais importantes do Rio quase não falavam do assunto Brasília.
E a mudança se consumou. O que era coisa imaginária virou
realidade concreta – e se existe realidade a que se ajuste bem o adjetivo concreta,
essa é naturalmente a nossa cidade de Brasília.
O ficcionista que tenho sido há muito tempo mora dentro dessa
realidade concreta há trinta e dois anos. Uma experiência riquíssima. Sou
um deslumbrado com Brasília. O meu alumbramento se renova e repete a cada
manhã, quando saio do meu apartamento e caminho através das superquadras residenciais
da Asa Sul, depois de, por dez anos, havê-lo feito na Asa Norte. Um prazer
imenso, caminhar entre tantas árvores bonitas da minha terra goiana,
experimentando, com frequência, uma singularidade brasiliense: muitos dos
caminhantes se cumprimentam uns aos outros, com bom-dia, boa-tarde, boa-noite.
O prazer de contemplar continua quando me desloco através das amplas avenidas
do Plano Piloto, e reparo, com muita atenção, quase como se os visse pela
primeira vez, nos panoramas das sucessivas quadras e blocos sempre novos e
surpreendentes nos seus ângulos e matizes ricos em cambiantes notavelmente
bonitos e vejo, lá em cima, o espetáculo alumbrador do céu azul e límpido, que,
conforme sabemos, se constitui, já faz algum tempo, em um dos orgulhos do povo
de Brasília.
Cidade que, por ser em si mesma uma portentosa obra de arte,
e que, singularmente propícia à criação intelectual e artística, fez-se
rapidamente, já nos seus primórdios, um extraordinário e fecundíssimo ambiente
e viveiro de artistas de todas as artes, Brasília me ajudou muito a construir,
durante este tempo em que aqui tenho vivido, a parte mais significativa da
minha obra literária de ficcionista, que é, para mim, convém declarar, aquela
que verdadeiramente importa. A concretitude e onipresença da beleza desta urbe
tão original, que concretizou e que documenta a criatividade do gênio
brasileiro, e que, enquanto obra mormente humana, é também uma Cidade
Maravilhosa, fecundou minha criatividade, me proporcionando condições
favoráveis a recompor meus contos já prontos, a escrever outros tantos e a
construir os meus romances, que antes de Brasília receava muito não ser capaz
de realizar.
E hoje, agora, neste momento, assinalo e registro, com muita
e natural emoção, este fato para mim extraordinário: aquele menino que em uma
pequena cidade do interior de Goiás, sessenta e oito anos atrás, se perguntava
se algum dia a capital federal viria mesmo pra Goiás, aquele menino está hoje
adentrando e sendo generosamente recebido nada menos que na Academia Brasiliense
de Letras, uma entidade representativa do escol da inteligência, da cultura, do
espírito, da criatividade do povo que habita esta cidade tão fecunda e
fecundante. Um acontecimento para mim grandioso, memorável, marcante, por tudo
o que evidentemente significa em si e para mim em particular, inclusive o
reconhecimento, de que todo homem necessita. E que se soma aos outros
atos de reconhecimento, a mim generosamente proporcionado poucos anos atrás por
duas outras entidades culturais de Brasília igualmente importantes: o Instituto
Histórico e Geográfico do Distrito Federal e a Academia de Letras do Brasil,
que também me fizeram seu membro efetivo. Vou parafrasear o grande mestre que
foi Machado de Assis, dizendo que o reconhecimento, sinônimo de solidariedade e
apoio, fortalece e estimula, além de ser o que “eleva, honra e consola”.
Devo dizer que o reconhecimento que hoje se realiza em meu
favor, nesta cidade, vem somar-se também ao extenso rol de ações de igual
significação reconfortante que me foram proporcionadas também na terra onde
nasci: em Goiás, me tornei membro da Academia, por eleição unânime, há exatos
trinta e sete anos.
Preciso falar agora do patrono da cadeira, a de número 29,
que venho assumir hoje na Academia Brasiliense de Letras. Confesso que, ao
ouvir a sugestão, feita por esse fraterno amigo que é José Jerônimo Rivera, no
dia da sua eleição para esta Academia, de pleitear também eu uma cadeira nela –
sugestão logo reforçada pelo apoio espontâneo de outros amigos a quem devia e
devo extrema consideração, dentre os quais tenho o dever de salientar Fábio de
Sousa Coutinho e Anderson Braga Horta – muito influiu, na minha decisão de a
aceitar, esse fato de ser a cadeira, que eu poderia vir a ocupar, patroneada
por esse escritor extraordinário que se chamou Hugo de Carvalho Ramos, o qual,
ainda na puberdade, na adolescência e na juventude, produziu um valoroso livro
de histórias – intitulado Tropas e boiadas – e que, pouco depois de o publicar,
decidiu, dramaticamente, ausentar-se deste mundo por suas próprias mãos, aos
vinte e seis anos de idade.
Falemos dele, mas com a brevidade que a circunstância impõe.
Hugo de Carvalho Ramos nasceu em 21 de maio de 1895 na Cidade
de Goiás, um pequeno burgo decaído de sua antiga grandeza de centro de produção
de ouro, mas riquíssimo em cultura, em fecundas tradições, em valores humanos
de extraordinária importância, e que ainda cumpria o papel de Capital do
Estado. Ele formou o seu espírito lá mesmo em Goiás, nas escolas, na
convivência com meninos e rapazes da sua geração, e em andanças através das
zonas rurais com o seu pai, Manoel Lopes de Carvalho Ramos, um baiano de
estirpe literária que, formado em Direito na tradicional Faculdade de Recife,
se transferira para a longínqua província de Goiás a fim de exercer o cargo de
Promotor na comarca de Torres do Rio Bonito, atual Caiapônia, na zona
centro-oeste da província. Era poeta, esse Manoel Lopes de Carvalho Ramos. A
principal produção do seu estro foi o poema épico Goyania,
que conta em versos camonianos a história do descobrimento de Goiás pelo
bandeirante paulista Bartolomeu Bueno da Silva, o primeiro Anhanguera, no
último quartel do século XVII. O longo poema – que anos mais tarde forneceu o
nome da nova capital do estado – foi editado em livro, em Portugal, em 1896, e
trazido para Goiás em longas viagens de navio: um que veio de Lisboa a Belém do
Pará e outro, que subiu os rios Tocantins e Araguaia até alcançar o porto
de Leopoldina, no rio Araguaia. Desse lugarejo, hoje cidade de Aruanã, o livro
foi transportado para a cidade de Goiás, é fácil presumir que em carro de bois ou
em alguma tropa que costumava fazer o trajeto Leopoldina – Goiás.
Com dezessete anos de idade, em 1912, após os estudos
fundamentais e os médios, Hugo se transferiu para o Rio de Janeiro. Enquanto
fazia, com um talento intelectual notado por alguns colegas, mas sem
bastante empenho, o curso de Direito, ele se empenhou na sua atividade
literária escrevendo contos e poesias.
Aos vinte e um anos de idade, em fevereiro de 1917, publicou
o seu primeiro e único livro de ficção, Tropas e boiadas, cujas histórias revelam a sua profunda
identificação com a terra em que nascera. Dos catorze contos e do romance Gente da
gleba, que o integram na edição definitiva preparada por seu irmão
mais velho, Víctor de Carvalho Ramos, nenhum discrepa dessa identificação
telúrica – uma tendência literária, aliás, predominante na época. Tropas e
boiadas participa do
conjunto de livros configuradores de uma literatura regionalista que então se
desenvolvia no Brasil, e que se representa muito clara nos extraordinários
romances do baiano Afrânio Peixoto e nos belíssimos contos do gaúcho Simões
Lopes Neto, em continuação da literatura muito bem produzida pelo cearense José
de Alencar, o mineiro Bernardo Guimarães, o fluminense Visconde de Taunay, o
maranhense Aluízio Azevedo, o pernambucano Franklin Távora, o maranhense Coelho
Neto, o mineiro Afonso Arinos, o paulista Valdomiro Silveira, o paraense Inglês
de Souza, o cearense Oliveira Paiva, o baiano que viveu em Goiás, Crispiniano
Tavares, o maranhense Graça Aranha, e, pode ser incluído, o fluminense Euclides
da Cunha, e que prosseguiria, em parte, nos contos do paulista Monteiro Lobato
e nos contos e romances do fluminense Adelino Magalhães. Há quem vincule o
livro do nosso autor goiano diretamente ao belíssimo livro de contos Pelo
sertão, de Afonso Arinos, o grande filho de Paracatu, município
confinante com terras goianas deste nosso Planalto Central.
É bom esclarecer que Hugo de Carvalho Ramos, apesar de sua
condição de precursor e pioneiro no conto regionalista brasileiro, não foi o
inaugurador do conto regionalista em Goiás. Antes dele, houve o valoroso
escritor baiano, que acabei de citar, Crispiniano Tavares, o qual viveu em
Goiás na zona sudoeste – na cidade de Rio Verde – e publicou, em Uberaba, um
importante livro de contos, intitulado Contos, fábulas e folclore. Também
em 1910, ano em que parece ter sido publicado o conto O saci,
de Hugo de Carvalho Ramos, que não tinha mais do que quinze anos de idade,
saiu, no Anuário Histórico, Geográfico e Descritivo do
Estado de Goyaz para o ano de 1910, do Professor Francisco Ferreira
dos Santos Azevedo, um conto, intitulado Tragédia na roça, de autoria de uma
jovem (com vinte e um anos de idade) autora da Cidade de Goiás, Cora Coralina,
que muito tempo depois, a partir do ano de 1965, se tornaria bastante conhecida
em quase todo o Brasil, principalmente por causa da sua produção poética.
Vou transcrever o segundo parágrafo do primeiro conto deTropas e boiadas, “Caminho das
tropas”, para dar uma pequena amostra do estilo e linguagem das narrativas de
Hugo:
O Joaquim Culatreiro, atravessando sem parar o piraí na
faixa encarnada da cinta, entre a “espera” da garrucha e a niquelaria da
franqueira, desatou com presteza as bridas das cabresteiras, foi prendendo às
estacas a mulada, e afrouxou os cambitos, deitando abaixo arrochos e ligais,
enquanto um camarada serviçal dava a mão de ajuda na descarga dos surrões.”
Esse vocabulário bem marcado e o ritmo cadenciado e vigoroso
constituem a tessitura e as principais características da linguagem e estilo e
Hugo de Carvalho Ramos em todas as suas narrativas, que retratam com fidelidade
o meio rural e o das pequenas comunidades sertanejas da terra goiana. Nelas se
verifica ter ele pagado o preço da sua juventude, com algumas passagens o seu
tanto imaturas e aqui e ali açamoucadas, com lapsos e impropriedades, mas sem
prejuízo do notável e sempre presente vigor narrativo e de um extraordinário
senso das proporções. Cada história possui a extensão necessária. Isso se
verifica não apenas nos contos, mas também no pequeno romance, ou novela, como
se queira, Gente da gleba, que é certamente
uma pequena obra-prima na linguagem e estrutura e pela originalidade temática. Gente da
glebaconstitui talvez a primeira narrativa brasileira que apresenta
o drama do trabalhador rural brasileiro, e, note-se, com uma veracidade quase
documental, que não se encontra na nossa literatura senão nos romances
posteriores a 1930: nela se verificam as duras e perversas relações de
dominação e injustiça existentes entre os donos da terra e os homens que nela
trabalhavam. Um extraordinário exemplo é a cena da castração que o
latifundiário – sempre chamado apenas de Coronel – executa no pobre e indefeso
rapaz que ousara defender contra ele a posse exclusiva de uma bela mulata do
arraial de Curralinho. É bem sabido em Goiás que essas situações ocorriam na
realidade no duro mundo da vida rural.
Ao construir as suas narrativas, Hugo de Carvalho Ramos
exercitou, é fácil observar, a forte influência do estilo da prosa da época,
construído, com muita densidade, principalmente por Coelho Neto e Euclides da
Cunha, dois autores que Hugo de Carvalho Ramos leu muito e certamente absorveu
com intensidade de uma certa época em diante, conforme nos conta Víctor de
Carvalho Ramos no rico perfil biográfico que escreveu sobre o irmão mais novo.
De Coelho Neto recebeu ele muito do estilo, a técnica de narrar, o gosto da
minúcia. De Euclides, a visão sociológica, que se mostra em algumas passagens
que parecem inserções estranhas em um texto de narrativa ficcional. Uma delas,
julgo necessário transcrever, apesar de um tanto longa:
Geralmente, o empregado na lavoura ou simples trabalho
de campo e criação, ganha no máximo quinze mil-reis ao mês. Quando tem longa
prática no traquejo e é homem de confiança, chega a perceber vinte, quantia já
considerada exorbitante na maioria dos casos. É essa a soma irrisória que deve
prover às suas necessidades. Gasta-a em poucos dias. Principia então a tomar
emprestado ao senhor. Dá-lhe este cinco hoje, dez amanhã, certo de que cada
mil-reis que adianta, é mais um elo acrescentado à cadeia que prende o
jornaleiro ao seu serviço. Isso, no começo do trato; com o tempo, a dívida
avoluma-se, chega a proporções exageradas, resultando para o infeliz não poder
nunca saldá-la e torna-se assim completamente alienado da vontade própria.
Perde o crédito na venda próxima, não faz o mínimo negócio sem pleno
consentimento do patrão, que já não lhe adianta mais dinheiro. É escravo da sua
dívida, que, no sertão, constitui hoje em dia uma das curiosas modalidades do
antigo cativeiro. Quando muito, querendo dalgum modo mudar de condição, pede a
conta ao senhor, que fica no livre arbítrio de lha dar, e sai à procura dum
novo patrão que queira resgatá-lo ao antigo, tomando-o ao seu serviço. Passa
assim de mão em mão, devendo em média de quinhentos a um conto e mais, maltratado
aqui por uns de coração empedernido, ali mais ou menos aliviado dos maus
tratos, mas sempre sujeito ao ajuste, de que só se livra, comumente, quando
chega a morte.
Não posso deixar de apresentar mais uma pequena amostra da
linguagem e estilo de Hugo de Carvalho Ramos, transcrevendo um pequeno trecho
de Gente da gleba:
A madrugada amiudava. Já as barras vinham quebrando e
no cabeço dum serro, mui branca e tremeluzente, a estrela-d’alva minguara o seu
clarão lacrimejante, anunciando o romper do dia.
Rédeas encurtadas, a niquelaria da cabeçada retinindo
festivamente, Benedito deu entrada no arraial no trote picado da mula, que
frechou direita ao rancho dos tropeiros.
Finalmente, devemos lamentar que Hugo de Carvalho Ramos venha
caindo no esquecimento, tal como tem acontecido a um grande número de
escritores brasileiros, não só da sua época. Seu livro Tropas e
boiadas nunca
mais foi republicado, depois que mereceu uma bela edição, a quinta e última, em
1965, com um valioso estudo introdutório elaborado por Manoel Cavalcanti
Proença. O mesmo se diga do volume das suas Obras Completas, editado bem antes
da quinta edição de Tropas e boiadas, calculo que na
década de 1950, o qual incluiu, naturalmente, a sua produção poética, a qual,
ao meu ver, não é de modo algum despicienda. Convém apresentar uma pequena
amostra dessa produção: o poema “Sonho desfeito”, incluído por Veiga Netto na
sua preciosíssima “Antologia Goiana”, editada em Goiânia no ano de 1944, com a
informação de ter sido “Encontrado entre as páginas de um livro no Gabinete
Literário Goiano”:
E, contudo, também eu trouxe para a vida
Uma grande expressão de calma e de harmonia,
Que a tristeza do mundo aos poucos asfixia
Dentro dalma a sangrar pela dor mal-ferida.
Era um hino de paz, na apoteose do dia,
Erguendo para o céu campanários de ermida
Onde fosse rezar a prece mais sentida
O devoto de amor que dentro em mim jazia.
Mas depressa rasgou-se o hinário da esperança,
As páginas, então, dispersaram-se ao vento
E do passado esplendor já não há mais lembrança.
Ficaram para sempre enterrados no peito,
Ecos, sumida voz, que exalo num lamento
Ossuário de ilusões do meu sonho desfeito...
Julgo-me no dever também de falar do primeiro ocupante desta
Cadeira 29, o ilustre biógrafo e historiador baiano Luiz Viana Filho.
Nasceu ele, acidentalmente, em Paris, na França, em 28 de
março de 1908, e faleceu na cidade de São Paulo, em 5 de junho de 1990.
Político desde jovem, participou das assembleias nacionais constituintes de
1934 e de 1946, foi governador da Bahia de 1967 a 1971, ministro de Estado,
senador da República, membro da Academia da Academia de Letras da Bahia, da
Academia Brasileira de Letras e desta Academia Brasiliense de Letras. São
consideradas clássicas as suas biografias de Rio Branco, Rui Barbosa, Joaquim
Nabuco, Machado de Assis, José de Alencar e Eça de Queiroz.
No seu discurso de posse na Academia Brasiliense de Letras,
ocorrida em 3 de dezembro de 1982, Luiz Viana Filho focalizou a
personalidade literária do patrono, Hugo de Carvalho Ramos, apresentando
um bom perfil biográfico, do qual constam reveladoras citações de
cartas que Hugo remeteu a uma irmã, e um paciente levantamento da surpreendente
fortuna crítica, unanimemente positiva, que alcançou o livro Tropas e
boiadas. Vou transcrever um pequeno trecho do discurso de Luiz
Viana Filho: “Não nos estenderemos sobre as apreciações com que a crítica
recebeu Tropas e boiadas. Mas, não podemos
silenciar haver Viriato Correa lido três vezes o livro, tanto este o empolgou.
E Jackson de Figueiredo afirmou cheio de entusiasmo: ‘Digo sem medo de errar
que, dos escritores da nova geração, nenhum se apresenta assim, à entrada da vida
literária, com tantas e tão formosas qualidades artísticas, tão segura técnica
de um gênero difícil ou, pelo menos, raramente cultivado entre nós.’ Ao mesmo
tempo em que, para o irreverente Antônio Torres, ‘Mágoa de Vaqueiro’ é quase
uma pequena obra-prima”.
É preciso – digo eu – ousar corrigir o severo Antônio Torres,
afirmando que “Mágoa de vaqueiro”, pungente drama de um sertanejo que morre de
paixão por ter sua filha fugido com o namorado, é, sim, uma perfeita
obra-prima – e não é a única em Tropas e boiadas. Também se pode
assim classificar ao menos mais três das narrativas curtas: “O saci”, “A alma
das aves” e “Ninho de periquitos”, e o romance Gente da
gleba.
Também o meu antecessor imediato, Kurt Pessek, ao se empossar
nesta Casa, no dia 25 de setembro de 1991, na condição de sucessor de Luiz
Viana Filho nesta Cadeira 29, se referiu a Hugo de Carvalho Ramos, com concisão
mas com bastante justiça. Disse Kurt Pessek que Hugo de Carvalho Ramos “surge
vulcânico, a arrostar a crítica, a se impor. Firme e engenhoso, faz
nascer criaturas que parecem respirar”. E arremata: “Sentar na cadeira de
Carvalho Ramos dignifica qualquer um”.
Falando de Kurt Pessek, devo informar que nasceu na
cidade do Rio de Janeiro em 1934, e faleceu em Brasília, em 2013. Seguiu a
carreira militar, ingressando no Exército, no qual alcançou o posto de coronel.
Atuou também na Aeronáutica. Participou do governo federal, na presidência do
General Ernesto Geisel. Foi também jornalista, tendo dirigido o jornalÚltima Hora em Brasília. De sua atuação política é
justo e necessário salientar que prestou valiosa contribuição ao processo de
redemocratização do Brasil, ao participar, em 1984 e 1985, da campanha
eleitoral do governador de Minas Gerais, Tancredo Neves, candidato a Presidente
da República, e que, eleito pelo Colégio Eleitoral, faleceu antes de tomar
posse do cargo.
Pessek escreveu vários livros, entre os quais se salientam:Espada, Terço e Trabuco, Os
patriotas e Os descaminhos da Liberdade, ambos os três de ficção
histórica. O primeiro, no dizer de Cassiano Nunes, “descreve as primeiras
décadas do século XIX no Ceará, as lutas entre os Melos e os Mourões e
personagens ligadas à Igreja e ao Exército. Informa mais Cassiano Nunes: “O
volume, baseado em documentos fidedignos, demonstra que a grande luta, no
Brasil, foi sempre a luta pela posse da terra, pela grande propriedade,
problema que continua atual no sertão, no campo. A obra, com serenidade e
imparcialidade, demonstra também que a nossa história real – não a oficial,
versão rósea dos fatos – está marcada pela violência e pela crueldade”. Os
patriotasreconstitui um breve momento – entre o início de outubro e
o decurso de dezembro de 1711– da história do Brasil: o episódio de uma quase
revolta popular contra a Coroa Portuguesa. Os patriotas, premiado em 1984 pela Fundação
Cultural do Distrito Federal, foi editado em 1985. Os
Descaminhos da Liberdade é
um romance que reconstitui a chamada Inconfidência (que sempre prefiro chamar
de Conjuração) Mineira.
O trabalho literário que certamente assegura a Kurt Pessek
segura permanência no concerto dos autores brasileiros é oDicionário de Palavras Interligadas, Analógico
e Ideias Afins, editado, em Brasília, em 2010. Obra de
extraordinário fôlego, contém 809.075 verbetes, muitos deles definidos e
exemplificados de modo muito minucioso, em mais de uma página. Esse livro
exigiu do autor mais de quarenta anos de pesquisas e mais de trinta anos de
trabalho na fase da escrita. Para escrevê-lo, recorreu a sessenta e oito obras
de outros autores. Que eu saiba, antes desse dicionário de Kurt Pessek só
apareceram, no Brasil, dois outros da mesma natureza: o primeiro, intitulado Dicionário
Analógico da Língua Portuguesa (Ideias Afins), de autoria de um
professor secundário da Cidade de Goiás, Francisco Ferreira dos Santos Azevedo,
e que, embora elaborado ainda no início do século passado, somente veio a
ser editado após a morte do autor, já na década de 1940; e o outro,
denominado Dicionário Analógico (Tesouro de vocábulos e
frases da língua portuguesa), escrito
pelo sacerdote jesuíta Carlos Spitzer, alemão criado, a partir dos cinco anos
de idade, em Porto Alegre, onde foi professor – lente catedrático –, no Colégio
Anchieta, e que faleceu com apenas trinta e nove anos de idade, em 1922. Seu
dicionário foi editado também postumamente, em 1936, em Porto Alegre.
Tive a satisfação e privilégio de conhecer Kurt Pessek em
pessoa, em um encontro único, ocorrido em um almoço do Clube dos 21 Irmãos
Amigos, nesta Capital, a que fui generosamente convidado pelo meu saudoso amigo
Dario Abranches Viotti, valoroso escritor e jurista mineiro-paulista de quem
tive a honra de ser colega de trabalho na Consultoria Legislativa do Senado
Federal. Durante o almoço, realizado, calculo que em 2002, ou 2003, no restaurante
do Clube de Golfe de Brasília, sentei-me à mesa ao lado de Kurt Pessek. E
conversamos. Ele se revelou um conversador inteligente, culto, agradável,
generoso. Eu ainda não sabia, então, que ele escrevia. Depois é que o soube,
presumo que por informação de Dario Viotti.
Possuo também de Kurt Pessek uma palestra, de cunho
filosófico, gravada em um documento audiovisual, sobre o temaVida, que ele pronunciou em 2008 no
mesmo Clube dos 21 Irmãos Amigos, e que me foi gentilmente proporcionado, junto
a um exemplar do romance Os patriotas, pela sua viúva, Neuza
Pessek, a quem devo, mais uma vez, agradecer, desta vez de público, por suas
bondosas atenções.
Kurt Pessek ingressou nesta Academia no dia 25 de setembro de
1991, tendo sido saudado pelo professor, ensaísta e poeta Cassiano Nunes, um
paulista de São Vicente que escolheu Brasília para viver a parte mais madura e
a derradeira da sua vida. Devo transcrever, do discurso de Cassiano Nunes,
estas palavras: “Senhor Kurt Pessek! Vós chegastes ao vosso lugar! Aprestai-vos
para as campanhas incruentas do intelecto, para o mutirão em que o espírito
nacional já está transformando o presente em futuro! Brasília é o lugar ideal
para concretizar esse sonho de missão intelectual”.
Do discurso de posse de Kurt Pessek, considero relevante
apresentar um expressivo trecho: “Meus senhores e minhas senhoras, sou a
dizer-lhes, em nome da gratidão, que apesar de ter escrito por anos a eito para
outros, minha verdadeira oportunidade surgiu na querida Fortaleza, pela mão do
Presidente da Academia Cearense de Letras, Cláudio Martins. A ele, e só a ele,
devo a publicação do meu livro Espada, Terço e Trabuco, no qual
tento mostrar a atuação das três grandes forças que formavam o Brasil
monárquico.
“Há mister encerrar o discurso. Se sou com os confrades desta
Casa de cultura, sou por galhardia de seus notáveis membros. Saibam ter sido
esta a maior venera que a vida me ofereceu”.
Mais adiante, depois de informar: “Procurei exaustivamente no
regionalismo brasileiro o exemplo de fé capaz de dizer o quanto me vai n’alma”,
declarou Kurt Pessek: “Ainda no regionalismo, uso do verso que encontrei no
livro Mil Quadras Populares Brasileiras, Carlos de Góes
(1916). Serve-me bem de encerro:
Eu vou dar a despedida
Como deu o São José
Foi saindo, foi dizendo
Té amanhã, se Deus quisé.
Concluo, enfatizando minha gratidão muito
profunda a todos os membros da Academia Brasiliense de Letras que tiveram a
bondade de sufragar meu nome para compor este sodalício que tanto honra e
valoriza a vida cultural de Brasília e do Brasil. Preciso agradecer de modo
bastante enfático o apoio, em que se mostrou infatigável, que me prestou o meu
amigo Fábio de Sousa Coutinho.