Páginas

sábado, 25 de maio de 2019


                       



                              O Doce

                  Cyro de Mattos

Coloquei um doce bom
Na boquinha de meu bem
Quando a mulher ama
Que doçura o homem tem.


Filhos, netos, parentes, de bom gosto alardeavam o feito incrível alcançado pelo pai. . Caso raro no planeta.  Alcançara a marca de 102 anos de idade. A comemoração festiva, os familiares, a cada ano do aniversário.  Ele nem ligava. As vozes fraternas  pelos cômodos da casa modesta.
Falava, escutava, cantarolava baixinho.
Gostava de pegar o banquinho, a enxada com o cabo pequeno. Sentava-se no quintal, Ali,  extirpava a erva  daninha, paciente. Lavrador desde jovem, hábito que cultivava prazeroso na passagem das estações. Mexia nas  veias e nervos, a tendência para lavrara a terra, lavouras de curta duração.
O  tempo, benevolente,  de mansinho ia sustentando-o. Ajudava a carregar as porções da vida na cacunda.
Morava com a filha Nicota, costureira de mão cheia, enviuvara   quando  andava nos seus 85 anos. Não tinha filhos, da vida não se queixava.
Pela manhã, com o sol quente, encerrava o agrário ritual pelo quintal.
Pela tarde, tirava um soninho, depois de fazer a refeição do almoço. Constava apenas de mingau de aveia e um copo de limonada.
Voltava à tarde ao ritual no quintal quando o sol esfriava. 

“Tá na hora de tomar seu banho”, dizia Nicota, chamando-o à porta da cozinha, que dava para o quintal. 
Recolhia-se para o banho fresco. Arrumava com cuidado  os cabelos ralos, a cabeça miúda.  Aparecia na sala para a última refeição do dia, mais uma merenda. Chá de cidreira com bolacha ou rodelas de pão torrado.
Quando havia visita da vizinha ao lado, aparecia na sala. Perfumado.   Os olhinhos miúdos, como duas contas, brilhavam. Vestido de camisa e calça azul, de mescla. A roupa engomada com cuidado pela Nicota, como ele pedia sempre.
Dizia para a visita:
- Dona, me arranje uma namorada.
A vizinha Lenilda,  viúva oitentona,  sorria.
Doceira de mão cheia, de voz macia, dava água na boca só de pensar nos doces que faziam as mãos dadivosas da vizinha Lenilda. 
A cada visita da vizinha à filha Nicota, na encomenda de um vestido ou blusa com florzinhas,  o pedido dele  não faltava.
- Me arranje uma namorada, dona...  te dou um doce.
Um dia, a vizinha apresentou-se como a eleita, que tanto ele procurava.  Alegre, a voz  cantante, maviosa.
Casamento no padre e no juiz. Casório bastante comentado na cidadezinha, aplaudido por uns, desaprovado por outros.
Agora, ao invés de oferecer um doce à antiga vizinha, ganhava dela  vários doces, uma delícia nos ingredientes caprichados. De abacaxi, goiaba,  batata doce, carambola, laranja, mamão, banana, jaca e até de bala de jenipapo. Tinha também  o de pudim de tapioca.  Uma gostosura.
O doce de leite era o  que ele mais gostava. 
Não cansava de elogiar o predileto. Chegava a chorar, de tanto comer esse tipo de doce. Se não recebesse um freio da Lenilda,  era capaz de acabar com a vida ali mesmo, de tanto comer e se lambuzar de doce de leite.





domingo, 12 de maio de 2019


                                       


                                      Mãe
       
                                            Cyro de Mattos
        
                

                   A  mãe era afeto, dedicação, bons conselhos. Apressada dizia: “Menino, já para dentro,  que  vem o vento ventoso   levado, levando cisco!   Menino, já para  dentro!” Alertava: “ Boa romaria faz  quem em sua casa está em  paz.” Gostava de fazer adivinhas.  Sobre o sol:  “ O que é,  o que é, o ano todo no deserto o mais quente é?”  Para estimular na resposta correta, ela recomendava: “Responda certo como um menino esperto.” De pura carícia era a adivinha sobre a própria mãe.  “O que é,  o que é, o beijo da noite, de dia a melhor sombra é?” Para facilitar na resposta dizia  que todos os dias essa pessoa acompanhava de coração  o filho onde ele estivesse. 
           A casa era pequena, mas os dias tinham sempre as  mãos zelosas da mãe. Colocavam nos vasos aquelas  rosas,  como sonho deixavam a manhã rosada e perfumada. Esbanjavam pelos ares só ternura. Davam vida à máquina de costura as suas pernas ativas. Os bordados, como beleza tecida por mãos até certo ponto divinas, ganhavam admiração de quem fizesse a encomenda e fosse recebê-la pronta.   Como o mundo de Deus era grandão. Os  doces que a mãe fazia   cativavam com açúcar.
        Uma mãe  é para cem filhos, mas cem filhos não são para uma mãe, ela  disse. Só depois como homem crescido,  o filho saberia o sentido justo do que  ela quis dizer com isso. Conheceria então   nos dias quanta falta suas mãos faziam, pois já não mais  cuidavam, não limpavam os caminhos do filho na lei da vida, agora teria  de ser sem ela   a  travessia.
        - Você quer ser peixe ou ser gente? – preocupada,  a mãe perguntou. - Primeiro a obrigação, depois a diversão, você só anda agora nadando e pescando no rio com o bando de amigos.  Finalizou e se dirigiu  calada para a cozinha.
          Com os queridos amigos, o filho nadava, mergulhava e pescava no rio,  que descia sereno com as águas de fontes puríssimas, dividindo a cidade em duas partes. Ultrapassava os seus limites na aventura da vida e alcançava as linhas do horizonte.  A mãe comungava com o desejo do pai. Sonhava com o filho formado  na profissão de advogado. Ao lado do marido,  não poupava esforços para que isso acontecesse um dia. O filho foi estudar interno no Colégio Irmãos Maristas,  em Salvador. Foi quando o tempo cor de sombras hospedou-se no corpo da  mãe com a doença traiçoeira. Não sabia  como,  em Salvador, conseguia estudar à noite no quarto enquanto ouvia no outro os gemidos da mãe. Doíam, como doíam. Das noites sem madrugada não houve nela revolta enquanto perdurou a agonia. Sem abraçar o rancor, escondia o choro no travesseiro.
        Sem esquecê-la, anos depois, andou solitário nas terras longes. Certo dia,  entre medos e sombras,   pressentiu  que as horas ultimavam  a vez de a mãe ser do vento memória. Chorou. Teve  saudades de si. Procurou  razões que explicassem essa hora do inevitável,  a mais certa de nossos momentos.  Nada, nada achou  nessa noite que se cobre com um sossegado manto eterno.   O que é, o que é, viver para morrer? Eis a questão, ser ou não ser. Quem é o mais sábio dos humanos que já achou a  resposta certa dessa adivinha? Cada um no seu canto, nesse  vale de lágrimas,  sofre o seu tanto, dissera a mãe.  


·        Cyro de Mattos é escritor e poeta. Da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz.



quarta-feira, 1 de maio de 2019


            


                       Louvor da Virgem Maria
                       
                                Cyro de Mattos

A imagem da Virgem Maria era guardada no nicho de cedro. Permanecia no altar, embaixo de Jesus crucificado pendurado na parede.  A mãe forrava o pequeno  altar  com um pano de linho branco. Havia no oratório  jarros com flores, velas nos castiçais, eram acesas quando a mãe ia fazer suas orações.
       A mãe organizava a  pequena procissão, ela conduzia à frente a imagem da Virgem Maria, as outras mães seguiam  formando duas filas nas laterais da rua,  uma de cada lado, no meio as crianças levavam flores nos braços. As velas acesas, os cânticos e as rezas pela rua. A procissão saía da casa  onde a mãe morava e terminava em outra, que podia estar localizada na rua de cima. Ali, a imagem da Virgem Maria era entregue à dona da casa, que estava pagando uma promessa. O filho havia sido lembrado pela santa, fora salvo de uma doença que atacou o fígado da criança, já estava desenganada pelos médicos. A mãe em desespero não sabia mais o que fazer. Rogou à Virgem Maria pela salvação do filho e fez a promessa. Obteve a graça.
       Os rostos contritos, as rezas e os cânticos  na rua por onde  passava a pequena procissão, atraindo pessoas, que apareciam no batente das portas ou vinham até  as janelas.

                 Ave, ave, ave, Maria!
                 Ave, ave, ave, Maria!
                 Aos treze de maio
                Na Cova da Iria
                Aos três pastorinhos 
               Apareceu a Virgem Maria.

               Ave, ave, ave,  Maria!
                Ave, ave, ave,  Maria!

      Soltavam fogos coloridos, adrianinos e foguetes  quando  a  imagem da Virgem Maria era entregue pela mãe à dona da casa, que havia  alcançado a graça e estava pagando a promessa.  A imagem da Virgem Santa permanecia nove dias na casa da dona da casa, quando então era rezado à noite o terço  com as filhas de Maria. Quando a imagem da santa regressava  para a sua casa de origem, a mãe vinha recebê-la na porta.A seguir, rezava-se o terço. No final da reza soltavam-se de novo fogos coloridos.
       Com os corações contritos, terminada a reza, os que participavam da devoção à Virgem Maria regressavam  às suas casas. No outro dia a imagem da Virgem  era guardada no nicho.
       Era assim que, na cidade com cerca de vinte mil habitantes, a mãe e outras mães demonstravam o seu amor e a sua fé por  Nossa Senhora.      
       Todos os anos.  


·        Cyro de Mattos é escritor e poeta com prêmios literários importantes, no Brasil e exterior. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz, Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia,  Pen Clube do Brasil e  Ordem do Mérito do Governo da Bahia, no grau de Comendador.