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domingo, 23 de maio de 2021

 

Negrinha Benedita 

 

Por causa

dum frasco

de cheiro

apanhou

de chibata.

Os outros

assombrados

não puderam

fazer nada.

 

Sem andar

dias ficava.

Quando sarou,

falou ao vento

que ia embora.

Pelo mato

foi voando,

escapou

da cachorrada.

Teve sede,

teve fome,

levou espinho

pela cara.

 

Para trás

não olhava.

Com uma

espada afiada

que lhe deu

uma mão oculta

um dia viu

no quilombo

que ali era

a sua morada.

 

Aconteceu

que depois

a cabeça

da sinhá

amanheceu

decepada.

Ninguém viu

como se deu

na escuridão

daquela noite

a revanche

assim marcada.

Por causa

dum frasco

de cheiro

que ela pegou

pra ser cheirada.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

domingo, 16 de maio de 2021

 

                      Mais Um Título de Glória

                                      Cyro de Mattos

 

          O Bahia é tetracampeão do Nordeste no formato atual do campeonato. Ganhou dessa vez na disputa de pênaltis, dois a um no tempo normal, contra o Ceará, lá em Fortaleza, cancha do rival. É bom lembrar que quando a Confederação Brasileira de Futebol criou a Taça Brasil o Bahia foi o primeiro a conquistar o título inédito de campeão brasileiro. Derrotou quem, quem mesmo? O Santos de Pelé, na Vila Belmiro e depois  no palco lendário do Maracanã, na terceira partida melhor de três.   

Para disputar o título de campeão brasileiro com o Santos, o Bahia teve antes que se sagrar campeão do Nordeste. Várias vezes foi o vice-campeão da Taça Brasil e, em consequência, muitas vezes campeão do Nordeste. Naquele tempo era assim, o campeão do Nordeste disputava o título de campeão brasileiro com o time que vencesse o torneio   disputado entre os campeões do Rio, São Paulo, Minas e Rio Grande do Sul.

  Lá estava o Bahia no pódio da glória eterna. O primeiro time nordestino a pisar no tapete verde do Maracanã. O primeiro a se sagrar campeão brasileiro numa jornada épica.   

Outro feito notável foi aquele em que se sagrou campeão brasileiro na disputa do título contra o Internacional. Dois a um na Fonte Nova. Zero a zero no Beira-Rio. Sabe quem era o goleiro do Internacional? Tafarel. Ele mesmo, de quem o narrador Galvão Bueno gostava de dizer, sai que é sua, Tafarel! Aquele mesmo goleiro que tempos depois iria se consagrar como pegador de pênalti quando vestia a camisa da Seleção Brasileira. Seria para muitos o maior goleiro da Seleção Brasileira. Contra a Itália pegou até pênalti nas batidas para saber quem era o país campeão mundial.    

Bahia! Bahia! Bahia! Escuto do povo o clamor, o grito que salta de seu hino vibrante e lateja no meu coração.  Mais um Bahia, mais um Bahia, com glória é assim que escreves a história, pois nasceste para vencer, renascer das sombras quando as nuvens da vitória decidem se movimentar ao contrário. O torcedor não precisa se irritar, logo as nuvens do azar hão de passar. Não custa esperar, não precisa andar de cabeça baixa, torcedor do Bahia na derrota é como vara de bambu, enverga, mas não quebra. O grito conhecido certamente irá aparecer com todas as forças que o amor é capaz de reunir.  É campeão! É campeão! É campeão!

          Como esquecer a primeira vez que vi jogar esse time chamado pelo torcedor de esquadrão de aço? Foi no velho Campo da Desportiva, de minha cidade natal. Foi contra o Flamengo local. Bahia quatro a um. Não podia ser diferente, também pudera, um time profissional da Capital contra um time amador do interior. O resultado não podia ser outro. Nessa partida que até hoje ficou na mente como memorável brilhou no Flamengo o talento do craque itabunense Léo, que seria depois um atacante dos melhores no Fluminense carioca e campeão da Taça Brasil pelo Bahia.

           Foi aí que conheci pela primeira vez, naquela partida amistosa para comemorar o aniversário da cidade, alguns craques do tricolor baiano, como o lendário goleiro Leça, o incansável Gereco, um driblador impossível, o ponteiro-esquerdo Isaltino, dono de um chute violento, preciso, indefensável, o zagueiro Arnaldo, saía sempre da área com a bola tratada com fineza.  Foi naqueles instantes de domínio da bola com classe que o menino, torcedor do Flamengo local, ficou com os olhos arregalados, saiu encantado do estádio lotado com as jogadas dos craques do Bahia.

        Ah, meu Bahia, foi paixão que, no primeiro olhar, nascia de calça curta na cancha da Desportiva, um modesto campo do interior, e que seria levada tempos depois com grandeza e entusiasmo pelos estádios monumentais do Brasil.

segunda-feira, 10 de maio de 2021

 

AS GARÇAS

                                                        Cyro de Mattos

 

Chegaram sem avisar e se instalaram em alguns pontos do rio. Ficam espalhadas sobre as pedras e nos locais onde existem baronesas cobrindo as águas empoçadas. Permanecem aos grupos, no trecho em que o rio dá uma volta grande e começa a se despedir da cidade, rumo ao mar, depois da  Ponte Velha. Dizem que escolheram para a dormida as árvores grandes de uma ilha no meio do rio. Falam que apareceram aqui para o acasalamento. Alguns discordam, achando que vieram em busca de alimento. Com o desequilíbrio que vem ocorrendo constantemente no ecossistema, comenta-se que tiveram de buscar novo pouso onde pudessem se alimentar.

O rio há meses está seco. Com as águas empoçadas, em muitos trechos coberto de baronesas, os peixes vêm à superfície em busca de ar, tornando-se presa fácil das garças. Se elas vieram em busca de alimentos como querem alguns, ou de novo sítio para o acasalamento como defendem outros, as divergências deixam de existir num ponto em que todos esperam que aconteça para sempre. As garças não devem mais sair do rio. Em seus perfis brancos e passos pernaltas, trouxeram novo visual ao rio, onde quer que estejam, nas pedras pretas, ilhotas e baronesas. Solitárias ou em pequenos grupos.

Essa é a primeira vez que elas aparecem por aqui. Com os seus voos serenos já fazem parte da vida da cidade. Em sua pose vertical para a foto ou quando uma delas desliza como nave em seu voo lindo, de noiva do azul.  É comum se ouvir falar sobre elas nos bares, esquinas, barbearias, ao longo das margens entre os ribeirinhos. São notícias nos jornais, rádios, nas duas emissoras de televisão.

Com a represa que fizeram próxima à ponte velha, o rio teve a sua paisagem modificada. Deixaram de existir as lavadeiras que estendiam as roupas nas pedras pretas e ofereciam de graça um espetáculo diversicolorido, sob a luz forte do sol de verão. Os tiradores de areia não passam mais com os jumentos carregados de latas de areia, rumo às construções próximas e bairros distantes. Com a represa, a paisagem do rio tornou-se monótona, principalmente no trecho em que o Cachoeira corta a cidade em duas partes. Agora, somente um extenso local d’água no curso sereno do rio, com a represa que construíram para evitar que o velho Cachoeira se espraiasse nas margens, invadindo a cidade, quando da cheias grandes.

Elas sobrevoam pela manhã esse extenso lençol d’água, dando um visual de encanto e paz. Amenizam a paisagem feia do rio, que, chorando água, recebe agora, em muitos pontos, uma matéria viscosa deixada pelos esgotos. Comenta-se que o rio já teve muitos peixes e que, há algumas décadas, a sua água nas correntezas era clara. Você via no leito do rio peixinhos e pedrinhas redondas.

Grandes e pequenas, bico amarelo ou preto, as garças vivem aos bandos. Moram nos rios, lagoas, charcos, praias marítimas, manguezal de pouca salinidade. Alimentam-se quase só de peixes. Branco caminho de trilhas aladas, sou daqueles que acreditam que as garças tenham trazido certa paz a algumas pessoas. Certo bem-estar, por alguns instantes, a algumas pessoas que andam com os passos sofridos nos dias atuais. Ante a onda de violência, corrupção, carestia da vida e fome.

Vertical foto anuncia ave ou asas no tempo vestido de branco, vejo as garças no voo suave, trazendo ondas pela campina amada. Levam-me nos dias sem mancha. Natural que eu me junte à vontade de muitas pessoas desejando que as garças fiquem no rio para sempre. Nunca nos deixe com essa canção branca, nesse sonho da manhã que alveja graça.

                                            

 

 

 

 

 

 

 

domingo, 2 de maio de 2021

 

             


               A Saga Marinha de Fernando Pessoa*

                                 Cyro de Mattos

 

A saga portuguesa de expansão marítima é contada em versos por Fernando Pessoa no único livro que publicou em vida: Mensagem (1934).  Foi escrito entre os anos de 1920 e 1930, em forma de uma epopeia fragmentada, composta de quarenta e quatro poemas. Fernando Pessoa expressa neste livro o elogio de grandes vultos históricos, refere-se à vontade de Portugal de querer lutar contra as adversidades, ultrapassar os abismos que Deus ao mar deu.

 

            O sonho de ver as formas invisíveis

 Da distância imprecisa, e, com sensíveis

 Movimentos da esprança e da vontade,

 Buscar nas linhas do horizonte

                    A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -

                    Os beijos merecidos da verdade.

 

.      Nesses versos é visto o sentimento nostálgico mesclado de grandeza, enquanto em outros ocorre o apelo de além: “Deus quere, o homem sonha, a obra nasce.”

       Mensagem divide-se em três partes: Brasão, Mar Português e o Encoberto. A primeira possui várias vozes, que se integram para celebrar a história de Portugal e enaltecer os seus fundadores. Estrutura-se como o brasão português, constituído por dois campos, um apresentado por sete castelos, já o outro formado por cinco quinas.  A coroa e o timbre estão no topo do brasão, a se apresentar com o grifo, animal mitológico que tem cabeça de leão e asas de águia.

       Com essa divisão, tendo o brasão como referência, os poemas versam sobre os grandes personagens históricos, desde Dom Henrique, fundador do Condado Portucalense, passando por sua esposa Dona Tareja e seu filho Dom Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, até o infante Dom Henrique (1934-1460), fundador da Escola de Sagres, grande fomentador da expansão ultramarina portuguesa, e ainda aludem a Alfonso de Albuquerque (1462-1515), dominador luso do Oriente. Na galeria dos grandes personagens, os versos dispostos em uma partitura trinitária propõem até o mito de Ulisses, que teria fundado a cidade de Ulissepona, depois denominada Lisboa. O poeta usa o paralelo imagístico quando se refere a esse assunto:

 

O mito é o nada que é tudo.

O mesmo sol que abre os céus

É um mito brilhante e mudo.

         

          Em “Mar Português”, segunda parte do livro, o poeta investe contra o que fosse acaso ou vontade ou até mesmo temporal. Leia-se a propósito do assunto esse lamento cheio de dor, um dos mais pungentes da poesia portuguesa sobre o ciclo das descobertas marítimas:

 

                   Ó mar salgado, quanto de teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram.

Quantos filhos em vão rezaram.

Quantas noivas ficaram sem casar

Para que fosses nosso, ó mar!

 

      Depois de se perguntar se a jornada de natureza épica valeu a pena, o poeta em versos de saber eterno, que correm o mundo, levados através da linguagem coletiva, em nível de fala, responde que “tudo vale a pena, se a alma não é pequena”.            

      Seu pensamento reflexivo acrescenta:

 

                   Quem quer passar além do Bojador

                   Tem que passar além da dor.

         

          Em “O Encoberto”, terceira parte de Mensagem, vemos o mito sebastianista do retorno de Portugal às épocas de glória. Alude o poeta agora ao misticismo em torno da figura de Dom Sebastião, rei de Portugal, que teve a frota dizimada em ataque aos mouros, em 1578. Muitas previsões, como a do sapateiro Bandarra e a do padre Antônio Vieira, formulam nesse trâmite espiritual o retorno de Dom Sebastião para resgatar o poderio de Portugal. Anunciam a nova terra e os novos céus, quando então fica criado o Quinto Império, que marca em definitivo a supremacia de Portugal sobre o mundo.

          O sentimento nacionalista permeia os poemas de Mensagem. Uma estrofação com base no elogio aflora da alma gentil do poeta, os versos ressoam uníssonos para ferir objetivos universalistas, como facilmente podem ser detectados nesse padrão de técnica literária. Classificada pela crítica como ode trinitária, nessa obra o poeta propõe sua mensagem com o cerne da nobreza, formula uma antítese na posse do mar, que antes existia com seus medos, mistérios e assombros, incide numa síntese através da futura civilização, com apetências e aderências por mares nunca antes navegados, de tal modo também nos informou Camões, representadas dessa vez na voz da terra que ansiou o mar.

          O eu poético em Mensagem prevê que o futuro da Europa está além-mar, o agente dessas descobertas marítimas será Portugal. O poeta imagina a Europa com um corpo de mulher. Estendida, ela tinha um de seus cotovelos, o direito, fincado na Inglaterra; o outro, esquerdo, recuado, na península italiana; cabendo a Portugal ser o rosto.  Pode não ter sido o rosto, mas a posição geográfica de Portugal, pequena faixa de terra voltada para a imensidão do Oceano, à sua frente, que condicionou seu destino ultramarino durante quase cinco séculos.

 

*In “Encontros com Fernando Pessoa”, do livro Kafka, Faulkner, Borges e Outras Solidões Imaginadas, Cyro de Mattos, no prelo da EDUEM, editora da Universidade Estadual de Maringá, Paraná.

PESSOA, Fernando.  Obra poética, Editora José Aguilar, Rio de Janeiro, 1960.

SIMÕES, Maria de Lourdes Netto (org.). Navegar é preciso, coletânea, Editus/UESC, Bahia, 1999.