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quarta-feira, 29 de novembro de 2023

 

Crônicas Prazerosas de Agenor Gasparetto

Por Cyro de Mattos

 

ÊXTASE, de Birra com Jorge Amado e Outras Crônicas Grapiúnas é um pequeno livro prazeroso, de Agenor Gasparetto, que acaba de ser publicado pela Via Litterarum, editora que pertence ao autor. Uma editora independente que tem como saldo positivo um catálogo rico de autores conhecidos e emergentes. A façanha foi obtida ao longo dos anos com sacrifício e heroísmo, tornando a iniciativa pioneira no interior baiano. 

 O livro reúne no seu elenco oito crônicas, algumas estão mais para o pequeno ensaio, de natureza técnica na escrita, correspondendo assim ao trato específico que o assunto escolhido exige para a abordagem, a análise sem devaneios. O pensamento usa linguagem objetiva, desdobra o tema com segurança, informa com argumentos inteligentes alguns importantes aspectos da vida. Na prosa precisa incursiona nas questões sociais e históricas do contexto.   

Neste pequeno livro de escrita leve, Agenor Gasparetto mostra que sabe compor quadros belos com a crônica. Em “Êxtase”, que abre o livro, minha preferida, o autor comove ao flagrar com fina sensibilidade o momento de um homem pobre que gosta de alimentar os passarinhos com uns dois punhados de milho moído. O diálogo que se estabelece entre os passarinhos e o homem que os alimenta passa diante do leitor a emoção pura de um instante em que as relações da existência se dão bem quando conectadas com a surpresa de ser no êxtase revestido de puro contentamento.

Em “Cachoeira, o Rio de Minha Vida”, o cronista com uma lírica prosa trivial que prende reinventa o cenário do cotidiano ligado na natureza, conduzindo como personagem central o rio Cachoeira e sua coreografia, exibida assim com beleza pelo entardecer com a chegada dos pássaros. Um espetáculo singular faz com que o cronista revele, como Pessoa, o genial poeta português, que o rio do coração está no pé de uma aldeia, dessa vez chamada Itabuna.

Outra amostra de texto bem-sucedido está visível na crônica “Do Culpado e dos Tempos de Antigamente”, que guarda para o leitor a boa surpresa do final, um feliz achado de quem sabe fazer a análise lúcida do viver com o paralelo do que foi o ontem e o que acontece no hoje, em que crianças vidradas nos tempos eletrônicos não mais sobem nas árvores para colher frutas ou pela sensação da aventura.

O cronista é verdadeiro, contundente quando alude à vulgarização e à banalização que se impõem com um novo referente. Em “Tempos Estranhos”, crônica dos dias temerários do hoje, vemos que a alguns a Internet fornece os meios fáceis para que se apresentem na mídia como donos do saber, mas que em verdade não passam de patrulheiros de plantão, vestindo o ego com a roupagem da simulação para a performance enganosa de intelectual talentoso e culto.     

É sensato quando expõe certa mentalidade mesquinha da inteligência local, se pondo contrária à homenagem justa que se deve prestar ao romancista Jorge Amado. A postura é lamentável, a omissão se faz imperdoável por parte de conterrâneos e lideranças locais. A mentalidade estreita, de baixa aferição humana, faz eco ao dizer popular de que santo de casa não faz milagre, teimando em recusar que a avenida Cinquentenário receba o nome de Jorge Amado. Finalmente aconteça a homenagem justa ao romancista que nasceu na fazenda Auricídia, em Ferradas, e das terras do sem fim quis o destino que seus livros andassem por todas as partes do mundo com as gentes e histórias grapiúnas.

As crônicas de Agenor Gasparetto também sabem tocar nas feridas sociais e políticas. Exemplos disso temos em “O Trabalhador Rural na Crise da Lavoura Cacaueira”, “Belas e Tristes Fazendas de Cacau do Sul da Bahia” e “Desenvolvimento e o Paradoxo Canavieiras”. Em geral, todas elas se apresentam com a marca de quem conhece o ofício. Sente, reflete, transmite visões de que a vida não é rodeada de concepções extremamente falsas, inúteis para o nosso bem-estar, mas acontece com proveitosas crônicas retiradas do ninho da beleza.  

 

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

 

Memorial da Casa da Torre

Cyro de Mattos

 

Autora muito premiada, com destaque para nove láureas concedidas pela Academia Brasileira de Letras, Stella Leonardos publicou mais de uma centena de livros, entre romances, poema, literatura infantil e dramaturgia. Formada em Letras Neolatinas, tradutora do inglês, francês, italiano, espanhol, catalão e provençal, sua estreia aconteceu com Passos na areia, em 1941. Os críticos costumam situar a vasta obra poética de Stella Leonardos na terceira geração do Modernismo, relacionando nessa condição os livros Geolírica (1966), Cantabile (1967), Amanhecência (1974) e Romanceiro da Abolição (1986).

Nome dos mais festejados pela crítica, Stella Leonardos vem entregando há muito tempo sua vocação poética ao projeto de recriação de um Brasil bem brasileiro. Da sua alma cancioneira e romanceira salta um Brasil de sentimentos românticos, epicidades, ideais, relatos e saberes populares. Brasil iluminado de estados líricos, formado por elementos míticos, que irrompe do lugar onde nasce a história feita de passagens marcantes, ações, tantas razões e casos.

O épico apresenta, o lírico lembra, o dramático articula mundos interiores    dos seres humanos conflitantes na criação e movimentos da vida. No palco da duração crítica e contínua dos acontecimentos expande-se a poesia de Stella Leonardos. Conota essa maneira íntima do lírico, calcada em permanente mergulho na memória, feita de emotividade, cena histórica e pesquisa. Gentis seus versos, em Memorial da Casa da Torre (2010) recordam vivências nas arcadas, aludem a finíssimos lavores nos salões e aposentos. Abrem-se nos portões com senhores de terras na época de conquista e domínio. Tocam no berço territorial da Pátria, no músculo dos negros, no primitivismo resistente dos indígenas. Restauram o homem através de intenções, ímpetos, sonhos e idealismo. Retiram-no do passado para ser lembrado no desassombro dos sertões vencidos, entoados na música rústica das boiadas.

Poesia é emoção condensada em linguagem mítica, rica, tensa e ambígua. Reflexão em suas formas geométricas calcadas na imagem, sob o pretexto da escrita para revelar uma ideia. Em Stella Leonardos mostra um discurso significante pontuado pelo som, no ritmo que ela imprime em sua maneira particular de sustentar a ideologia. Sua palavra cantante escorre musicalmente com interferência de vozes, tornadas dinâmicas, apropriadas nas lembranças e cenas descritas.

 O registro que é feito do fato bom ou triste é mais endereçado aos ouvidos do que aos olhos. Sua dicção musical enceta versos que dialogam com a história, ecoam procedentes de alguém que permaneceu no tempo.  Em seus cancioneiros e romanceiros tão brasileiros, Stella Leonardos canta e conta. Revive o Brasil com maestria de poeta que encanta, consciente de que no rememorar tudo é ilusão, sonhar é sabê-lo, como falou Fernando Pessoa.

Assinalada a terra por armas e brasões de uma gente remota, que aqui chegou por mares nunca dantes navegados, o governo português teve que enfrentar situações desfavoráveis para fazer a colonização. Um desses obstáculos consistia na imensidão da terra descoberta, com a sua mata de sono milenar, jamais incomodada. Foi necessário dividir a terra rica em capitanias, glebas de muitas léguas, e doá-las àqueles que tivessem condições de fixar o homem no solo.

Por quase três séculos, a Casa da Torre distendeu suas cordas e acordes de inúmeros serviços prestados ao Brasil, começando pelas guerras aos piratas, aos holandeses e da Independência. Dali partiram os primeiros desbravadores do Norte brasiliense, as intrépidas bandeiras, as principais entradas dos sertanistas do Nordeste.

Em Memorial da Casa da Torre, um dos episódios mais significativos da história do Brasil Colônia, oriundo da influência da prole mameluca de Garcia D’Ávila, que levou domínio e ambição às regiões desconhecidas, Stella Leonardos, com idade avançada, demonstra que ainda domina bem o verso e faz uma poesia cativante, bebendo na tradição do poema de todos os tempos. Usa o arcaísmo e o neologismo para narrar os acontecimentos da pátria nascendo a passo de marcha. Na decorrência de versos que se alteiam com vozes em coro, de viva gesta, acende sinais luminosos como brasa viva que haveria de contribuir como ideal de heroísmo, cultura e civilização.

É da tradição da poesia ibérica vazar o amor e a saudade como figurantes que convergem para o lirismo e o épico. O registro de vultos e fatos heroicos são recorrências manejadas por rapsodos com inspiração no populário e saberes anônimos. No caso de Stella Leonardos, o relato poético se municia de pesquisa e de saberes locais do populário. Atenta, a poeta não se descuida de rimar memória e fatos que melhor repercutam ao fazer modelar do nosso cancioneiro e romanceiro. Seus livros aí estão espalhados para que sejam lidos como resultado da aproximação mágica de uma alma sensitiva à nossa memória, arrebatada de sentimentos românticos, valendo-se do histórico por quem ama a beleza e o valor exercido pela estima da Pátria.

No poema “In Memoriam”, introdutório ao assunto deste Memorial da Casa da Torre, Stella Leonardos abre seu verso terno para o que vai contar e cantar, com leveza deixa ser conduzida pela inspiração que lhe é particular:

 

                            No barro desses tijolos

                           Por mãos índias acalcado

       Quanta voz índia não dorme?

                                                              Na alvenaria da pedra

Por mãos afras carregada

   Quanta voz negra não pesa?

                                                             Na torre desse Castelo

Por brancos rostos vigiada

    Quanta saudade não se ergue?

 

A autora desses versos torna suficiente a imagem que interpela e, ao mesmo tempo, contempla a passagem do tempo guardada na memória. Apoiada na sensação do que se refaz triste, sob um ritmo que atrai, nos embala e envolve até o final da cantiga. Como estratégia usual de seus cancioneiros e romanceiros, ela sabe tirar efeito na linguagem quando emprega o neologismo através dos vocábulos que inventa: saudadeado, largoandante, longivozes, multivária, plurilínguas, existenciar, surpresada, passilargo, fugileve, impulsada, noviterra, ensonho, sonoite, novihorizontes, azulando.

A Casa da Torre é a primeira grande fortificação portuguesa do Brasil. As pegadas dos valentes que a povoaram com desassombro inigualável dos tempos de Garcia Dávila renascem neste memorial poético de Stella Leonardos. Da cidadela em ruína, muralhas cobertas de musgo, gestos que resvalam por entre sombras, das fendas e rastros do poder extinto, reencontramo-nos na poesia de versos generosos. Das paisagens com passagens cheias de histórias marchamos, somos levados com o mesmo brilho das gerações que fundaram nossa nacionalidade.

Referência

LEONARDOS, StellaMemorial da Casa da Torre, Gráfica Santa Marta, João Pessoa, Paraíba, 2010.

 

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

 

A Utopia dos Palmares

                              Cyro de Mattos                                              

 

Conforme a Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, o Dia Nacional da Consciência Negra é comemorado em 20 de novembro,  pois foi nesse dia, em 1695, que morreu Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares. Ele representou a luta do negro contra a escravidão no período do Brasil Colonial. Na trama implacável dos destinos, marcada de sangue pelos feitos  do feroz aventureiro europeu, estava reservado ao Quilombo dos Palmares na serra da Barriga, em Alagoas,  com o seu líder   Zumbi,  o lugar onde se deu um caso extremo de resistência ao sistema.

O Brasil Colonial procurou roubar a alma do negro africano para transformá-lo  em coisa, fazendo com que ele sustentasse o mundo do açúcar.  Durante dois séculos o Brasil foi o açúcar, para ele vivíamos, esquecidos da madeira de lei encarnada que nos batizou. Para produzi-lo era preciso que fosse plantado na “terra que em se plantando tudo dá”, como já havia informado o escrivão Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal sobre chão dadivoso quando fomos descobertos por Pedro Álvares Cabral.

O açúcar  tinha uma voraz fome de terras, precisava de trabalhadores resistentes para as grandes plantações. Exigia que esses trabalhadores vindos da África fossem escravos. A ideologia dominante é que isso era bom porque bom era o senhor branco, o dono do canavial imenso, criatura que, dessa maneira,  tinha sido privilegiada pela natureza. Nessa visão estática de mundo, o negro africano era colocado  fora do círculo da família patriarcal. Como objeto deveria servir ao senhor branco, sem oferecer qualquer resistência. Na sociedade colonial escravista, os lugares estavam fixados de antemão. Pretos eram escravos, índios eram servos e brancos eram livres.

Nessas condições, o negro africano não tinha chance de ser alguém. Daí que certa vez houve a fuga de quarenta deles na Zona da Mata quando queimaram e abandonaram uma fazenda de açúcar. Enfrentaram tudo que era hostil pelo mato e foram dar na serra da Barriga onde fundaram o Quilombo dos Palmares. Ali a ideologia do senhor branco seria afugentada pela utopia do escravo africano, que queria ser livre, ao plantar na serra da Barriga um pedaço da África, que lhe havia sido roubada pelo Brasil açucareiro.

Em 1635, o Quilombo dos Palmares era formado por três aldeias. Aí por volta de 1640 viveriam cerca de dez mil quilombolas. Eram fortes e contentes, plantavam de tudo e não se serviam da  terra como fonte única de riqueza, através do açúcar. Cada família em Palmares  ocupava um lote de terra, o que tirava dela era para o seu sustento. Em 1670, já dezenas de povoados cobriam mais de seis quilômetros quadrados. Palmares havia se transformado em um Estado, situado na borda do litoral do mundo canavieiro. Tornava-se por isso mesmo em grave ameaça ao  império do açúcar, com seu sistema fixo calcado no braço escravo, em benefício exclusivo do senhor de engenho.

Tinha uma população de trinta mil almas quando sob o comando de Zumbi sucumbiu às investidas de Domingos Jorge Velho, chefe de um exército armado de canhões, constituído de nove mil homens. Sucessor do trono de  Ganga Zumba, Zumbi mostrara  ser um guerreiro implacável antes mesmo  de ser derrotado por Domingos Jorge Velho. Há quem diga que ele se pareceu aos heróis  de guerra Aníbal, Alexandre, Ciro e Napoleão. Diferentes deles porque não lutou para conquistar glórias, mas para fazer de Palmares uma África livre no chão açucareiro do Brasil Colônia.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               

O Brasil tem uma dívida impagável para com o negro. Não se pode esquecer Zumbi, não se deve esquecer Palmares. Até fiz uns versos para que isso não aconteça comigo e outros.  Leia meu poema.

 Abolição - Na zoeira do terreiro/ Batucam que batucam/Tambores sem cambão.// Trepidam nesses punhos/ O suor, a lágrima, o sangue/ Nos rastros do negro fujão.// Todos batem nesse tambor,/ Pode até não ser de fato / A tão esperada abolição.// Mas é o começo duma hora/ Que se faz tão grandiosa/ Como o verde na amplidão.// África agora é uma só voz/ Na esperança das manhãs/ Sem o ferro do vilão.

 

·       Texto publicado na Revista África e Africanidades, edição 9

 

*Cyro de Mattos é escritor, da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz (Bahia). Medalha Zumbi dos Palmares da Câmara Municipal de Salvador.

 

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

 

Com oitenta e quatro anos e nove meses, o escritor e poeta Cyro de Mattos acaba de publicar pelas Edições Mazza, de Belo Horizonte, Histórias Brasileiras, livro que reúne doze contos inspirados no universo do negro (6) e do indígena (6). O prefácio é da professora, doutora em Letras, e tradutora Meritxel Hernando Marsal, da Universidade Federal de Santa Catarina.  O autor na dedicatória ressalta: “Dedico a essa gente sofrida, o negro e o indígena, este massacrado na fuga em grito com a flecha, quebrada até o último gemido, aquele outro arrancado da África pelo ferro do vilão impiedoso para transbordar na vala uma mancha soberba que envergonha as terras brasileiras.”

  Com mais de quarenta anos de atividades, símbolo de resistência e compromisso, a Mazza Edições reflete em seu vasto catálogo o empenho de escritores e leitores, que acreditam na construção de uma sociedade baseada na ética, na justiça e na liberdade. É reconhecida como a editora aquilombada das letras brasileiras. No tocante a essa temática, a Editora se tornou referência nacional e internacional, na medida em que contribui para os debates acerca da diversidade sociocultural de nosso país.

Cyro de Mattos com este Histórias Brasileiras alcança a marca de 66 livros numa   produção ao longo de 60 anos, e seu legado é constituído de diversos gêneros, entre o romance, novela, conto, crônica, ensaio, literatura infantojuvenil e poesia. Muito premiado em certames literários relevantes, seus livros são adotados na escola e estudados na universidade. Editado e publicado em Portugal, França, Itália, Alemanha, Espanha, Cuba, Rússia, Estados Unidos e Dinamarca. Dividido em duas partes, Histórias Brasileiras reúne os contos seguintes: I - Histórias do Negro – O Negro e Sua Negra, História da Vovó, Modos de Damiana, Caçador Guinó, Noites Turvas e Tratado de Paz; II - Histórias Indígenas – A Velha Indígena, A Mãe e Seu Filho, O Último Camacã, Inocência sem Flor, Longe da Taba e Mar de Sangue. Este é o segundo livro que o autor publica pela Mazza, o primeiro foi Poemas de Terreiro e Orixás.

 

 

                                                       

domingo, 12 de novembro de 2023

 

Marinete Era o Nome

Cyro de Mattos

 

Ilhéus. Banco da Vitória. Fazenda Cordilheira. Primavera. Rio Cachoeira. Itabuna. Pela janela você via bando de periquitos seguindo no domingo azul em direção às serras, no outro lado do rio Cachoeira.

Cacaueiros passando. Apinhados de fruto maduro nos galhos.  Seguia perto de uma das margens do rio. Perigo à vista, curva fechada. Jaqueiras. Mangueiras. Eucaliptos. Marinete era o nome. Viagem demorada. Rotineira. Fazia barulho. Rangia, meu Deus, aos solavancos…

Pirangi. Banco Central. Pedrinhas. Dois Irmãos. Mundo Novo. Serras azuis. A mata escura com as árvores nativas, muita madeira de lei.  Maçaranduba. Jacarandá. Vinhático. Putumuju. Claraiba. Jequitibá. Cedro.  Pequi. Louro. Baraúna. Bicho nas copas. Bicho no oco do pau. Bicho de carreira. Anos atrás esturro de onça.

Casas de fazenda. Gente no terreiro. Barcaça aberta secando o cacau. Água de córrego. Animais pastando. Ribeirão forte. Pancada formosa. Praga no buraco, raiva cuspida. Rostos suados. Os passageiros com a língua de fora.

Ferradas. Itapé.  Barro Preto. Palestina. Ponto de Astério. Ibicuí. Iguaí. Nova Canaã. Mundo de pastagens. Marinete era o nome. Rota importante. Fazendeiros. Gente do mato. Comerciantes. Sacolejando. Parecia que ia partir em pedaços.

Na Curva-do-Boi não escapou um só cristão…

Bonito quando chegava, buzinando na entrada. Casinhas sujas. Espiando assustadas. Triunfo de chegada.

O correio. A bagagem. O jornal. A mala. Carregadores no tumulto. O “13” era o preto Domingos, alto, tinha um vozeirão.  O “12” era o Felizardo. O “15” um capenga. O “16”, branquelo e desdentado. O “2” cobrava um cruzado. Meninos mercando. Rolete. Cocada. Cordas de caju. Cordas de caranguejo. Beiju de Água Branca. A preta velha vendia mugunzá e mingau de tapioca em dois caldeirões.

O céu de teto preto. Depressão. Atoleiro. Mais curva. Despenhadeiro. Ladeira escorregando.

Macuco. São José. Pratas. Rio Branco. Panelinha. Camacã. Santa Luzia. Canavieiras. O motorista botava fogo pelas narinas. Passageiro enfezado. Passageiro rezando. Condutor equilibrista aguentando os tombos. Marinete era o nome.

Pontilhão. Ponte. Descendo a serra. Cruzando o vale. Subindo o verde. Alegria dos lugarejos. Modo de acontecer o dia na alma das cidadezinhas.

Religiosamente.

A estrada sinuosa. Com poeira ou lama.

A marinete era um velho ônibus de cadeira dura. Percorria várias linhas na estrada de barro esburacada, sem sinalização, estreita, que interligavam as cidades próximas e distantes no Sul da Bahia. O nome marinete está associado ao poeta italiano futurista Marinetti. Foi uma novidade quando os ônibus foram lançados em Salvador como meio de transporte urbano. Os transportes usados à época pela população eram os bondes, que corriam sobre trilhos. O poeta italiano Marinetti passou em Salvador e fez palestra sobre a poesia futurista, que se expressava com uma linguagem livre, nova, veloz, correspondendo aos novos tempos alimentados pela indústria, energia elétrica e novas descobertas. Como os ônibus eram uma novidade que tinha a ver com o futuro, o progresso, o povo associou esse novo meio de transporte ao poeta italiano futurista.

As marinetes pertenciam à empresa Companhia Viação Sul Baiano cuja sigla era SULBA. Circularam no Sul da Bahia durante o apogeu da lavoura cacaueira. Um dia, um gaiato dirigiu-se a um homem que estava prestes a embarcar na marinete e, fazendo alusão à sigla da empresa, disse com a voz firme:

 “SUBA!”

Finalizou com o rosto sério e os olhos arregalados:

“Se vai descer, só Deus sabe.”

 

A palavra é...Marinete | Ancelmo - O Globo

 

 

 


quinta-feira, 9 de novembro de 2023

 

 

Jorge Amado e Seu Elogio da Vida

Cyro de Mattos

 

Da saga de cobiça e sangue, do curso da violência na terra primitiva, com suas léguas férteis que acenavam como um eldorado, nasceria uma literatura original, que por vários aspectos tem lugar destacado na novelística brasileira. Cabe a Jorge Amado o lugar indisputável de quem como romancista de denúncia social deflagrou importante corrente temática na ficção regionalista do Brasil. É o escritor compromissado em recriar a realidade objetiva, que faz prevalecer o documental sobre o subjacente, a linguagem coloquial no texto sem maior preocupação em auscultar o herói problemático na temática local, em sua tensão crítica diante do mundo.

 

Diferente de Adonias Filho, um inventor de formas, com seus romances trágicos que se desenvolvem no espaço da infância da região cacaueira baiana, percebe-se no autor de Terras do Sem Fim que o mais importante no fundo de tudo e sempre é a essência mesma da narração, a história e a emoção que dela decorrem, interagindo no outro feito cúmplice do mundo.  A narrativa linear obedece aos momentos do princípio, meio e fim para apresentar o modo e o tempo sequenciado dos acontecimentos destacados da realidade objetiva. A cadência dramática da vida escorre-se nesses três momentos, configurando como na novelística tradicional a estrutura romanesca do que o autor pretende representar.

 

Romancista da memória, fecundo criador de personagens, ímpeto impressionante na narrativa desenvolta, apresenta-se na escritura que prende como um escritor que participa e julga o mundo. Dá seu testemunho sobre o que viveu e sentiu. Expõe cenas e situações dentro de geografia humana típica. Com apelos dramáticos e líricos, suas histórias acontecem na região cacaueira baiana e Salvador.

 

 A galeria de personagens femininas do romance brasileiro é ocupada com relevo pela enigmática Capitu, de Machado de Assis, a suburbana carioca e sofrida Leniza Maier, de Marques Rebelo, a de feição ambígua e rústica Diadorim, de Guimarães Rosa, a humilde roceira Biela, de Autran Dourado, e a guerreira incansável Maria Moura, de Rachel de Queiroz.  Com cheiro de cravo e cor de canela, Gabriela, de Jorge Amado, vem se juntar a todas elas, vestida com sua graça feita beleza, tecida de flor colhida nos prados da vida ingênua e simples. Na galeria dos grandes personagens do nosso romance, não se pode deixar de considerar que Jorge Amado é o criador de personagens que têm carne e sangue, riso e tristeza, sonho e desejo, vivendo como gente: Tieta do Agreste, Dona Flor, Pedro Bala, Pedro Archanjo, Mundinho Falcão, Ramiro Bastos, Vasco Moscoso de Aragão e Quincas Berro d’Água.

 

Nos livros de ficção desse escritor de dicção popular percebe-se sem dificuldade   que o narrador de linguagem sedutora dá voz aos humilhados e ofendidos, ao povo do candomblé, gente do cais, prostitutas, seresteiros, pescadores, operários, poetas populares, meninos de rua. Fica nítido que para ele é mais importante o conteúdo, muitas vezes interligado com humor no enredo, do que a palavra com a qual a vida é recriada.

Íntimo dos ficcionistas norte-americanos comprometidos com a realidade social do século vinte, dos romancistas russos de inspiração proletária, poetas populares, assim é este romancista com sua mensagem de liberdade e esperança na escrita irreverente, ora fascinante, ora sensual, mesclada com suas ondas de indignação.

 

Aqueles que o conheceram sabem que ele tinha a amizade como uma coisa nata. Dava-se conta por isso que existia ainda o homem simples como o artista, embora fosse comum encontrar na vida   o artista vaidoso como o homem.  O compromisso que sempre teve com as letras foi o da verdade, honestidade, promoção do reconhecimento do valor no outro e a defesa da liberdade de expressão. Jorge Amado é reconhecido por justiça como um legítimo romancista, um poeta da prosa que encanta.

 

Detentor das mais belas páginas de nossas letras. De O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá (1976), retiro essa passagem, com sabor e saber que resultam de um criador que sabe simbolizar o amor como o sentimento mais forte e a liberdade o mais poderoso.



O mundo só vai prestar
Para nele se viver
No dia em que a gente ver
Um gato maltês casar
Com uma alegre andorinha
Saindo os dois a voar
O noivo e sua noivinha
Dom Gato e Dona Andorinha.

 

  Qual o escritor que não gostaria de assinar uma joia como essa, simbolizando o amor que a vida deve ter sem preconceitos e dominações? Uma joia singela com brilho de verdade.  O amor como armadura sustentável na leveza do ser, dotado de ração igual e água clara para todos.

 

Nasceu Jorge Amado em 10 de agosto de 1912, na fazenda Auricídia, em Ferradas, um povoado do jovem município de Itabuna, que aparece em Terras de Sem Fim como um dos domínios do coronel Horácio. Faleceu aos 6 de agosto de 2001, em Salvador.

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

 

Um Sonetista Primoroso

Cyro de Mattos

 

Na língua portuguesa, o soneto tem sido cultivado por poetas que se tornaram referência obrigatória na arte difícil e delicada de armar a boa poesia, para celebrar a vida e a morte. Em Portugal são exemplos:  Camões, Bocage, Antero de Quental, Fernando Pessoa e Florbela Espanca. No Brasil: Gregório de Matos, Cláudio Manoel da Costa, Bilac, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, Jorge de Lima, Sosígenes Costa, Carlos Pena Filho e Vinicius de Moraes. Entre nós baianos ressalvem Ruy Espinheira Filho, Afonso Manta, Florisvaldo Mattos e João Carlos Teixeira Gomes, um sonetista primoroso.  

 

Em ensaio percuciente, que antecede aos não menos excelentes sonetos do livro O labirinto de Orfeu (2014), o ensaísta e poeta João Carlos Teixeira Gomes refere-se aos dois epítetos “sonetoso” e “sonetífero” criados como galhofa contra os autores de soneto. Registra uma série de expressões em desfavor das andanças do rejeitado poema de quatorze versos: “refúgio da decadência”, “gaiola da inspiração”, “bestialógico acadêmico”, “muleta da má poesia”, “cabresto da criatividade”, “onanismo poético”, “barbitúrico para insônia”, “sucedâneo de palavras cruzadas”, “museu do bolor formalista”, “chavão de segunda ordem”, “formalismo oco e vazio”, “museu de velharias passadistas” .

 

Não obstante o comportamento contundente dos que desfazem dessa imbatível criatura nanica, sua garra permite que continue de pé, ínfimo caminhante do sol e da chuva nos seus modestos passos de quatorze versos, buscando em sua peripécia métrica e feitiço do imaginário atingir o ponto máximo do prazer na alma. Segue indiferente às acusações e atropelos da legião de fanáticos, que não o aceitam, sob qualquer hipótese. Teima em habitar com seus lampejos líricos a floresta dos poemas maiores, de poetas célebres com suas criações em versos longos, eloquente quantidade de estrofes.

 

É dado a formar uma sequência quando vários poemas são ligados entre si por uma concepção e execução magistrais do tema, como se deu com os cento e cinquenta e quatro sonetos de Shakespeare. Outra de suas proezas quando escrito em sequência é formar a coroa de sonetos, uma forma poética composta por 15 sonetos, que têm ligação entre si por um tema. Os primeiros e últimos versos são versos de um outro (décimo quinto) soneto, denominado soneto-base, ou soneto-síntese.

 

Em O labirinto de Orfeu, João Carlos Teixeira Gomes reafirma as qualidades de poeta expressivo, com maiúscula, que sabe a proeza da inspiração como manifestação da ‘outridade’ do homem. O soneto em suas mãos, até certo ponto divinas, é instrumento legítimo que se torna poema indelével de quem sabe arrebatar delírios, construir paixões, cultivar ilusões, carregar fardos, cair em desterros, colher perdas, erguer perjuros, elencar encantos, vestir-se na náusea dos vazios. De maneira impressionante, o soneto aqui abre-se à participação de um acontecimento festivo, raro, rico, exuberante. A recepção poética possibilita ao leitor a recriação do instante original. Transmuda-se o soneto em uma festa de imagens opulentas, uma comunhão do saber aliado à beleza para ser um objeto estético primoroso, espraiar na vida as zonas encantatórias do poder ser através das mãos de um mestre. É visível que o seu procedimento fulgurante faz pensar no homem como resultado de outro ser, pleno de brilho na dimensão forjada de transcendência com assento em apetites e desejos. Municiado dessa voz estranha, em cuja inspiração tira o homem de si mesmo para ser tudo o que é, percebemos que o desejo posto na festa lustrada com ritmos de versos esplêndidos é de um legítimo poeta recriador de arquétipos, modelos, mitos. De algo que se confunde com cada um de nós, sendo evocação, recriação de uma experiência que ressurge de uma senda que está dentro do lado noturno de nós mesmos.

 

Muitos desses sonetos de O labirinto de Orfeu são joias raras. Usado nos moldes clássicos do decassílabo, o soneto do excelente poeta baiano opera com os hábitos do delírio, sonho, cantares de uma lira sempre tocada com as notas de unidades rítmicas com vistas ao alcance da imagem, a qual lateja a sensação de que poetizar é criar com as palavras, fazer poema com significação, mesmo que essa imagem do mundo transmitida pelo poeta custe a ele a indiferença aos seus sonhos constrangidos, abafados no clamor de seus gemidos.

 

Sonoridade que serve como vínculo do verso para salientar a significação, unidade rítmica que sustenta a ideia fluindo na estrofe como música, ardência que soa na rima com vibrações da palavra tradutora de inventiva rumorosa, que emana com luzeiros e fulgores, procedidos como hábitos e atitudes do poeta eficaz. São algumas marcas recorrentes do discurso desse notável sonetista, que não se intimida em adjetivar a substância constitutiva do conteúdo em cada verso.  Na sua experiência de sonetista competente, tudo isso acontece como um fato natural, de facilidade constitutiva, caracteres que por serem hábitos antigos instauram uma técnica que não exerce funções de iludir com o efeito ao leitor desprevenido. Não é adorno nem arranjo. Trata-se de atitude essencial na maneira de expor os movimentos da estrofação, assentada na cadência das unidades rítmicas, que não se desenvolvem como artimanha, no pior sentido. O sonetista sabe converter o artefato em sedução de lances primorosos.  Nas artes de iludir com a lira, o exímio domador de frase na estrofe de dez versos toca a alma com ventos que se confundem com os seus próprios laços, recorrências constituídas de dons propícios. 

 

Navegador de agudas águas, timoneiro nas ondas como sonho, a festa do soneto nesse poeta baiano não é fuga vulgar, maneirismo, pelo contrário, evento que se irradia festivo, como “incenso da vida, no real atormentada.” E porque faz de uns belíssimos momentos do sonhar a sua enxada, “à glória de colher está propenso quem mais souber lavrar a terra alada.” Penitente que se impõe ao sacrifício, nesta saga doida e perdida, o poeta encarna-se nas batalhas do amor, submete-se aos tormentos do mistério. Como escravo da fiandeira do caos tem o peito levado aos desaprumos. Com a amada impune, tem a consciência de que essa astuta tecelã das doces malhas “vem da força do amor que prende e une”, o feitiço que espalha.

 

Prisioneiro de ânsias rumorosas, servo dessa mulher com finos dedos na tessitura de suas malhas, qual musa floral da rosa apetecida, o poeta, guardador de segredos que seduzem, sabe a beleza que ergue da vida o autêntico poema, com o instante luminoso riscado no eterno. Consegue grandes feitos com versos que são puras fantasias, falam da emoção no tempo que se repete, nunca para, nunca cansa, enche os silêncios reconhecidos no enigma, no obscurecimento do mundo. O sonetista modelar tem a dignidade de cantar e pensar com a ideia, pois está convencido de que a razão e a emoção são como os troncos vizinhos do poetar. 

 

Inspiração e transpiração na dor presenteiam ao sonetista o seu vigor, plasmam com sabedoria o labirinto que esse Orfeu baiano caminha por entre tormentosa lida, sabedor que é como poucos do viver que está no logro da paixão, nesse amor que foi o sonho compartido pelo qual se tornou o duplo do amado por Eurídice.

 

Por castigo do fado que o faz cantor prisioneiro, o sonetista surpreendente em rimas e imagens comove o coração de quem o recita. Os seus cantos mais que perfeitos, que espantam com as tragédias, dramas e comédias, são como as chamas da paixão que o sujeitam, funcionam como frutos amadurecidos nas estações da vida e morte, de tudo que sobreleva à flama do viver que não perdura.

 

Há nesse labirinto de Orfeu, que João Carlos Teixeira Gomes ergue com mãos de mestre, o reconhecimento de que o soneto não é uma camisa de força, mas harmonia plena que a beleza atinge com uma rica combinação de signos, símbolos, mitos, arquétipos, unidades rítmicas, rimas, sentidos. Um milagre do poema que é erguido com arte, engenho, alma e vigor perante a existência. Talento que se apresenta com uma eficiência espantosa. No resultado final da imagem presta-se ao fogo do amor, que cresce como luz na treva. 

 

Referência

GOMES, João Carlos Teixeira. O Labirinto de Orfeu, Topbooks Editora, Rio de Janeiro, 2014.