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sexta-feira, 28 de outubro de 2022

 

O mascate libanês

    Cyro de Mattos

 

O gringo Mansur desembarcou na estação do trem numa tarde de sol claro. Ao entrar na primeira rua de chão batido, depois de uma praça, sentiu no ar o odor denso de umas amêndoas secas que enchiam os armazéns de portas largas. Era o cheiro de resina do cacau. Encheu-lhe o peito o mesmo anseio dos que chegavam à região para realizar o sonho de ficar rico numa terra que oferecia a qualquer vivente muita benesse, graças à boa lavra das árvores dos frutos cor de ouro. Ele não chegava ali como outros com as mãos pobres. Trazia algum dinheiro, joias e uns caixotes contendo tecidos, tapetes, perfumes, sabonetes, talcos, carretéis de linha, tesouras, panelas, talheres, coisas miúdas e até vidrinhos com purgantes e óleo de rícino.

 De primeiro foi mascatear nos povoados, onde era aguardado com ansiedade e recebido com alegria por gente curiosa. Causava espanto aos tabaréus as novidades que trazia em mercadoria para ser vendida na porta das casas ou na pracinha pouco acostumada a visitas como aquela. Às vezes não se entendia o que ele falava naquela língua estranha, misturando as palavras e arranhando a voz, que saía engraçada. Ficava em cada povoado pouco tempo, resolvia penetrar a mata hostil, com a mercadoria nos baús em lombo de mula. Ia abrindo trilhas e atalhos, que serviam para interligar gente, que de tão distante na tapera e na roça de cereal plantada pelos fundos, na clareira aberta por machado e facão, não sabia um do outro.

Hoje aqui perto, amanhã nas lonjuras, sem os pais, irmãos, amigos, doce amor da bela amada, tangendo os burros com a mercadoria nos baús grandes. Nessas idas e vindas, ia formando caminhos que ligavam os povoados aos fundos da mata.

Tecedor de sol e chuva, peito armazenado de solidões pela mata bruta. Respingava de suor no rosto, pulsando com o sangue dos ancestrais nas veias da madrugada. Picado por carrapato e mosquito, sedento, faminto, resmungando por trilhas e atalhos no mato grosso. Seda rara, tapete, broche, anel, perfume, linho, porcelana, revólver, rebenque, espora, lâmpada mágica. Tudo sacolejava nos baús que os burros levavam, já formando uma tropa pequena e nova.

Alimentava-se nas veredas com o sonho de se tornar um dia fazendeiro de vastas roças de cacau, nas horas de maior solidão ajoelhava-se. Inclinava o peito para frente várias vezes seguidas. Apoiando-se com as mãos no chão coberto de folhas secas, contrito, sob o silêncio imenso da mata trevosa, beijava o chão e emitia cânticos orantes:

         

           Ilumina-me, Alá

Com o teu espírito,

Ilumina-me,

Ilumina-me,

Deixa-me sentir

Aqui no coração

Todo o teu calor,

Todo o teu amor

Para sempre,

Para sempre.  

 

Ilumina-me, Alá,

Com o teu espírito,

Ilumina-me,

         Ilumina-me,

Deixa-me sentir

Aqui na minha mente

O brilho bem forte

De todo o teu amor

Para sempre,

Para sempre.

 

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

                           Picada de Carrapato

                                 Cyro de Mattos

 

 

             Sergei Turgenief, conhecido como o general bebedor de sangue, foi nomeado pelo presidente de Jurapov, Ivan Putinik, para comandar os novos ataques à Ucranzineia, agora centrados na infraestrutura civil do país. Conhecido por ser brutal e linha-dura, o comandante se especializou em infantaria e ataques aéreos.  É reconhecido justamente por não poupar infraestrutura civil em ataques aéreos, que atingiram casas, escolas, instalações de saúde e mercados onde as pessoas vivem, trabalham e estudam.

            Ele mal chegou ao novo posto e já ordenou o ataque a alvos civis em toda a Ucranzineia, incluindo um entroncamento rodoviário próximo a uma universidade e a um parque infantil. Uma de suas ofensivas brutais, do que mais se orgulha, destruiu grande parte da cidade de Sureppo.

           Turguenief é absolutamente implacável, com pouca consideração pela vida humana. Por mais de 30 anos, a carreira militar foi marcada por alegações de corrupção e brutalidade.

          Sempre gozou de vida saudável.

         Recentemente apareceram-lhe dores de cabeça, vômitos e tonturas. Foi ficando pálido, transtornado, magro como se alguma coisa invisível estivesse chupando o sangue e minando suas carnes. Foi se depauperando aos poucos, ficou sem o brilho dos olhos pequenos, falava com dificuldade. Passava noites sem conseguir pegar no sono. Um suplício. Uma junta médica, do mais alto nível no combate às doenças raras, foi convocada às pressas para lhe dar assistência, na tentativa de encontrar a causa e debelar a doença.  

          Ele foi enterrado com honras militares. Qual foi a causa de sua morte?  A picada de um carrapato. A princípio era uma ferida, não parecia nada grave.  Por caminhos ocultos, a inflamação foi se expandindo, ocupou as zonas de perigo dos nervos e vasos sanguíneos até que chegou ao ponto final do campo de batalha.

            O implacável comandante perdia a guerra por uma aparente e imprestável picada de carrapato. 

 

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

 

Arte como esperança: Cyro de Mattos

                                Oscar D’Ambrosio*

 

Prêmio Jorge Portugal de Literatura da Secretaria de Cultura da Bahia (SECULTBA) de 2020, “Canto até hoje” é uma Edição Comemorativa dos Sessenta Anos de Atividades Literárias de Cyro de Mattos. O conjunto de obras, já publicadas e inéditas, constitui um painel da criação de um artista a favor da liberdade e contra qualquer tipo de suplício.

Explico melhor lembrando de três sofrimentos célebres impostos pelas divindades gregas. Tântalo, por exemplo, sofreu eternamente sem poder comer ou beber. Mesmo rodeado de água até o pescoço, ele não podia alcançá-la, pois, quando tentava beber, ela baixava o nível e, ao tentar pegar frutos, os galhos das árvores estendiam-se para além dos seus braços.

Íxion, por sua vez, foi amarrado a uma roda em chamas. Em lugar de cordas, foram utilizadas serpentes; e ele recebeu como punição girar no calor do inferno. Assim como no Tântalo, a dor é eterna e sem possibilidade aparente de escapatória, pois as punições divinas são justamente assim: terríveis e permanentes.

E temos ainda Sísifo, que recebeu como castigo empurrar uma pedra até o topo de uma montanha. Toda vez que estava chegando ao alto, a rocha rolava novamente ao ponto de partida, tornando, assim, a atividade um labor eterno, que se torna uma metáfora, do mesmo modo que os casos anteriores, da estagnação do ser humano.

A poesia de Cyro de Mattos é uma resposta aos suplícios. Contra a dor de Tântalo, que não consegue atingir o que deseja, melhor ler o poema abaixo:

Árvore dos Frutos Dourados
O cacaueiro
é sedução
da aurora
ao crepúsculo.
Cílios,
impressões
de folhas,
a fio e prumo
segredo.

Os versos apresentam aquilo que o universal artista da palavra baiano tem de melhor: a observação poética do cotidiano para construir um lirismo em que as árvores de Tântalo se tornam objeto de sutil sedução e de esperança, pois “da aurora ao crepúsculo” existem as “impressões de folhas” nunca iguais, sempre repletas de segredos.

Os “frutos dourados” da árvore da arte também auxiliam Íxion. Para enfrentar o seu eterno rodar marcado pelas víboras e pelo calor do mundo subterrâneo, aponto o dístico “O Jabuti” e o haicai “Varal”, de Cyro de Mattos:

 

O Jabuti
Geológicas passadas
quem tem pressa tropeça

Varal
Manhã colorida.
Voz desse mundo sem mancha.
Sonhar é preciso
. 

A sabedoria simbolizada pelo animal, que administra o tempo de sua maneira toda especial, caracterizada por um vagar sem desespero pela existência, encontra um paralelo na manutenção do sonho, que se renova a cada manhã por mais improvável que isso possa parecer nas mais variadas situações.

Acreditar em algum tipo de futuro também é mentalmente saudável para Sísifo. Saber que seu esforço aparentemente inútil não é só dele, mas é de toda a humanidade, pode ser um consolo, uma pílula de realismo, como aponta o poema...

A Relva e a Foice
Aventura solitária
humano destino ter
entre estar e ir
basta vir para sair
renascer sem fim
como um talo de capim?
Ai de mim na relva,
ais que doem na lâmina, 
eu que vislumbro estrelas,
indiferentes perscrutam-me.

A aventura solitária de todo ser humano é, no fundo, a de todo e qualquer ser vivo. Nascer é morrer em um ciclo interno, no qual o trabalho é uma das facetas de uma caminhada existencial que muitas vezes pode parecer não ter sentido algum, pois as estrelas indiferentes tudo olham, mas sem se manifestar, ao menos aparentemente.

As palavras de Carlos Drummond de Andrade a Cyro de Mattos, escritas no Rio de Janeiro, em 1980, parecem resumir bem como o poeta combate, com suas criações, o suplício da vida:

Drummond a Cyro
Uma notícia irrompe desta árvore
e ganha o mundo: verde anúncio eterno
Certo invisível pássaro presente
murmura uma esperança a teu ouvido.

As visões (“notícias”) que surgem da existência (“árvore”), na voz poética de Cyro de Mattos, se espalham permeadas pela natureza e pela esperança anunciada pelos célebres olhos verdes de Pandora, a primeira mulher do mito grego que, como o próprio nome indica, tinha todos os dons, mas também carregava em sua célebre caixinha todos os males que nos preenchem internamente e nos rodeiam para sempre.

O pássaro a murmurar esperanças é o poeta. O canto que Cyro de Mattos faz até hoje é o seu dizer individual que se conecta com a sociedade e o mundo. A obra reunida do artista da palavra é um delicado grito de crença e de esperança no futuro que serve como bálsamo para as dores internas e externas de Tântalo, Íxion e Sísifo, cujas agruras, em última análise, são as de todos nós.

*Oscar D'Ambrosio é jornalista, graduado em Letras (Português/Inglês), com especialização em Literatura Dramática (ECA-USP), mestrado em Artes Visuais (Unesp) e doutorado e pós-doutorado no Programa de Educação Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

domingo, 2 de outubro de 2022

 

 

 

 

 

 

          Nunca mais discussão 

Cyro de Mattos

 

Aconteceu que Zé Inácio, motorista de ônibus em Buraquinho da Felicidade, ao chegar em sua residência, na rua da frente, do bairro Pau Miúdo, encontrou a mulher Belinha no sofá com um desconhecido. Revoltado, ele que é mais velho do que ela uns trinta anos, esperou que o rival saísse e partiu para tomar satisfações à mulher infiel.

          Xingando alto, sem ligar para os vizinhos que vieram até o passeio, Belinha revidava às agressões verbais do marido, chegando ao ponto de dizer que carinhoso era o amante, ninguém no mundo era mais quente do que ele. Olhar de ódio, lábio inferior mordido, mãos trêmulas, o Zé Inácio resolveu dar uma dúzia de tapas na mulher. Ela se defendeu armada de um velho facão, não tendo medo de enfrentar o marido traído. Vendo-se em desvantagem, ele pegou uma garrafa quebrada e atirou contra a mulher adúltera. Ela se livrou do projétil ao se abaixar rápido, indo se proteger por trás de uma pequena mesa. A garrafa atingiu o filho caçula do casal, que  teve um ferimento grave na cabeça.

          Chamados pelos vizinhos, os mesmos policiais prenderam Zé Inácio em flagrante. Já mais calmo, não esboçou qualquer reação quando recebeu a ordem de prisão e foi algemado. Ele admitiu na delegacia que não tinha sido essa a primeira vez que encontra a mulher com algum desconhecido em sua residência. “A vida é assim mesmo, nada se pode fazer, cada um já entra nela pra cumprir sua sina”. Logo que saísse da cadeia, ia pedir perdão à mulher e tentar a reconciliação.

          Comentou que ainda não sabia o que tinha se passado com ele para cometer cenas vexatórias como aquelas diante dos vizinhos, mesmo sabendo que ela o trai, gostava muito dela. A briga que ele teve com a mulher já era coisa do passado, a paz voltaria a reinar no lar, “amanhã será outro dia”. Com rosas no jarro posto por Belinha em cima da mesinha.

          A pequena mesa com a toalha branca de linho, tendo no centro o coração grande bordado de vermelho, atravessado pela flecha dourada de Cupido. Só era usada em ocasião especial, presente de Belinha no aniversário dele. Era a toalha que ele mais gostava, embora a razão nunca conseguisse explicar ao coração os motivos desse querer tanto. Também pudera! - como na musiquinha que gostava tanto de cantarolar, o coração tem razões que a própria razão desconhece. 

          Além do mais, quando morrer, não queria choro nem vela, somente uma fita amarela gravada com o nome dela.

           De agora em diante prometia se comportar direitinho e nunca mais  vai ter discussão  com a Belinha.