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quarta-feira, 28 de setembro de 2022

 

O Profeta

Cyro de Mattos

 

Os pássaros cantavam nas árvores frondosas, macacos faziam acrobacias costumeiras nos galhos, soltavam gritos de alegria quando achavam as árvores carregadas de frutas maduras. 

Com a voz pausada, cabelos sedosos enrolados pelos ombros, barba até o peito, apoiado no cajado velho, disse sem hesitar:

- Vamos transformar daqui pra frente em uma realidade justa o que até agora existiu fora da rota certa entre vocês nas glebas de terra das quais vocês são os posseiros. Haveremos de ter por aqui nestas vastas léguas um lugar em que a preocupação de uns com os outros é de fazer o bem de todos, produzir a felicidade coletiva. Liberdade, ordem, trabalho. Organização na produção, sem propriedade privada, nem dinheiro, ambição pelo ouro e a prata. Um lugar onde cultivemos nossas crenças religiosas sem imposições de que uma é melhor e mais verdadeira do que outra. Um lugar de paz, sem males e ambições.  

Com essas palavras, que saíram sob a inspiração daquele que em vida foi o seu pai, uma criatura de voz mansa, que pregava a liberdade como o sentimento mais valoroso  e o amor como o mais forte, estava nascendo um lugar com bases no bem-estar de todos cuja magia ninguém sabia. A ideia foi aceita por um grupo que ouviu atento aquela decisão surpreendente para mudar o que existia entre eles nas relações cotidianas. Os velhos concordaram com ele. Os que ficaram indecisos, os mais jovens, quiseram mais explicação, não desejavam trocar o certo da vida onde trabalhavam a terra com o intuito de ficarem ricos, pisavam caminhos conhecidos onde pretendiam criar a família, por uma realidade da qual não faziam ideia, não sabiam se seriam beneficiados com esse lugar fundado em bases da união coletiva inspirada no amor, entre os que iriam conviver sem ambições e desejos egoísticos. Podia dar errado a mudança para novos movimentos e rumos. Ele intercedeu, afirmando que, entre poder e não poder executar um\a tarefa, que pode parecer impossível, tudo se realiza quando há a razão e a boa vontade.

Acrescentou o que ouviu do pai certa vez: “Deus quando quer e o homem sonha, a obra nasce’’.

O lugarejo tinha muita ave canora e assim ficou sendo chamado de Cantapássaro. Como as terras eram férteis e se estendiam por um vale extenso coberto de grama seria o lugar ideal escolhido para que vivessem na paz, onde as gentes de qualquer origem iriam habitar sem os males das disputas pessoais, que geram as guerras e as perdas irrecuperáveis na memória dolorida.

terça-feira, 20 de setembro de 2022

 

                                            A Disputa

                                                Cyro de Mattos 

 

A terra era fértil, o que se plantava vingava com sobras.  Quando havia disputa por um estirão de terra, a contenda era feroz. “É meu!”, um dizia, “eu descobri primeiro!”, outro alardeava. Os demais não aceitavam, todos se achavam o protagonista da façanha.  A refrega começava, os ventos ficavam irascíveis, provocavam assombros, escombros, feridos e mortos.

Os mais velhos diziam, somente um vai tirar a caça da mata, quando encontra, abate-a, nem pode comemorar. Aparece muitos como o verdadeiro caçador. A discussão começa, tomava o formato de disputa ferrenha.

Era sempre assim, depois de morta a caça aparecia era caçador. O combate se fazia feroz, enquanto a caça apodrecia, e as garras do ocaso a levavam para fazer reinar o entendimento entre eles.

 E as trevas fossem banidas do coração de cada um deles, em batimentos que levavam para a destruição de todos os contendores na disputa feia.   

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

 

                           O POETA MENELAU

                                 Cyro de Mattos

            Ainda não conhecia o fundador da Confraria dos Poetas de Zurubundanga. Exercia o mandato de presidente pela décima vez, sempre eleito por aclamação. Também com ele a regra era seguida à risca, só era poeta quem pertencesse ao ilustre quadro de membros efetivos da confraria.  Quem não tivesse o salvo-conduto, não se imaginasse como um verdadeiro poeta.

Era de estatura pequena, pescoço grosso, cabeça com os cabelos ralos. Dentuço e nervoso. Tinha o sestro de sacudir a cabeça várias vezes quando estava dizendo um poema. Era amigo do prefeito, para quem dedicava sempre dois ou três poemas no dia de seu aniversário. Assinava uma coluna semanal no Diário de Zurubundanga, ali no recanto das letras comentava livros de poesia, apenas os volumes dos ilustres confrades. Ficava contente, ali era um espaço ideal para publicar seus comentários literários ou poesia de dez a vinte estrofes. O recanto não deixava de lhe oferecer uma boa oportunidade para disseminar sua glória, quase dizia vaidade, o que não calhava com seus brios de poeta talentoso, como gostava de dizer para ele mesmo.

 Com ele só os poemas longos, curtos como o haicai nem pensar.  Detestava essa coisinha insignificante, de poeta minimalista, sem inspiração, habilidade no estro, alienado, cultor de fórmulas orientais para compor o verso nanico. De outras gentes, que nada tinha a ver com a magnífica poesia cultivada por ele e os poucos leitores, que eram os mesmos integrantes da confraria.
        Quando se dirigisse a ele, só admitia que fosse chamado de poetão Menelau. Vá lá, poetastro, nada de poeta ou poetinha, isso não condizia com a grandeza de seu estro, que tinha como marca supimpa as rimas mais instigantes. Por exemplo, coração com mamão, tesouro com besouro, presepada com batucada, cachoeira com besteira, facão com anunciação, porrete com macete, camaradagem com garagem, alegria com pirataria, chulé com bicho do pé.

Num dia de calor do verão, estava abastecendo o carro com gasolina no posto. De súbito apareceu aquela cabeça inquieta na janela do motorista, os olhos rutilantes como se quisessem saltar do rosto ossudo.

Disse com entusiasmo:

-  Soube que você publicou um livro de poesia na França.

- Sim – eu disse.

Emendou sem pestanejar:

- Mas isso não é a glória. Não é trunfo nem motivo plausível para que você se ache um verdadeiro poeta.

Meio assustado, disse que a glória não me preocupava. A imortalidade era uma fórmula usada pelos membros de uma academia, como maneira de querer superar a indesejada, o que não é possível.  Ela é a coisa que temos de mais certa.            

- Você precisa aparecer lá na confraria dos poetas da terra, retornou e insistiu na lembrança. - Precisa se filiar ao grupo. Se não tiver em nosso meio formado por imortais, nem se considere poeta.

E recitou o que ele chamava do mais recente poema de sua imbatível inspiração. Uma zorra com versos que rimavam coração com cheiro de manjericão, maneira apurada com vida galharda, embriaguez serena na pele morena, e por aí seguia aferrado à sonoridade das rimas.  Informou que os versos candentes desse poema ou o que fosse lá o que fosse tinham inspiração na sua bela Aurora, mulher incrível, companheira e eterna musa.

        -  Quer ouvir outro poema?

        Comecei a suar, apressando-me em ligar o carro para me livrar das investidas poéticas do Menelau.  Para sorte minha, ouvi o frentista dizer, no outro lado, para que ele tirasse seu carro, que o tanque já estava cheio. Ele não deu ouvido. Começou a dizer outro poema, apesar de meu conselho para que fosse tirar o seu carro, o frentista já estava irritado de tanto pedir isso, tinha gente na fila querendo abastecer o veículo.  Foi o que me salvou. O poeta Menelau, o grande, antes que me esqueça, saiu chateado com aquela inconveniente interrupção à sua elevada dicção para soltar a verve que emergia decidida, naquele instante, de um encontro não marcado por ele com um simples fazedor de versos.

         Ainda lembrou antes de sair:

          - Apareça lá na confraria dos poetas da terra.

          E arrematou com o peito cheio e o rosto contente: 

          - Junte-se a nós e vá em frente como um verdadeiro poeta.        

 

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

 

Versículos

Cyro de Mattos

 

Reparem

O beija-flor,

De Deus

Aviãozinho,

Frescurinha

De ventilador.

No corrupio,

No frufru,

Alegrinho

Quando vê

A suave flor.

Amar e beijar

Essa a vida do ar.

 

Do espírito

Maligno,

Impiedoso,

Invejoso,   

Esfacelador,

Deus vos livre

Desse bicho

Horrendo

Com seu jeito

Pervertido

De machucar 

O que é belo.

 

Cruz-credo! 

Da cegueira

Do espiritado,

Do espinho

Que fura

E não cura

Deus vos livre.

 

Da empáfia

Do indigno

E seu veneno 

Estejam atentos.

 

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

 

Prezado Cyro de Mattos.

EUCLIDES NETO PARA CYRO DE MATTOS

Ipiaú - Ba - 1984

 

 

 

Meu afetuoso abraço.

 

Ando escabriado com você. É que recebi o Cantiga Grapiúna e só agora reposto, passadas algumas safras. No destempo. Debite o atraso à excelência do livro. Deixei-o sobre a mesa do escritório: alguém chegou, abriu, amarrou-se, foi saindo, sempre lendo, grudado ao texto. Achei o troço curioso e, confesso, não tive coragem de “estrovar” o motivo de tanto enlevo da moça – sim, era uma moça! (salvo seja!) – que se prendia aos versos . A leitora viajou. E, confesso ainda, o tempo enxugou a lembrança do fato. Muitos meses depois pensava eu sobre a poesia na região do cacau quando me recordei dos poucos versos lidos no ato do recebimento. Procurei o livro. Diabo! Escritório de advocacia, você sabe, é o que se chama em linguagem de Frei Luís de Sousa: cu de mãe Chica. Cadê o livro? Cadê o livro? Vem logo o palavrão de quem procura e não acha. Ah! Aquela moça levou. Menino, vai atrás dela, traz a prenda. O positivo saiu na busca e apreensão da tua obra. Nada. Voltou. A ladrona de versos (ah! se todos o fossem) viajou. Procura a mãe da moça, pergunta se ela sabe... Com certeza a filha levara... Sabia porque pedira a ela que deixasse o livro, começado a ler, e também andava no apreceio. Volta a moça. Dei-lhe nos tampos. Cadê o livro, menina? Ah! Uma amiga de Salvador viu e levou pra ler. Quero o livro, menina. Vou mandar buscar. Manda, infeliz, preciso dar conta ao autor da gentileza. Repare que a coisa ficou meio comprida e, só agora, meio machucado de tanta leitura e agrado, volta o precioso “Cantiga Grapiúna”. Ainda bem que o li de um gole, gustativando o que nele se contém, estalando a língua de contentamento.

 

                A coisa se cola naquilo que eu idealizava como poesia da querida nação cacaueira. Enfezo quanto tentam tirar do regionalismo a densa qualidade artística que ele possui. Como que os pernósticos da crítica julgam tratar-se de um troço inferior, assim como desprezível música caipira, curiosa, bem verdade, mas indigna dos salões da corte. Espécie de comida exótica para dias de piquenique, mas que não cabe no banquete do rei. Talvez, complexo do eito da cana-de-açúcar. Acho que toda grande obra é regionalista, pois todos os temas humanos pertencem à generalidade dos moradores desse terráqueo nosso. Afinal, amor, “O Cavalo”, “Boi São Bernardo”, “Ao Rio”, “Tropas” existem aqui ou em Katmandu.

 

 

 

“A servos e donos do orvalho diga

O vento sobre aroma em terra amarga”

 

“Lábios de sol e de chuva,

amaro travo nas vigas do tempo”

 

“Veias de sabre

viazul no píncaro

 

destro disparo”

 

Teria que copiar o livro...

 

                Por coincidência leio, também agora, vindo de São Paulo, o jornal “O Escritor” com o “Aníbal Machado e A Metáfora da Ternura.”

                Mais uma faceta sua: romancista, contista, poeta, crítico. Pena a advocacia enxugar nos insossos arrazoados parte do suco do seu talento. Paciência.

Outro abraço

 Euclides Neto

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

 

                     Mamão Doce

                      Cyro de Mattos

 

Comer mamão doce como sobremesa depois da refeição do almoço.

Nada era igual. Doçura pura. Mastigava com prazer os pedaços adocicados da fruta.

Colocava com gosto na gaiola o pedaço do mamão para o passarinho. Não podia deixar de fazer isso, o bichinho merecia fazer o deguste prazeroso da fruta. Deu até para imitar o canto de vários pássaros depois que bicava o pedaço de mamão maduro. Sinal que se sentia bem com a vida que levava, embora seu canto fosse de um prisioneiro, sem voo, som e pluma pelos ares das estações estáveis. Um canto inútil nos dias contrários da gaiola. Sem beber dos ritmos da natureza, livres.      

 Passavam as estações sem ter a graça de viver lá fora.

Virou rotina para o dono ter que limpar a gaiola, depois que ele comia o mamão e cantava vários cantos, todos os dias.

 Se sacudia alegre no espaço pequeno da gaiola, enquanto bicava e comia o mamão.

Limpar todos os dias a gaiola. Que coisa chata. Começou a se indignar com o passarinho. Comia o mamão, mostrava-se alegre, deixava a gaiola suja, aquele passarinho nojento.  

Contrariado, imaginando como se sair daquela obrigação de limpar o que o passarinho sujava na gaiola.

                “Deixe estar, seu dia vai chegar, não vai mais sujar.”

               Dessa vez deixou o pedaço de mamão com um tantinho de coisa líquida dentro. O passarinho só deu um bicada no pedaço do mamão.  Caiu nervosinho, sem canto, qualquer movimento que indicasse que ali na gaiola existia um bichinho que ficava alegre imitando o canto de outros quando acabava de comer seu pedaço de mamão.

                   O veneno fizera o efeito que esperava.

                  “Agora passarinho arreliento vá cagar e sujar na cidade dos nadas, lá não há mamão doce pra você comer prazeroso. Acabou qualquer tipo de canto, bicho imundo, teimoso.”

           Assoviou, aliviado, como se tivesse se livrado de uma coisa que lhe dava desconforto, transtornava.

        “Triluli, trilulá, bem que disse que seu dia ia chegar.”