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sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

 

              A Mudança do Mau-Caráter

 

    Cyro de Mattos

                  

                   Nunca suportou

                   os ganhos do vizinho

                   na vida.

 

 

Inconformado com a morte do vizinho. Chorou, soluçou, gemeu, uivou.  Em estado lamentável, indisposto nas refeições, o coração nas profundezas do desvão, só depressão. A mulher sem entender a reação brusca. Deveria estar feliz. Nunca suportou os ganhos do vizinho na vida. Sortudo, bafejado pela sorte, repetia com o rosto de cólera. Esbravejava, os punhos cerrados.

O vizinho presenteado com a felicidade por todos os lados.  Mulher esbelta, filhos saudáveis, família invejável. Carro de luxo. Casa grande com piscina, jardim, quintal. Patrimônio sólido. Nada lhe faltava.

Lamentava o seu tanto pelo canto, saía mês, entrava mês. Casa pequena, tinta desbotada nas paredes.  Precocemente envelhecido como a mulher, órfão de pai e mãe, ainda por cima sem filhos, no lar o vazio avançava numa doença incurável.  Mísero salário, balconista na casa de materiais para construção.

Ruminava as pragas, jogadas no outro. À tona a fúria, babava-se, tomado na vontade de querer quebrar tudo em casa.  Ter que aturar aquele felizardo ao lado, bafejado com as benesses da vida. Uma desgraça, não merecia a vizinhança daquele homem felizardo, afrontas com o brilho nos olhos, a dentadura perfeita, riso de que vivia com gosto, de bem-estar com a vida.

Até quando suportar aquela fronte tocada de vitórias? Acumuladas do seu lado como fraturas e feridas, que não se fechavam no seu jeito pessimista de sentir a vida.       

Daí houve a incompreensão da mulher, em razão de sua repentina mudança de atitude. Consternado com a morte do vizinho, o fato em si deveria funcionar ao contrário, um alívio chegado em boa hora. Vitória finalmente festejada, anunciada sem pejo pela indesejada, sua visita varria as desigualdades, nivelava as diferenças com um só padrão coberto de pó e esquecimento. 

 Triste, muito triste, o quadro hostil da indesejada, dona de um sinistro rosto, famoso, impenetrável. Disse com a voz categórica, vou ao velório, acompanho o enterro, levo uma coroa de flores, deposito no túmulo dele. 

As pessoas surpresas com o seu gesto súbito.

Mostrava-se arrasado. Sem querer acreditar na última pá de terra jogada na cova. Nunca mais ia vê-lo no passeio da casa ao lado, movimentando-se lá dentro, cercado de conforto, cantarolando, beneficiado em tudo, entre os poucos privilegiados na dura lei do cotidiano.                           

Nos dias revoltos odiá-lo, nunca mais. Morreria breve, frustrado. De inveja incomum agora ausente, sem o traiçoeiro ciúme, raiva primorosa, seguidas vezes levando-o ao desconforto.   

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

 

  CARNAVAL ANTES

 Cyro de Mattos

 

Em Itabuna, antigamente os vizinhos costumavam colocar cadeiras no passeio para desfiarem um dedo de prosa. Esse costume servia para que estreitassem os laços de amizade, distraindo assim a mente cansada dos afazeres diários. Com a lua clara prosseguia a conversa animada entre os vizinhos, geralmente em torno de um assunto interessante ligado à cidade, até quando fosse chegada a hora de se recolherem no sono que descansa e reconforta. Numa dessas conversas entre vizinhos, eu escutei seu Zeca, o dono da farmácia, dizer a meu pai que o começo do carnaval em minha cidade remontava ao ano de 1908. A festa naqueles idos era conhecida como “Domingo do Entrudo”.

 

Escutei também o dono da farmácia dizer que no começo os bailes carnavalescos eram realizados no armazém da rua do comércio ou no Cine Odeon. Com a inauguração do primeiro clube, em 1940, os bailes mudariam de cenário. Durante quatro noites e duas matinês, foliões adultos e pequenos iriam ser acolhidos agora nos salões de um clube. Ao lado do carnaval nas ruas, a folia passava a contagiar no clube os blocos formados por senhores e senhoras, rapazes e moças da elite. De bigode retorcido nas pontas, de braço dado com as esposas, esses senhores sisudos davam voltas contínuas no salão. Bem entusiasmados, não paravam de cantar as marchinhas “Linda Lourinha”, “Pirata da Perna de Pau”, “As Pastorinhas”, “Touradas em Madri”, “Alá-Lá-Ô” e tantas outras que ficaram famosas em nosso cancioneiro popular.

 

O Carnaval de ontem era do tempo da serpentina, confete e lança perfume só para animar. Era o carnaval da musa colombina, pierrô apaixonado, arlequim sonhador, palhaços que não paravam de brincar e soltar piadas para as moças. Era o Carnaval dos quadros satíricos em que não faltavam fantasias e brincadeiras bobas. Era comum a sátira ser usada por blocos e cordões. Aproveitava-se um fato político, econômico, social ou esportivo com repercussão no ano como assunto engraçado para animar o carnaval.

 

Pessoas de minha cidade, que pertencem a uma geração mais velha, tem saudade do Carnaval daquele tempo. Uma dessas pessoas é seu Sessa. Funcionário Aposentado do Banco do Brasil, outrora folião dos mais animados, disse certa vez que nunca vai se esquecer daquele palhaço irrequieto e da pastorinha enamorada. Daquele palhaço de calças folgadas e nariz de limão, que não parava de pular e soltar piadas no salão quando a orquestra fazia uma pausa para que os foliões descansassem um pouco.

 

Já vai longe o tempo em que o carnaval começava cedo, aos sábados. Vestindo calça listrada, sem camisa, usando cartola e fraque, o Zé Pereira aparecia tocando o bombo, com meninos sujos e afoitos atrás. Batia forte no bombo o Zé Pereira, em frente às lojas e armazéns. Já vai longe esse tempo, o Zé Pereira ordenava a toda voz aos comerciantes que fechassem suas portas. É pra já! Cedo a folia vai tomar conta da cidade, ele dizia.

 

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

 

 

Meu Bahia na mocidade  

 Cyro de Mattos 

Depois que vi o Bahia jogar em minha cidade natal, no velho Campo da Desportiva, passei a ter duas paixões como fiel torcedor de um time grande de futebol. Agora era torcedor do Vasco da Gama do Rio e do Bahia de Salvador.

Já crescido, esse mesmo menino dentro do rapaz, que fora estudar em Salvador, saberia das gloriosas conquistas de seu novo time de futebol com as cores azul, vermelho e branco.  Procediam do querido Bahia, famoso tricolor de aço, um time sem igual, o que nasceu para vencer na boca do torcedor. O moço do interior apegara-se tanto ao famoso esquadrão tricolor que não parava de torcer na arquibancada de cimento do estádio da Fonte Nova durante o desenrolar da partida.

Tinha certeza da batalha vencida quando a partida jogada era válida pelo campeonato estadual. Vibrava inquieto com as jogadas magistrais dos craques de seu time do coração, ídolos para ver e não esquecer. No meio da torcida desfraldava a bandeira de seu amado tricolor baiano, não perdia um jogo, soltava da garganta o grito de gol com todas as forças que pudesse retirar do coração de adolescente.    

         As vitórias desse Bahia vitorioso empolgavam, atravessam agora a memória do torcedor idoso e se aninham no fundo do gol como se o ontem fosse o hoje. Emerge do fumo do tempo com a sua maneira afetiva e festiva de se manifestar no teatro da bola. Tem o hábito de fazer com que o torcedor seja capaz de se reinventar diante do sol partindo-se na gargalhada da vitória. É o autor de proezas como poucos times conseguem realizar quando então a torcida entra em delírio, justamente no momento em que a bola foi morrer no fundo do gol quando a derrota parecia ser inevitável. Bahia! Bahia! Bahia! O grito sonoro de mais um Bahia, repetido seguidas vezes, de repente inventa um coral diferente com o qual o pobre fica rico, o gago aprende a falar, qualquer um se torna herói ante os maiores desafios da vida.

           O grito do torcedor entusiasmado propaga-se com os sons da alegria derramados ao toque do hino eletrizante do time, a invadir as ruas e os becos da cidade de santos e orixás.  Em pouco instante a maior felicidade cabe em vários cantos da cidade com a sua beleza antiga, vibra por onde o trio elétrico segue tocando o hino do esquadrão de aço. A festa da vitória irrompe e não cessa com as vozes do amor impregnadas de fé pelo time mais popular da Bahia.  

           Há muito tempo soube que a vida tem algo diferente para o torcedor do Bahia. Principalmente quando a bola balança a rede do gol adversário com o chute desferido pelo craque Léo Briglia. Num pacto da emoção com a paixão, selado com a conquista de outro campeonato, há então um torcedor veemente que proclama:

            - Deus me livre não ser torcedor do Bahia!  

           Ah, meu Bahia, de uns anos para cá, vejo-te tropeçando nas pernas, sem aquela garra e técnica admiráveis, que o faziam brilhar com as vitórias nos gramados baianos e de fora. Ando meio sem graça com sua performance, rolando nos últimos lugares do campeonato brasileiro de futebol, lutando para não ser rebaixado para a segunda divisão. Como dói. Tenho saudades de mim, daquele moço vindo interior para cantar teu hino brioso no estádio cheio da fonte Nova.

 

Somos a turma tricolor

Somos a voz do campeão

Somos do povo um clamor

 

Ninguém nos vence em vibração!

Vamos, avante, esquadrão!

Vamos, serás o vencedor!...