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segunda-feira, 29 de abril de 2024

 


Casa das Américas  Apresenta 

Os Livros Vencedores em 2023


Havana, 25 abr (Prensa Latina) A 64ª edição do Prêmio Literário Casa das Américas propôs hoje diversas atividades no Salão Manuel Galich da instituição cultural da capital, incluindo a apresentação dos livros vencedores em 2023.

 

 

 

 

A instituição abrirá suas portas a partir das 15 horas, horário local, para receber os volumes Todos somos islas, de Felipe Núñez (Colômbia, conto); e Después del incendio (Papeles de guerra: Venezuela 2013-2021), de Eduardo Ernesto Viloria (Venezuela, literatura testemunhal).

Também serão apresentados Infancia con animal y pesadilla (y otras historias), de Cyro de Mattos (literatura brasileira, conto), baiano de Itabuna, e La orilla de Caliban. El rastro de la filosofía afrocaribe en el siglo xx, de Roberto Almanza (Colômbia, Prêmio de estudos sobre a presença negra na América contemporânea e no Caribe).

A eles se juntará Diario de las revelaciones, de Gustavo Pereira (Venezuela, vencedor do Prêmio de Poesia José Lezama Lima).

Uma hora depois, no próprio Salão Manuel Galich, será realizado o painel El sencillo arte de narrar (una provocación), com o jornalista e contador de histórias mexicano Fabrizio Mejía, o escritor e sociólogo argentino Hernán Ronsino e a dramaturga cubana Lourdes de Armas, membros do júri do Novel.

 

sábado, 27 de abril de 2024

 

             Tempos de Ferradas 

             Cyro de Mattos

 

              Para

            Jorge Amado

           e Telmo Padilha,

          em memória.

 

De tanto estar o céu 

em longe amanhecer

dizendo o bem na fé      

houve o padre Livorno 

com a sua batina mágica.

 

Ecoava temente a Deus  

sua voz no chão bárbaro

indiferente ao que dizia

a escritura da paixão.

A catequese do louvor

 na sapiente profecia

se ligava nos indígenas

como refúgio do amor.

.

Cruzavam solidões

sacolejando na carga

os que vinham de longe.

No pouso do povoado

queriam nova ferradura

para o casco da burrada.

 

Em alvoroço de festa

ferravam até as árvores,

uma coisa grandiosa de ver

onde deixavam sua marca 

para o mundo não esquecer.    

 

O machado anunciou          

os propósitos da terra,  

duras mãos enredaram 

grossos nós do destino.   

Com talhos na jaqueira

a folhinha imprimiu      

as vastidões desoladas.     

 

Em ébrio ouro vegetal

facão e podão dançaram. 

Comercinho novo

veio cifrar o mundo,

o fazer das ferramentas

anotava a cada chuvada

a arte de influenciar a lavra.

 

Inaugurou-se a praça

com boa água ardente.

Lá para as tantas

viola no peito gemia,

 sua irmã sanfona

retirava da lágrima     

sons agudos com suor,           

frio e assombro da serra

nos dias de ventania. 

 

Em casas escoradas

o bafo da noite abafada, 

na cama de vara o coito

quente ligando corpos

na danada hora do gozo

se amassando gemendo

no ninho acontecendo.   

 

Marasmo de rua comprida

oculta os dias de outrora

amadurecidos na safra 

dourada como a riqueza

sobrado amanhecendo,

o sol sumindo sem brilho

na vontade alquebrada

soterrada de desejos.

 

Armazém de porta larga

guarda o tempo remoto  

das estações grávidas,

a barcaça com amêndoas

valendo tanto quanto ouro.

 

Ferradas nem mais viceja,

 dorme agora onde sombras

envolvem a praça calada

perto da igreja em vigília      

à espera de gente humilde

que vem à procura de Deus.  

 

Sua atitude sem o cheiro

de resina se liga à memória   

de bairro-mãe desprezado

ao léu de omissões seguidas,

ninguém quer conhecer   

como ali se plantou a vida. 

 

Ao invés do vazio na história

tudo que deseja é um caminho,

nada mais correto o lugar

que lhe é devido nos frutos,   

o amor ao amor retorna

quando a razão tem caráter,

protege o que é da terra

numa ação de erguimento

e não como longo despejo   

através da cor desbotada.     

 

 

 

 

quinta-feira, 25 de abril de 2024

 

           Inocência sem Flor

           Conto de Cyro de Mattos   

 

A história do Brasil pode ser considerada pelo lado do negro com três pês: pão, pano, pancada. Pelo lado do indígena, entram nessa história feita de assombros nas caçadas humanas três emes: missa, miçanga, mato.

Capítulos dessa história, impregnada de usurpação e açoite, dizem que o Brasil Colonial formou uma dívida com o negro e o indígena que de tão grande nas léguas da desgraça tornou-se impagável.

Em algumas paragens desse Brasil continental, pisado pelo colonizador ávido, chegou-se ao ponto de terem desaparecido populações indígenas que viviam em perfeito entendimento com a natureza, tirando dela apenas o necessário para a sobrevivência.

           Às vezes, escuto vozes que rolam dos longes nesses rastros da desgraça.  Como acreditar? Houve uma mancha que envergonha.  A fuga em desespero tingiu a manhã do horror na taba queimada.  Por entre as sombras do que é perverso e não se apaga, remorso não existiu dos que feriram os hábitos da inocência irmanados com o verdor da mata, dizimaram a aldeia, forjaram a chacina, denominando as cenas insanas de façanhas.

Quem saberá quantos ventos na fuga de uma gente sem rumo entoaram lamentos de uma triste música? Gemidos produzidos nas entranhas da selva impenetrável?  Como se nada de horror acontecesse num mundo que amanhecia cheio de passaradas, brilhos e fragrâncias.

Pasmem os céus, até hoje sentimentos que escorrem em dó e lágrima ressurgem desses rastros que machucam. Tive conhecimento que a virgindade de meninas indígenas vale pouco, muito pouco na cidade de São Mateus, que fica nos confins do braço norte do território do Japará.  Lá um homem branco compra a virgindade de uma menina indígena também com aparelho celular, peça de roupa de marca e com uma caixa de bombom.

 

As mães das vítimas pediram à polícia há um ano para apurar o caso. Nenhum suspeito foi preso até agora.

          Doze meninas já prestaram depoimento. Elas relataram que foram exploradas sexualmente e indicaram nove homens como os autores do crime. Entre eles, há comerciantes locais, um ex-vereador, um médico chamado Pedro de Deus, um farmacêutico, dois sargentos e um açougueiro.

As vítimas vivem na periferia de São Mateus do Japará, município de baixa renda, que vive das atividades agrícolas, com base em lavouras primárias, de pouca duração, nas estações temperadas de sol e chuva.  São Mateus do Japará tem quase cem por cento da população formada por gente indígena. Calcula-se que a população seja de quinze mil pessoas.

 Entre as meninas exploradas, há as que foram ameaçadas pelos suspeitos. Algumas foram obrigadas a se mudar para casa de familiares, na esperança de ficarem seguras. O repórter da revista “O Planeta” ficou interessado pelo caso logo que tomou conhecimento.

Conversou com algumas dessas meninas. Criou inicial fictícia para cada uma delas, querendo com isso dificultar a identificação.

B, de 12 anos, conta que vendeu a virgindade para um vereador. O acerto, afirmou, ocorreu por meio de uma prima dela, que é também adolescente.

          “Ele me levou para o quarto e tirou minha roupa. Foi a primeira vez, fiquei depois sem saber o que fazer.”

A menina informou que uma amiga dela esteve duas vezes com um comerciante.

       “Na primeira vez, ela também foi obrigada. Ele deu um celular.”

        Já L, de 11 anos, disse que ela e outras meninas ganharam chocolates, dinheiro e roupa de marca em troca da virgindade. Como aconteceu com as outras na primeira vez, ela foi também obrigada. Recebeu trinta reais e uma caixa de chocolates.

Outra menina, S, de 13 anos, disse que presenciou encontros de sete homens com meninas de até dez anos.

“Eu vi meninas passando aquela situação, sem poder fazer nada.”    Comentou que eles sempre dão dinheiro em troca disso (da virgindade).

          Ela aceitou falar ao repórter porque já tinha denunciado tudo à polícia federal. Sabia que o pior podia acontecer, mas não tinha medo de nada.

          “O homem que me usou primeiro falou que se continuasse denunciando eu iria junto com ele pra cadeia.”

A mãe de S disse que, se ela abrir a boca, o homem que tirou a virgindade da filha vai mandar matar ela.

Não é difícil imaginar que a menina S tinha os olhos sumidos no rosto sem brilho, durante a entrevista que deu ao repórter de “O Planeta”.

Quase não saiu o que disse no final:

        “Na primeira vez senti as coxas doloridas. A boca com um gosto de coisa ruim. Depois fiquei triste”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 15 de abril de 2024

 

         Memórias Infantis de Graciliano Ramos

         

        Cyro de Mattos

 

        Vê-se em Infância (1945), de Graciliano Ramos, que a vida em seu começo ofereceu ao escritor de Alagoas momentos de amargura e pessimismo. Forjada dos contatos com as pessoas de alma pobre e as coisas em estado atrasado, a vida não poderia nas raízes latejar o coração pequeno com batidas leves.  Assim, nas queimaduras de uma poeira áspera que se acumulava no cotidiano, o escritor de amanhecer hostil fora acostumado aos maus tratos e castigos.

Nascido em Quebrangulo, interior de Alagoas, o autor de Vidas Secas (1938), romance constituído de episódios autônomos, que podem ser considerados como contos, não guardou nenhuma lembrança de sua cidade natal. Cedo se transferiu para Buíque onde se criou numa zona de indústria pastoril, no interior de Pernambuco. Muitos fatos dessa época estão arrolados em suas memórias infantis atravessadas de dores e incompreensões. As informações precisas sobre pessoas e fatos lá estão alinhavadas de maneira pungente, expostas nas páginas ausentes de serenidade, desde o amanhecer até quando chegava a noite onde tudo é silêncio e a vida respira abafada na travessia solitária formada com sonhos pesados, carentes de ternura.

Dessa poeira cinzenta trouxe pedaços de pessoas, quase sempre más, ridículas, para o seu mundo interior, o qual seria articulado depois em forma de ficção, operada como permanente auscultação de um contínuo psicologismo angustiante. Agora a realidade produzida pelo artista da palavra se vestia com a roupagem do estilo despojado, focado numa humanidade despreparada para o bem-estar, sempre acompanhada de momentos opressivos.  No discurso que une o passado ao clássico moderno, sem filiação aos tempos românticos, nem ao beletrismo, avultam as atitudes de rancor, seguidas vezes vão ser encontradas em suas personagens cercadas de atmosfera sombria feita de niilismo devastador.              

Encontram-se nessas memórias da vida calejada com a hostilidade as marcas pessimistas dos gestos fornecidos pelos castigos que os pais afligiam ao filho, como bolos de palmatória, chicotadas, cascudos e puxões de orelha, prisão na loja onde convivia com as baratas, ratos e insetos. O pai e a mãe apresentavam-se grandes, temerosos, criaturas desconhecidas como se fossem seres misteriosos. O pai tinha imaginação fraca, era incrédulo, expandia a índole perversa com as surras cometidas no filho, a mais absurda a que fora exercida com o cinturão grosso. A mãe tinha uma índole carregada de sentimentos movidos com a dureza do cotidiano. Montava, atirava, era categórica na atitude imperiosa que comanda.

O espírito infantil de Graciliano Ramos recolheu-se na imagem de que a mãe era uma senhora sempre a mexer-se com uma boca má, olhos que em momentos de raiva se inflamavam com um brilho de loucura. Ente difícil que na harmonia conjugal se afrouxava, amaciava as arestas, relaxava os dedos que batiam na cabeça, dobrados, tendo a dureza de martelos. Pedaços de seus gestos foram capturados pelo escritor nas rugas, olhos nervosos, boca irritada, mãos nada suaves. O pai e a mãe eram dois seres que impunham obediência e respeito com suas vozes absolutas. 

Nesse círculo familiar, em que o céu era terrível, natural que os seres e os objetos se tornassem irreconhecíveis, absorvessem nos dias uma atmosfera difícil de fluir sem rancor. Nesta circulava uma humanidade formada com aflições e dissabores. Normal que a submissão de movimentos infantis fosse uma constante, conduzida em suas circunstâncias críticas para uma composição feita de negações e inércia, como soubera com forte tristeza nas primeiras impressões que teve com a justiça através da surra tomada com o cinturão grosso. 

Na surra terrível com o confronto desigual de forças, entre o algoz prepotente e a vítima encurralada, a parte que lhe cabia no polo passivo de um processo cruel era constituído de elementos que o atormentavam. Irrompiam das fissuras que tinham a perda de suas características humanas, destituídas do estar gregário harmonioso em família.

 

“Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando.  E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra.” (página 31)

 

Subalterno da voz absurda admitia que era justo o que se fazia com ele.  Na surra que tomou com o cinturão grosso acontecera seu primeiro contacto com a justiça, colocando-o na situação irremediável de réu considerado como uma coisa reles, derrotado pela impotência. Na cela de sua passividade frequente não tinha como se opor a toda essa miserável situação adversa.

De suas memórias infantis mestre Graciliano Ramos com um estilo realista traz imagens e figuras que marcaram os passos sem auroras. Nos movimentos de uma narrativa que não cedeu à facilidade, pouco faz concessões à esperança, suas criaturas aparecem com a marca de coisas desagradáveis.  Chico Brabo era perverso com o menino de dez anos, mas prestativo com os da rua. Uma das recordações mais desagradáveis que lhe ficaram das pessoas na infância estava em Fernando, sujeito magro, de aspecto tenebroso, impertinente, nunca fora visto sorrindo. Sua fisionomia viscosa, de coisa úmida, dava a sensação repugnante de uma lesma vertebrada e muito ágil. 

De todas as páginas escritas com a mão de mestre, nessas memórias que evocam os primeiros movimentos de um autor com a suas experiências negativas de vida, sobressaem algumas que de tão verdadeiras fazem pensar que a vida é inviável quando se move com a insensatez dos desarranjos, má vontade, conflito, soluço. Entre aquelas que chegam impregnadas desse conteúdo pelo avesso, destacam-se como páginas de análise arguta da natureza humana, resultantes de uma narrativa concisa e revoltante, por exemplo, “Um Incêndio”, “Um Enterro” e “Venta-Romba”.    

Em “Um Incêndio”, o menino vai com o amigo José conhecer um incêndio nas cabanas pobres com a cobertura de folhas de Ouricuri.  Tinha conhecimento até aquele momento do fogo com suas pequenas labaredas quando se cozinhava a comida no fogão a lenha ou nas fogueiras de São João.  Fogo imenso com labaredas altas e fumaça impelida para o céu como uma nuvem cinzenta, densa, nunca lhe ocorrera na visão. Daí a decepção quando encontrou os tocos de uma cabana queimada pelo fogo. Teve a atenção chamada pelo grupo de pessoas que se lamentavam em torno de   um resto de gente, um torrão sem braços e pernas, a cabeça queimada, o rosto como uma careta feia na qual pelos buracos dos olhos desciam uma gosma nojenta. Era de uma menina preta que havia morrido queimada no incêndio.  Havia duas meninas pretas que estavam cozinhando a comida na cabana enquanto os pais trabalhavam no eito. A centelha do fogo que saltara do fogão a lenha pegara nas palhas da cobertura do barraco. Uma das negrinhas fugiu, a outra ficou tirando de dentro da cabana as coisas que achava como importantes.  Quando pensou que conseguira salvar todas as coisas tidas como importantes, lembrou-se da litografia de Nossa Senhora. Ao tentar sair do barraco em chamas com a litografia da santa encontrou a porta da entrada bloqueada pelo fogo.

 

“Curvei-me num arremesso de coragem. Faltava-lhe o cabelo, faltava a pele – e não havendo seios nem sexo, perdiam-se os restos da animalidade. A superfície vestia-se de crostas, como a dos metais inúteis, carcomidos no abandono e na ferrugem. Em alguns pontos semelhava carne assada, e havia realmente   um cheiro forte de carne assada; fora daí ressecava-se demais.” (Pág. 83)

 

         Distinguiu uma cara, melhor dizendo, sobra de cara, máscara pavorosa, e retornou para a sua casa com a imagem horrível daquela visão, arrependido de ter aceito o convite para conhecer um incêndio. Responsabilizou Nossa Senhora como autora daquela agonia sórdida.  Se a criatura não tivesse a ideia de salvar a imagem, estaria cortando palma de Ouricuri para fazer nova cabana. As pessoas grandes refutaram o seu modo de julgar a situação acontecida por força maior, independente da ação humana.  Nossa Senhora não era uma figura feroz e impiedosa. Podia ser pior. O fogo poderia ter comido um dos prédios importantes do comércio local. Escolhera a negrinha para que alçasse ao céu, sem precisar passar pelo fogo do purgatório.  Não lhe convenceu o argumento com a benesse estranha ao drama.  Não lhe pareceu que o fogo do purgatório tivesse a ver com o do incêndio que matou a negrinha. E a negra, imunda e com um defeito de cor, não estava no céu.

 

 “Que ia fazer lá? Estragaria as delícias eternas, mancharia      

   as asas dos anjos”. (pág. 86)

 

         Nessas memórias infantis tomamos conhecimento de vivências amargas que serviram ao escritor para construir na sua ficção regional com personagens vivendo uma atmosfera angustiante coberta de sombras. O gosto pela literatura provavelmente herdara do avô paterno, de quem tinha um retrato velho no álbum guardado no baú. O próprio Graciliano Ramos admitia ter recebido desse avô a vocação que se alimentava do ócio e das coisas que não servem para nada.  Em Buíque, na primeira escola, provou os primeiros desconfortos dos livros didáticos do Barão de Macaúbas. Mudou-se para Viçosa, depois passou para Maceió onde frequentou um colégio de má fama, que lhe deu momentos da vida sem bons predicados.  Retornou e, aos 18 anos, foi morar em Palmeira dos Índios, no interior de Alagoas, onde se tornaria prefeito. Graças a dois relatórios que escreveu se tornou conhecido. Os documentos, provenientes da gestão municipal com a marca de sua escrita precisa, deram a entender que ali havia um escritor promissor, inclinado para largas expressões, voos altos. 

        Vem se dizendo ao longo dos anos que vivemos em um vale de lágrimas. A vida é sofrimento. Sofremos é porque estamos na vida, alude Jorge de Lima. Constata-se que toda boa literatura tem sofrimento. Graciliano Ramos escreveu uma obra singular como conhecimento da vida, haurida no Nordeste sem o verde, seco, desamparado, que confirmam essas observações. Faz lembrar por isso o que a literatura tem de catarse para libertar-nos de paisagens calcinadas, sombrias, em que andamos.  

      E o poeta William Blake adverte que nunca se deve deixar de sonhar porque só nos sonhos pode ser livre o homem.   

 

 

Referência

 

RAMOS, Graciliano. Infância, Editora José Olympio, Rio de Janeiro, 1945.

 

 

 

quinta-feira, 11 de abril de 2024

 

Mundo Indígena

Cyro de Mattos

 

Bahetá, a velha indígena, ensinava como era importante o milho para o batismo quando então o pajem colocava o nome na criança simbolizando a sua verdadeira alma. Lembrava que algumas partes da anta deviam ser reservadas para os espíritos. Certa porção era preparada e depositada na mata para os encantados. Aconselhava ao caçador que ingerisse infusão de vegetais aromáticos antes de sair para caçar. A escolha do vegetal dependia da espécie de animal escolhido para caçar.

 

Pataxós – Wikipédia, a enciclopédia livre

 

 

 

Acreditava que alguns alimentos não deviam ser consumidos em certo período para evitar transtorno. As mulheres, após darem à luz, não comem carne de tatu ou de cágado d’água, tais alimentos tornam o recém-nascido com a saúde precária, são proibidos de serem ingeridos pelas indígenas da aldeia.  

Deviam ter gratidão pelo tamanduá, não matando, nem se alimentando dele. Foi ele quem ensinou cantos e danças, pois em outros tempos já tinha sido gente como eles. Um caçador oferece para uma mulher um alimento que trouxe da mata, e, em retribuição, recebe uma comida por ela preparada. Dessa forma, a amizade entre as famílias era constantemente fortalecida.

        Chamava atenção para alimentos considerados como sagrados, agindo espiritualmente naquele que se alimenta deles como ingredientes positivos. No período da puberdade, o beiju com molho de pimenta, o peixe cozido e a cabeça de peixe são benzidos e defumados antes de serem consumidos pelas meninas.          

Conhecia dezenas de lendas pertencentes ao seu povo. Era com alegria contagiante que contava a lenda da mandioca. Explicava a sua história e a origem.  Mani era ainda pequena e muito querida pela aldeia.  Neta do cacique, foi motivo de tristeza para o chefe da tribo quando apareceu grávida. Isso porque não era casada com um bravo guerreiro, como ele desejava.

O cacique obrigou a filha a dizer quem era o pai do seu filho, mas ela   dizia que não sabia como tinha ficado grávida. A desonestidade da filha desagradava muito o cacique. Até que um dia ele teve um sonho que o aconselhava a acreditar na filha, ela continuava pura e dizia a verdade ao pai. Desde então, aceitou a gravidez e ficou muito contente com a chegada da sua neta.

Um dia, perto de clarear a manhã, Mani foi encontrada morta na taba. Ela simplesmente tinha morrido durante o sono e, embora sem vida, apresentava um rosto alegre. Foi enterrada dentro da sua oca por sua mãe, cujas lágrimas umedeciam a terra tal como se estivesse sendo regada. Dias depois, nesse mesmo local nasceu uma planta, diferente de todas as que a tribo conhecia.  Percebendo que a terra estava ficando rachada, cavou na esperança de que pudesse desenterrar sua filha com vida. A mãe da menina encontrou uma raiz, a mandioca, que recebeu esse nome em decorrência da união do nome de Mani e da palavra oca, que significa moradia indígena de uma ou mais famílias.

quinta-feira, 4 de abril de 2024

 APRENDER

Edson Mendes

A parte não existe sem o todo. O todo não existe sem a parte. Entender a complexidade nos obriga a pensar. E, pensando-a, compreender que os tecidos, tecidos, é que dão vida e substancia à grande teia da existência. O pensamento complexo, que é sintético e, portanto, dialético, reúne, religa, reconecta o aparentemente fragmentado, tornando-o sistêmico e recursivo, contraditório, mas real.

O todo é, ao mesmo tempo, maior e menor que as partes. A perna decepada continua existindo no cérebro que sente. A tapeçaria, vista de longe, esconde os fios que a tecem. De muito perto, contudo, os vemos – mas não à peça. As duas dimensões, do complexo e do simples, estão contidas e contêm-se como o côncavo e o convexo. Como a vida e a existência, que não são iguais, porque, se é certo que uma pedra existe, já não é tão certo que viva.

Nós não compreendemos. Não sendo possível argumentar sem o alicerce da complexidade, o pensamento critico torna-se obtuso. É preciso, mais que ouvir, escutar, mais que ver, enxergar, mais que entender, compreender. Simplistas, simplificamos. Alheios, alheiamo-nos. Esquecemos o motivo pelo qual inventamos a cidade, a praça, a calçada, a escola, a prisão. Seu uso privatizado, e seu desuso coletivo, nada significam para o olhar dos insensíveis, ou ignorantes, que somos todos nós quando só enxergamos o que vemos.

Nós não aprendemos. Todos os dias, quando os dias nascem, reinventamos a roda. Cometemos os mesmos erros. Desde o planejamento de proles, esgotos e hospitais até o traçado das ruas, dos perímetros e das regras mais elementares de convivência. Por esses dias, a moda é a linguagem. Ou a linguagem é a moda, você pode escolher. Sendo a palavra, escrita ou falada, apenas parte da linguagem, ao “simplificar” os códigos tornamo-nos simplistas, incompletos, inconclusos, parciais, simplórios. As palavras, mesmo imperfeitas, traduzem o que pensamos, e seu significado deve ser comum a todos. Não havendo esta convenção, haverá, é certo, cada vez mais, o desencontro assimétrico entre o que se diz e o que se faz.

Nós não sabemos. Reduzir para entender, reunir para interpretar: como chegar à síntese sem o interstício da análise? A dificuldade de entender, compreender, ver e enxergar o complexo nos torna dependentes de mais conhecimento. E isto é bom, porque a construção do conhecimento exige mais, e não menos. É impossível tornar simples o que é complexo. Os dois polos, do simples e do complexo, formam a esfera da práxis, que se alimenta da reflexão. Nivelar pelo menos, e não pelo mais, ou mesmo pela utopia, dificulta o raciocínio e compromete a inteligência, ao contrário do que pregam os simplificadores. Porque não compreendemos, e não aprendemos, e não sabemos, perde-se o sentido, e sem o sentido perdemo-nos todos na ilusão metafisica. Ao tomar a parte pelo todo, ou o efeito pela causa, ipsis litteris, tornamo-nos ainda mais tolos do que aqueles que supomos o sejam por cultivarem costumes antiquados.

A linguagem que dizemos culta, complexa e contraditória, não é um mal, e sim uma contingência. Necessária para ir além das superfícies. Os que a condenam são aqueles que não a cultivam. A variante coloquial é o seu complemento e, portanto, boa e necessária também. Não dependem do gosto, porque se trata da essência. Cuidar, cultivar, zelar são virtudes. O seu contrário, mesmo sendo moda, sempre será vício.

13.03.3024
 

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Carpe Diem!
Edson Mendes de Araujo Lima, MSc
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quarta-feira, 3 de abril de 2024

 

Editora de Portugal Publica

Outro Livro de Cyro de Mattos

Inspirado no Rio Cachoeira

 

A editora Palimage, de Coimbra, Portugal, acaba de publicar Águas de Meu Rio, de Cyro de Mattos, livro que contém um poema dividido em vinte partes em que o autor denuncia em versos pungentes e doloridos o estado atual do Rio Cachoeira, largado ao abandono como um grande esgoto que escorre a céu aberto.  Com prefácio da poeta e musicista Denise Emmer, da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal, Rio de Janeiro,  traz na capa uma foto histórica com o autor sentado em uma pedra das margens do rio, observando as lavadeiras quando lavavam as roupas numa manhã ensolarada, em 1966.  No Brasil, Águas de Meu Rio foi publicado pela Editora Ibis Libris, do Rio de Janeiro.  Este livro forma com os volumes Vinte Poemas do Rio e O Discurso do Rio a Trilogia das Águas, inspirada no rio Cachoeira.  

A Editora Palimage (www.palimage.pt) publicou anteriormente  cinco livros do poeta grapiúna e que são estes:  Vinte Poemas do Rio, O Discurso do Rio, Vinte e Um Poemas de Amor, Ecológico e Poemas Ibero Americanos. Sobre a poesia de Cyro motivada pelo rio de sua terra natal disse o poeta Carlos Nejar, da Academia Brasileira de Letras: “Poeta de voz límpida como o seu rio, de música e sabedoria do silêncio”. E a poeta e ficcionista Stella Leonardos, detentora de prêmios literários importantes,  observou: “A poesia de Cyro de Mattos é da boa, inventando o seu próprio ritmo (como queria o mestre Manuel Bandeira) dentro do soneto, com recursos verbicovisuais e, inclusive, neologismos adequados”.