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quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

 

Angústia e Medo de Anne Frank

 

Cyro de Mattos

 

Um dos livros que mais me causou profunda tristeza foi O diário de Anne Frank. Antes de ler esse livro, já sabia que a jovem Anne, seus pais, a irmã e os outros quatro clandestinos que viviam no Anexo do escritório iriam ser descobertos a qualquer dia e seriam enviados pelos alemães para o campo de concentração. Como não queria que isso acontecesse, era impotente para impedi-lo, a tristeza foi se alojando dentro de mim na medida em que ia lendo os relatos e conhecendo o círculo negro que se fechava em torno de oito criaturas vivendo como ratos. O que o poeta Cassiano Ricardo disse certa vez, a mais difícil prova é a da inocência, deixava de ser metáfora dolorosa para ser verdade cruel diante de meus olhos, vinda da leitura que eu fazia de O diário de Anne Frank.

A destruição da inocência mostrava-se diante de mim com a força de relatos que descreviam atrocidades e horrores cometidos contra os judeus. A pungente narrativa da jovem Anne Frank conta isso no período compreendido entre 12 de junho de 1942 a 1* de agosto de 1944 quando viveu escondida no Anexo do sótão do escritório de Otto Frank, durante a Segunda Guerra Mundial. Aflições de uma menina que se faz mulher, a revelação do amor em seu primeiro despertar, pequenas alegrias de um espírito jovem que sonha em ser jornalista e escritora, para que não se tornasse uma pessoa comum, mas útil mesmo depois de morta, tudo isso na adversidade aterradora dos momentos revela uma alma ingênua, que cresceu e amadureceu durante o sofrimento.

Filha de um banqueiro e de uma dona de casa, aos quatro anos de idade Anne foi obrigada a sair da Alemanha com a família, pouco depois da chegada de Adolfo Hitler ao poder. Com a perseguição aos judeus deflagrada também na Holanda, Otto Frank, a senhora Frank, a adolescente Anne Frank e a irmã Margot unem-se ao senhor van Daar, senhora Daar, o filho Peter e o cidadão Dussel e decidem se esconderem dos invasores alemães.

Anne Frank chamou seu diário Querida Kitty, durante o período de angústia e medo, alimentação com legumes podres e mau cheiro de objetos no Anexo. O diário foi para sua alma angustiada o único instrumento que encontrou para liberar os pensamentos e sentimentos. Ela passou a registrar com realismo do que vivia a tensão e as transformações dos confinados, constantemente se chocando uns com os outros. A atmosfera desesperadora, a conversa em sussurros, os momentos em que nem podiam se mexer, a fome terrível, os juízos vindos da crença em Deus, a distração que consistia em ouvir rádio com as notícias da guerra e a leitura de alguns livros, muitos dias de silêncio entram no conteúdo do diário numa época em que os ideais são estilhaçados e ressoam como caos, sofrimento e morte. E essa era a época em que a humanidade vivia no século que celebrava os tempos modernos, marcados pela chegada da aviação, cinema e psicanálise.

Pessoas pobres e desamparadas eram retiradas de suas casas. Mulheres chegavam das compras e descobriam que as casas foram lacradas e as famílias desapareceram. Crianças voltavam das escolas e não encontravam mais os pais. Milhares de judeus sob o ritmo implacável de um programa com incrível capacidade de persistência eram eliminados pelos alemães. Selecionavam homens, mulheres e crianças. Separavam os pais dos filhos, as mulheres dos maridos. Não poupavam os velhos e os doentes. Formava-se o grupo dos condenados à morte, o dos trabalhadores forçados, ao mesmo tempo em que todos eram despojados de sua identidade cultural, a qual era substituída pelo número de série tatuado no pulso. Tinham as cabeças raspadas.

A talentosa escritora adolescente indaga a certa altura de seu diário que sentido tem a guerra. Por que as pessoas não podem viver juntas em paz? Por que toda aquela destruição? Como gado doente e sujo, que vai para o matadouro, criaturas indefesas apertadas nos vagões. Uma nação moderna, com a sua cultura requintada, que dera ao mundo homens como Bach, Mozart, Beethoven, Haendel, Goethe, Hesse, Thomas Mann, Rilke, Kant, Hegel, agora bloqueava um povo, recuando-o para os subterrâneos mais indignos.

Frágil e indefesa, tanto quanto milhares, Anne Frank morreu de tifo, no campo de concentração Bergen-Belsen, aos 15 anos de idade. Sua vida contradizia uma condenação sem sentido no diário que deixou como um memorial precioso para a humanidade. Destacam-se nesse livro sentimentos e pensamentos inquestionáveis, como o de que sem liberdade o ser humano não respira, caminha numa viagem dolorosa por um buraco negro feito de irracionalidades.

 

 

Angústia e Medo de Anne Frank

 

Cyro de Mattos

 

Um dos livros que mais me causou profunda tristeza foi O diário de Anne Frank. Antes de ler esse livro, já sabia que a jovem Anne, seus pais, a irmã e os outros quatro clandestinos que viviam no Anexo do escritório iriam ser descobertos a qualquer dia e seriam enviados pelos alemães para o campo de concentração. Como não queria que isso acontecesse, era impotente para impedi-lo, a tristeza foi se alojando dentro de mim na medida em que ia lendo os relatos e conhecendo o círculo negro que se fechava em torno de oito criaturas vivendo como ratos. O que o poeta Cassiano Ricardo disse certa vez, a mais difícil prova é a da inocência, deixava de ser metáfora dolorosa para ser verdade cruel diante de meus olhos, vinda da leitura que eu fazia de O diário de Anne Frank.

destruição da inocência mostrava-se diante de mim com a força de relatos que descreviam atrocidades e horrores cometidos contra os judeus. A pungente narrativa da jovem Anne Frank conta isso no período compreendido entre 12 de junho de 1942 a 1* de agosto de 1944 quando viveu escondida no Anexo do sótão do escritório de Otto Frank, durante a Segunda Guerra Mundial. Aflições de uma menina que se faz mulher, a revelação do amor em seu primeiro despertar, pequenas alegrias de um espírito jovem que sonha em ser jornalista e escritora, para que não se tornasse uma pessoa comum, mas útil mesmo depois de morta, tudo isso na adversidade aterradora dos momentos revela uma alma ingênua, que cresceu e amadureceu durante o sofrimento.

Filha de um banqueiro e de uma dona de casa, aos quatro anos de idade Anne foi obrigada a sair da Alemanha com a família, pouco depois da chegada de Adolfo Hitler ao poder. Com a perseguição aos judeus deflagrada também na Holanda, Otto Frank, a senhora Frank, a adolescente Anne Frank e a irmã Margot unem-se ao senhor van Daar, senhora Daar, o filho Peter e o cidadão Dussel e decidem se esconderem dos invasores alemães.

Anne Frank chamou seu diário Querida Kitty, durante o período de angústia e medo, alimentação com legumes podres e mau cheiro de objetos no Anexo. O diário foi para sua alma angustiada o único instrumento que encontrou para liberar os pensamentos e sentimentos. Ela passou a registrar com realismo do que vivia a tensão e as transformações dos confinados, constantemente se chocando uns com os outros. A atmosfera desesperadora, a conversa em sussurros, os momentos em que nem podiam se mexer, a fome terrível, os juízos vindos da crença em Deus, a distração que consistia em ouvir rádio com as notícias da guerra e a leitura de alguns livros, muitos dias de silêncio entram no conteúdo do diário numa época em que os ideais são estilhaçados e ressoam como caos, sofrimento e morte. E essa era a época em que a humanidade vivia no século que celebrava os tempos modernos, marcados pela chegada da aviação, cinema e psicanálise.

Pessoas pobres e desamparadas eram retiradas de suas casas. Mulheres chegavam das compras e descobriam que as casas foram lacradas e as famílias desapareceram. Crianças voltavam das escolas e não encontravam mais os pais. Milhares de judeus sob o ritmo implacável de um programa com incrível capacidade de persistência eram eliminados pelos alemães. Selecionavam homens, mulheres e crianças. Separavam os pais dos filhos, as mulheres dos maridos. Não poupavam os velhos e os doentes. Formava-se o grupo dos condenados à morte, o dos trabalhadores forçados, ao mesmo tempo em que todos eram despojados de sua identidade cultural, a qual era substituída pelo número de série tatuado no pulso. Tinham as cabeças raspadas.

A talentosa escritora adolescente indaga a certa altura de seu diário que sentido tem a guerra. Por que as pessoas não podem viver juntas em paz? Por que toda aquela destruição? Como gado doente e sujo, que vai para o matadouro, criaturas indefesas apertadas nos vagões. Uma nação moderna, com a sua cultura requintada, que dera ao mundo homens como Bach, Mozart, Beethoven, Haendel, Goethe, Hesse, Thomas Mann, Rilke, Kant, Hegel, agora bloqueava um povo, recuando-o para os subterrâneos mais indignos.

Frágil e indefesa, tanto quanto milhares, Anne Frank morreu de tifo, no campo de concentração Bergen-Belsen, aos 15 anos de idade. Sua vida contradizia uma condenação sem sentido no diário que deixou como um memorial precioso para a humanidade. Destacam-se nesse livro sentimentos e pensamentos inquestionáveis, como o de que sem liberdade o ser humano não respira, caminha numa viagem dolorosa por um buraco negro feito de irracionalidades.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

 

            A Mudança 

 

Cyro de Mattos

 

Inconformado com a morte do vizinho. Chorou, soluçou, gemeu, uivou.  Em estado lamentável, indisposto nas refeições, o coração nas profundezas do desvão, só depressão. A mulher sem entender a reação brusca. Deveria estar feliz. Nunca suportou os ganhos do vizinho na vida. Sortudo, bafejado pela sorte, repetia-se, o rosto de cólera. Esbravejava, os punhos cerrados.

O vizinho presenteado com a felicidade por todos os lados.  Mulher esbelta, filhos saudáveis, família invejável. Carro de luxo. Casa grande com piscina, jardim, quintal. Patrimônio sólido. Nada lhe faltava.

Lamentava o seu tanto pelo canto, saía mês, entrava mês. Casa pequena, tinta desbotada nas paredes.  Precocemente envelhecido como a mulher, sem filhos, no lar o vazio avançava numa doença incurável.  Mísero salário, balconista na casa de materiais para construção.

Ruminava as pragas, jogadas no outro. À tona a fúria, babava-se, tomado na vontade de querer quebrar tudo em casa.  Ter que aturar aquele felizardo ao lado, bafejado com as benesses da vida. Uma desgraça, não merecia a vizinhança daquele homem felizardo, afrontas com o brilho nos olhos, a dentadura perfeita, riso saudável, de bem-estar com a vida.

Até quando suportar aquela fronte tocada de orgulho? Fraturas e feridas, riscava.    

Daí para a incompreensão da mulher, houve repentina mudança de atitude. Consternado com a morte do vizinho, o fato em si deveria funcionar ao contrário, um alívio, em boa hora. Vitória finalmente festejada, anunciada sem pejo pela indesejada, sua visita varria as desigualdades, nivelava as diferenças com um só padrão coberto de pó e esquecimento. 

 Triste, muito triste, o quadro hostil da indesejada, dona de um sinistro rosto, famoso, impenetrável. Disse, vou ao velório, acompanho o enterro, levo uma coroa de flores, deposito no túmulo dele. 

As pessoas surpresas com o seu gesto súbito.

Mostrava-se arrasado. A última pá de terra jogada na cova. Nunca mais ia vê-lo no passeio da casa ao lado, movimentando-se lá dentro, cercado de conforto, cantarolando, beneficiado em tudo, entre os poucos privilegiados.                           

Nos dias revoltos odiá-lo, nunca mais. Morreria breve, frustrado. De inveja incomum ausente, traiçoeiro ciúme, raiva primorosa, seguidas vezes o desconforto.   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

 

Revista italiana publica textos de

Cyro de Mattos e Ildásio Tavares

 

 

Editada pela escritora Antonella Rita Roscilli, doutora em letras, a revista intercultural SARAPGEBE, bilíngue, português e italiano, acaba de publicar o seu número 28, no qual você poderá ler em italiano ou português artigos de escritores brasileiros e italianos. O número atual começa com uma cuidadosa e justa homenagem a Domenico De Masi, professor estudioso, sociólogo, pesquisador e sempre amigo do Brasil, escrita pelo renomado escritor Noronha Goyos Jr, ex-presidente da UBE-União Brasileira dos Escritores.

 

A seguir, informa o editorial que um belo ensaio do escritor, poeta e crítico literário brasileiro Cyro de Mattos fará refletir o leitor sobre a escrita de Jorge Amado. Além disso, dois artigos pretendem relembrar a memória do prof. Giovanni Ricciardi, um dos mais ilustres brasilianistas italianos: um denso artigo de Maria Fontes, e primeira parte de artigo do próprio Giovanni Ricciardi sobre o poeta Ildásio Tavares.

 

Conforme comunicação na revista anterior, a editora Antonella decidiu dedicar a Giovanni Ricciardi, que era um assíduo colaborador, a republicação de alguns dos artigos dele. E, ainda, um artigo sobre a vida e a ação do presidente humanista de Angola: o poeta Agostinho Neto

 

Para finalizar o número 28, no Angolo della Poesia, SARAPGEBE reproduz a Ária de Lorenzo, retirada de Lídia di Oxum, de Lindembergue Cardoso, com libreto de Ildásio Tavares. Trata-se da primeira Ópera Negra Baiana e a primeira Ópera brasileira escrita em português e youruba.

EM ITALIANO E PORTUGUÊS.  http://www.sarapegbe.net/