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quinta-feira, 23 de junho de 2022

 

Soneto do Cavalo

Cyro de Mattos

 

Músculo, suor, galope, cadência;

vento, porteira, campina, relincho.

No passo picado rude elegância,

maneira de cascos: trote, compasso.

 

Incansável crina em qualquer distância;

se selvagem, vence quem vem com o laço.

Nervoso fere com uma espada ígnea,

coito na seda, tremura, entrelaço.

 

Na chuva grossa, forte estiagem,  

que de melhor pra montar no cavalo?

A amizade? Na manhã a aragem?

 

Na sela agora surgem do que falo

coisas de ontem como se hoje fossem...

ele, relva quadrúpede, o cavalo.

 

(Do livro Cancioneiro do Cacau, Prêmio Nacional Ribeiro Couto, União  Brasileira de Escritores (RJ), um dos vencedores do Prêmio Emílio Moura da Academia Mineira e Letras, Segundo Lugar no Prêmio Internacional de Literatura Maestrale Marengo d’Oro, em Genova, Itália, e Finalista do Jabuti.)

terça-feira, 14 de junho de 2022

 

MACHADO DE ASSIS: ESTÁTUA VIVA

                                                               Raquel Naveira

                                  

 

        A pessoa que mais tenho visto e de que me lembro aqui no Rio de Janeiro é o escritor Machado de Assis. Não foi à toa que vim morar na rua das Laranjeiras. Algumas vezes caminho rumo ao Largo do Machado, com suas barracas de livros usados, de flores (e eu “por flor tenho loucura”, como dizia uma música de Cássia Eller); suas mesas de pedra, onde idosos jogam baralho e xadrez; sua entrada do metrô, conduzindo filas intermináveis   de gente pelos subterrâneos que levam aos bairros, às florestas, aos estádios, às favelas e às praias. Passo antes pelo concorrido sinaleiro em frente à suntuosa Igreja Matriz de Nossa Senhora da Glória, que lembra a de St. Martin em Londres. Às vezes, quando fecho os olhos por alguns instantes, pois creio em viagens no tempo, imagino o espaço entre a Igreja e o Largo forrado de antigos tílburis, aqueles carros de aluguel de duas rodas, dois assentos, com capota e sem boleia, puxado por um só cavalo, que servia de condução na época da corte. Dona Carlota Joaquina passando com sua luxuosa carruagem rumo à Chácara Botafogo. E mais tarde, o próprio Machado de Assis, apoiado em sua bengala, andando apressado em direção às palmeiras.

       Mas o Largo do Machado não tem esse nome em homenagem a Machado de Assis como algumas pessoas afirmam. O Largo já era do Machado, quando Machado de Assis tinha apenas quatro anos de idade, pois o escritor nasceu em 1839. A versão mais aceita hoje em dia é que no local existiu um açougue que exibia na sua fachada um machado de madeira. Um nome pobre, popular, que marcou aquele terreno outrora pantanoso e cheio de moluscos.

        Subindo um pouco mais, entre as ruas do Catete, Marquês de Abrantes e Conde de Baependi há uma bela estátua de outro escritor, José de Alencar, um dos expoentes do Romantismo brasileiro. É uma escultura de Bernardinelli, uma estátua viva, pois José de Alencar foi grande e mereceu virar estátua. Suas obras não cessam de surpreender sucessivas gerações.

                      Machado de Assis proferiu um comovido e saudoso discurso na cerimônia do lançamento da primeira pedra da estátua de José de Alencar, um homem que foi acima de tudo seu amigo e seu mestre. Disse Machado:

 

 “Agora que os anos vão passando sobre o óbito do escritor, é justo perpetuá-lo pela mão do nosso ilustre estatuário nacional. Concluindo o livro de Iracema, escreveu Alencar esta palavra melancólica: ‘A jandaia cantava ainda no olho do coqueiro, mas não repetia já o mavioso nome de Iracema. Tudo passa sobre a terra.’ Senhores, a filosofia do livro não podia ser outra, mas a posteridade é aquela jandaia que não deixa o coqueiro, e que ao contrário da que emudeceu na novela, repete e repetirá o nome da linda tabajara e do seu imortal autor. Nem tudo passa sobre a terra.”

       Subo pelas ruas do Catete em direção ao centro da cidade, chego à Academia Brasileira de Letras, local onde Machado de Assis, seu fundador, também virou uma estátua viva. Uma estátua feita pelo escultor Cozzo, bem na entrada do charmoso Petit Trianon, local onde são feitas as sessões semanais, as palestras, os chás, as cerimônias de posse. Lá está ele sentado, quieto, pensativo, de bigode e pince-nez. Às vezes ele me parece tão perto, às vezes tão distante, mas sinto sempre na pele o seu olhar de bruxo.

            “_ É, meu caro Machado, digo-lhe baixinho, a literatura é mesmo ideal que eleva, honra e consola. As letras são boas amigas para quem tem a alma enojada e abatida como eu. A arte é a minha liberdade, meu remédio. É assim que venço as tristezas do coração e continuo amando. Você entende, não é?”

        Há manhãs, quase todas de sol, que caminho em sentido oposto, orientada pelo abraço do Cristo Redentor. Vou em direção ao Cosme Velho, ao número dezoito, último endereço de Machado de Assis e de sua esposa, dona Carolina. Foi de lá que saíram a cama do casal, a penteadeira, a mesa de jantar, fotos e objetos que hoje estão no Petit Trianon. Quando passo pelo casarão onde viveu Austregésilo de Athayde e pelo Largo do Boticário com seus casarões coloniais, azulejos e paralelepípedos, penso que poderei topar com Machado na primeira esquina. Talvez ele me falasse:

           “_ Você veio de tão longe, de um lugar cheio de pássaros, rios, cachoeiras, céus estrelados, boiadas, campos de vacaria, mas tenho certeza de que lá a natureza humana é a mesma: perigosa, sempre. Entre, Carolina nos fará um café.”

        Aí eu o abraço e deliro:

         “_ É verdade, vim lhes fazer uma visita aqui no Cosme Velho. Queria vê-lo de perto, escrevendo, debruçado sobre seus papéis avulsos. Queria andar por esses corredores, observar esses retratos. Ah! Como é linda essa “Dama do Livro”! Sabe, eu o acompanho quando o senhor vai pela rua do Ouvidor, entre alfaiates, floristas e joalheiros até chegar à livraria Garnier. Sigo-o pelas repartições, pelos gabinetes, pelos jantares e reuniões. Conheço sua ironia tranquila, sua piedade por todos, vítimas e algozes. Presenciei tudo, vi todos os vermes que roeram os cadáveres em suas ressacas de pessimismo.”

        Depois do café oferecido por dona Carolina, vestida de preto, beijo as mãos de meu   amigo e volto para minha casa, gruta ou caverna de aço. O Cristo agora é uma sombra projetada em minhas costas.


* Raquel Naveira é graduada em Direito e Letras, cronista, poeta, autora de uma vintena de livros.

quarta-feira, 8 de junho de 2022

 

                Tanta dor, poesia  

                Cyro de Mattos

 

Adelmo Oliveira nasceu em 13 de maio de 1934, na cidade de Itabuna, sul da Bahia. Sua família constituída de retirantes da seca retornou às origens no sertão da Bahia, na época da Segunda Guerra Mundial. Publicou: O canto da hora indefinida (1960), O som dos cavalos selvagens (1971) , Cântico para o Deus dos ventos e das águas (1987), Espelho das horas (1991), Canto mínimo (2000), Poemas da vertigem (2005) e Antologia (2012) na coleção Poesia Seleta, da Editora Mondrongo.

Em Cântico para o Deus dos ventos e das águas, prossegue na jornada de andarilho da ilusão pelo “reino das estrelas eternas”, como ele mesmo diz em um de seus versos. Retorna ao espaço da emoção e reflexão ritmado com a  palavra que  expressa seu sentimento de mundo,  testemunho de seu tempo e lugar.   

Este livro está dividido em quatro partes:  Silêncio & memória, Grito & silêncio, O menino & o sonho, O homem & o sonho.  Com seus ventos e águas de eternas datas, esse cântico revela um poeta que em seu navegar solitário assume o gosto lírico da tristeza. Dotado de irmandade em   “Pássaro, humanismo político em “As bodas da morte”, moralizante em “Bilhete a um poeta”, ingênuo em  “O menino & os pássaros”, luto e dor  em “Elegia dos deuses”, sagrado no grave ritual de  “Confissão”. A dicção se compraz em guardar no tom pungente o que é fundamental moldado com a marca das distâncias. Na flauta que toca a música de tristes claridades, a expressão lírica filtra ausências por entre sombras, queixas de muitas solidões, isolamento, cais, despedida. Longe de desesperar, afirme-se com o poeta no seu ermo que “esse pranto e ponteio num poço de ondas e mágoas” redime, conforta.  Elucida no silêncio a rosa quando nasce ade pesares na paisagem solitária.

É uma poesia que se vincula à linhagem de tradição universal em seus elementos mais presentes: o verso, a rima, a imagem, o uso do soneto, o subjetivismo. E, moderna em sua expressão lírica, sem os desvios técnicos de certa vanguarda experimentalista. No ritual de dor, tristeza e solidão, conduz sua mensagem por “caminhos de orvalho”, através de uma dicção confessional que converte o poeta “a uma seita antiga para o culto de deuses invisíveis.”

O cântico que Adelmo Oliveira fere nessas águas de sal é vazado com solidariedade, equilíbrio de ventos ofendidos no tempo interior, doloroso e intenso, que corre no mundo. Sua música não é artificial. Há, em notas agudas,  o eu profundo que resiste a um mundo despido de ternura, em ritmo veloz que pulsa  no absurdo, impele a criatura para uma zona ausente  de esperança e compreensão.

É um cântico que comove, dado que nele submerso está o sujeito  como alguém triste, em  armadura frágil nos limites do próprio casco, com “um pé no chão e outro no espaço”, eis que emerge  daquela região fincada de pureza, apesar de perdida, na qual gravita  de si mesma a memória de cenas episódicas  eternamente nuas. A voz que escorre assim desse cântico mostra que na canção do viver e morrer lirismo e o lado social do homem como ser gregário podem conviver de mãos dadas, solidárias.

Pode-se dizer que em Cântico para o deus dos ventos e das águas o poeta resgata o homem com mãos cheias de amor no apito sonoro das extensões e fragmentos doloridos latejando na memória. Com voz subjetiva eficaz, tom suficiente de queixa na vida que passa, suporta no seu ermo o mito da inocência perdida. Navega nessas águas feridas, caminha nesses ventos ofendidos, diz do eco de vozes oprimidas. Guarda na melodia de rude mar rumores de madrugada, que se anuncia solitária e indefinida.

Na Antologia (2010), organizada por Gustavo Felicíssimo, Coleção Poesia Seleta, da Mondrongo, a poesia de Adelmo Oliveira é como uma estrela fixa que revela o mundo em órbita de ventos contrários. Constata de que estamos enredados com o peso do enigma, representados no atrito dos  seres e as coisas, até mesmo quando o cenário é a infância, que entre fissuras e rupturas forma fragmentos de uma fruta que de súbito acaba  com a idade adulta. Simbolizada por questões e momentos agudos, essa poesia é   algo que sempre está se fazendo e implica na criação de nós mesmos. Ora como feridas, que, no desencontro da passagem do tempo, deixam marcas profundas, próximas de verdades. Ora é a guerra que anula, a paz que marcha na esperança para colher a felicidade.

Ocorrem cismas dentro da alma do poeta:

 

Vértice no tempo

De tanta dor

Meu pensamento

É só amor

 

 

 Eis aqui uma poesia que, também, veste-se de coragem e dignidade no espelho das horas. De ritmo que agrada, conduz sem pressa quem a lê  por meio de discurso elegante,  sem a  dicção para  esquivar-se  da vida na colheita das dores. Não teme os desafios, nunca recua em suas constatações do que não agrada e oprime. Não se envergonha  de mostrar   como   dolorida  é a memória do eu pronunciado, vertido por meio  de insinuações e motivações na  lágrima feita de sal.

O mundo está dentro do poeta e o poeta dentro mundo. Essa é a sua  maneira  de  circular na existência, como um “filho errante da poesia.“ Os últimos versos de  “Monólogo de uma  rapsódia ligeira”, poema incluso na antologia, deparo-me com a certeza da crença desse poeta,  em voz viva:

 

  Só confio nas palavras

 Ainda que inutilmente revelem

 A verdadeira face da noite

                        

                         da noite

 

          Da grande noite de nossa inexorável miséria

 

A poesia acompanha decididamente os passos do poeta no seu ofendido ser-estar do mundo, enredado na ilusão sob o peso do enigma, condição que lhe é cobrado pelo tempo na morte dos dias. Ao ler a poesia de Adelmo Oliveira, escuto o poeta T.S. Eliot quando diz que o rio flui dentro de nós, o mar cerca por todos os lados. Escuto no poeta baiano a sua voz  que se abre com as palavras , soltas na garganta como canto de  pássaro,  retirando  de dentro a fala, o grito, que  diz:

 

Sou um eco de silêncio do infinito

que perturba a razão deste enigma.

 

Neste enigma vestido no silêncio dos desertos, o poeta medita o quanto o peito desesperado fala do homem habitado de sofrimento. As palavras são nítidas, cortantes, constatam, servem às feridas que não se fecham. Revelam sempre na metáfora do cérebro que tudo explode nos caminhos onde a cruz está fincada e abalam ideias no pensamento com incansáveis cavalos em   irascível galope. 

 Jogo e drama são movimentos de sondagem dessa poesia que pulsa em nervos e sentimentos, são vísceras do mar salgado da vida. Ninguém sabe de onde vem nem para onde vai este solitário coração. Com ele, no itinerário  de armazenadas solidões, salta o  pássaro riscado nas penas com pesares, desconfiado de sombras. Assim é que o poeta acha o equilíbrio por  entre os medos  e os vazios, delírios e sonhos. E se vê como um intervalo que não chega a compreender, não consegue decifrar o código cujas pontas estão atadas entre o primeiro vagido e o último suspiro. 

Da infância, o poeta lembra o Rio do Ouro que secou, os caminhos que não se completaram, as veredas compartilhadas com o destino que deságua em um leito de águas mortas, nesse súbito estuário escuro. De outras vezes romântico ou assumido realista, toma emprestado a voz de figuras fundamentais na crença de uma sociedade justa. Mostra-se engajado na poesia social, solidária, de alto nível, humanista, suportando dores refeitas na esperança do mundo melhor, seguindo na marcha de esperança. 

O poeta libertário, em “Pequena canção do porta-estandarte distribui versos cantantes para comover e unir todas as mãos em uma só cantiga:

 

Não é sede de vingança

Não é ânsia de terror

Não é fuga ao desvario

Não é escape de angústia amorosa

Nem murmúrio de sentimentos dissolutos.

 

E já podemos concluir com ele que a liberdade, o bem mais forte dos humanos, só é a força pura da vida, legítima, quando se escreve o seu nome  “como quem prega a paz e busca a felicidade.”

No exercício do soneto, faturado com sinceridade, verdades, dá mostras de certa morte que é puro fingimento. Vertido de vertigens e fantasia, enuncia uma de suas estações prediletas a perdurar segredos e desejos do mito que circula na rota da ilusão:

 

Aqui perto de mim, na minha vida

Meus olhos ficam cheios de poesia

- A estrela se debruça na janela

E a lua troca a noite pelo dia.

 

O poeta só emprega palavras que não desmentem o que sentiu e colheu nas dores da vida. Em Adelmo Oliveira, o universo verbal do poema não é feito com os vocábulos do dicionário, não se trata de ornamento que serve de mero passatempo. Quer dar no auge dos conflitos um sentido mais puro da vida.  (Ensaio que participa do livro Prosa e Poesia no Sul da Bahia, Editora Via Litterarum, Ibicaraí, Bahia, 2020)

 

 

Referência  

 

OLIVEIRA, Adelmo. Antologia, Coleção Poesia Seleta, Editora Mondrongo, Itabuna, Bahia, 2012.