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terça-feira, 23 de maio de 2023

A Leitura e o Dilema

Cyro de Mattos 

 

             Muito se fala sobre a questão do número “modesto” de leitores, em contraponto à volumosa quantidade de livros lançados a cada ano. Certa vez o repórter perguntou se há uma relação de causa e consequência. Como eu via essa questão.  Verdade, escreve-se mais para o menos. Uma enxurrada de livros me é enviada para que eu dê uma opinião. Dá medo. De boa qualidade poucos vão ficar, a maioria o tempo leva para a poeira do vento. 

           Bom lembrar que a literatura não tinha antes a concorrência de outros meios, como o teatro, o cinema e a tecnologia de hoje, com a linguagem visual, abrangente e instantânea. O autor tinha mais prestígio. Nem por isso parece que o livro vá desaparecer em seu formato físico, onde existe o ser humano está o sonho, a questão e a incerteza, que a palavra escrita gera. Mudou o suporte. A ferramenta visual da internet, que tem lá seus vícios e virtudes, agora possibilita nova leitura da vida, às vezes a narrativa ganha muito mais leitores, não se pode negar isso, às vezes o que produz é deficiente, celebra besteiras, não vinga. Deixando fora esse tipo de competição massificada, vê-se que a linguagem da arte é sempre específica e exige um leitor íntimo dos problemas estéticos, que têm a ver com a criatividade em si e a recepção do assunto.    

          Como solucionar o grande enigma, o nó górdio da leitura no Brasil? É um problema do País, de educação, econômico e político. É preciso que haja uma postura séria que ataque as causas do problema. Cabe aos governantes, dirigentes e administradores fornecer os meios para o enfrentamento dessas causas, de natureza complexa. Não é impossível de ser pelo menos atenuado. Basta boa vontade e seriedade. Somos um país de iletrados, sem hábito de leitura, com um poder aquisitivo baixo pelas classes menos favorecidas.  Nesse conjunto de omissões falta uma política institucional pública eficiente para fornecer instrumentos com os quais a editora que está nascendo tenha assim algum suporte, estímulo para sobreviver e crescer.

É preciso também uma legislação que obrigue as universidades e colégios estudarem o autor no vestibular e na sala de aula. É preciso criar novas estratégias nos programas de apoio ao livro e de sua circulação nos espaços de leitura. Como está vamos continuar na mesmice. Pior ainda com a concorrência do fácil proposto pela tevê e o vídeo.

Uma questão central da contemporaneidade é a literatura em tempos de Inteligência Artificial, quando máquinas “pensam” e produzem textos cada vez mais subjetivos. Qual seria o desafio dos escritores hoje?

 A Inteligência Artificial não cria significado, só os humanos. É digital, desconhece as questões interiores e incertezas. O que sabe do amor? Do inexorável? De Deus?  Vê nascer e vê morrer sem nada poder fazer?  Se não tem a razão e a emoção como pretende enfrentar os atritos do enigma com o seu peso?  Tem seus ganhos, utilidade, mas por enquanto vou ficando no meu canto, escrevendo o meu tanto, com espanto e encanto.

         


sábado, 20 de maio de 2023

 

O Rio

   Cyro de Mattos

 

 

Nasce de um olho que pulsa na terra. Desce a montanha num fio e encontra o leito, que o espera dormindo no sono milenar da terra. Bebe nuvem, come terra e segue no passo de cobra. Às vezes cai em outro rio, vira réptil enorme com o volume de água que lhe dá mais força. Atravessa a floresta, o deserto e a várzea com seus pastos verdes à margem, povoados de reses.

 Passa a ponte, contorna a vila, avista a cidade. Desce ao largo, sereno, bonito de ser visto. Despede-se das últimas casas na curva. Leva as cores que as borboletas tecem nos barrancos. Os sons das manhãs e tardes na linguagem formada pelos pássaros. Desde não sei quando acontece no seu destino de rio, rumo à sua morada última, onde rapidamente esquece o que era doce. O peixe, o espelho, o murmúrio entre as pedras polidas em carícia de água. Conversas com a lua, cantigas de lavadeira, casos de pescador. Os modos do areeiro com a pá, retirando a areia nos trechos rasos, do aguadeiro que traz a água boa e pura. Quando encontra o mar, o rio esquece bichos como a lontra e o jacaré, que abocanham o peixe, apurando a fome num estilo irado. Esquece até mesmo a pancada formosa. O vento, o sol, a chuva, seus eternos companheiros de viagem.

 Areia, pedra, peixe: tão água. Rio-mar de tão grande. Falo do rio Amazonas, como não poderia deixar de ser. Se for de águas negras o ano inteiro, refiro-me ao rio Negro. Se deixar a terra fresca nas margens, depois da enchente, certamente é o Nilo no milagre que faz surgir tantas lavouras para as populações ribeirinhas. Se for pequeno, transborda nas cheias, traz árvore, bicho grande morto, submerge casas. E assusta.

Os seres humanos sempre tiveram atração pela água, que é fundamental à sobrevivência. As grandes civilizações surgiram às margens de rios, citando-se aqui o Tigre e Eufrates, o Nilo, o Yangtse-Kiang. Cidades importantes brasileiras ficam às margens de rios: São Paulo, Porto Alegre, Recife, Aracaju, Belém e Manaus. Itabuna, chão de meu nascimento, também nasceu às margens do rio Cachoeira, que divide a cidade em duas partes.

Rio que inspira poetas e prosadores. Os sinais visíveis da escrita escorrem por caminhos de água e aos poucos vão erguendo um mundo. Não tem rio que se compare com aquele que banha nossa infância. Veja o que nos diz Fernando Pessoa, o genial poeta português, nesses versos: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia...” Quer dizer assim o poeta que o Tejo desce da Espanha, entra no mar de Portugal, “toda a gente sabe isso”, mas ninguém tem conhecimento do rio que passa na aldeia do poeta. Porque menos conhecido, pertencendo a menos gente, “é mais livre e maior o rio de minha aldeia”, observa. O rio de Fernando Pessoa, como o Cachoeira, “não faz pensar em nada. Quem está ao pé dele está só ao pé dele.”, a navegar com gentes, coisas, num calendário que emerge de sentimento e pensamento. Soletra manhãs e noites por meio da palavra chamada saudade, essa janela íntima que as criaturas humanas gostam de abrir em seu estar no mundo.

 O homem cumpre cuidar o mundo em que vive, mas não é isso o que se vê há muito tempo. Não se toca com o que desfaz em pouco instante, ceifando aquilo que a natureza demorou anos para fazer com saber e arte. Uma lástima. É comum ver agora o rio agonizando, morrendo de sede, como a dizer: viver assim não vale a pena, ao invés do amor que dou, tanta morte me trazem. E dizer que qualquer rio só quer viver saudável, em perfeito entendimento com a natureza. Não como o rio de minha terra, que há anos chora água em sua descida triste. Nem de longe parece o rio de minha infância. De tão viscoso agora, com os detritos despejados por bocas de vômitos, de dia e de noite.

A mãe natureza dá poderes ao homem, fazendo da vida uma aliança proveitosa, que se renova nas estações, entre o despontar dos verdes e a colheita dos maduros. Na minha infância lembro das canoas que os pescadores traziam carregadas de peixe. Mas a natureza cobra um preço alto quando é maltratada. Não perdoa aquele que a fere sem hesitar um minuto.

 O homem vem desprezando a terra com nascentes puríssimas, afugentando as nuvens derramadeiras de chuva com a derrubada das matas. Na sua aptidão de disseminar a escuridão das coisas, prefere apertar com as mãos neutras a goela das águas. No cortejo que ofende a muitos, como se nada de mais estivesse acontecendo, continua fora do rio que brilha no raso e guarda tesouros no fundo.

 Numa capacidade incrível de persistir dentro da bruma.