Páginas

domingo, 5 de janeiro de 2025

 

Evocação de Ferradas em Versiprosa  

Por Cyro de Mattos                

                

                 Para Jorge Amado

                 e Telmo Padilha,

                 em memória.

 

De tanto estar o céu em longe amanhecer

dizendo o bem na fé houve o padre Livorno 

com a sua batina mágica.

Ecoava temente a Deus sua voz no chão bárbaro,

indiferente ao que dizia a escritura da paixão.

A catequese do louvor na sapiente profecia

se ligava nos indígenas como refúgio do amor.

Cruzavam as solidões sacolejando na carga

os que vinham de longe. No pouso do povoado

queriam nova ferradura para o casco da burrada.

Em alvoroço de festa ferravam até as árvores,

uma coisa grandiosa de ver onde deixavam sua marca 

para o mundo não esquecer.    

O machado anunciou os propósitos da terra,  

duras mãos enredaram grossos nós do destino.   

Com talhos na jaqueira a folhinha imprimiu      

as vastidões desoladas.  Em ébrio ouro vegetal

 facão e podão dançaram. 

Comercinho novo veio cifrar o mundo, o fazer

das ferramentas anotava a cada chuvada

a arte de influenciar a lavra.

Inaugurou-se a praça com água boa, ardente.

Lá para as tantas a viola no peito gemia,

 sua irmã sanfona retirava da lágrima     

sons agudos com suor, um frio medonho

da serra, os dias de açoite do vento

derrubando os paus grandes.  

 

Em casas escoradas o bafo da noite abafada, 

na cama de vara o coito quente ligando corpos

na danada hora do gozo se amassando e gemendo

e no ninho acontecendo.   

Marasmo de rua comprida oculta os dias de outrora,

amadurecidos na safra dourada como a riqueza,

no sobrado amanhecendo, o sol veio sumindo sem brilho

na vontade alquebrada soterrada de desejos.

Armazém de porta larga guarda o tempo remoto  

das estações grávidas, a barcaça com amêndoas

valendo tanto quanto ouro.

 Ferradas nem mais viceja, dorme agora, seu sono

arrastado de bicho pesado, submersa onde somras

 envolvem a praça calada,

Perto da igreja, em vigília costumeira, espera sua gente

 humilde, que vem à procura de Deus. Sua atitude lenta

agora é desprovida do cheiro de resina ligada na memória

de bairro-mãe  desprezado,  ao léu de omissões seguidas,

ninguém quer conhecer como ali se plantou a vida. 

Ao invés do vazio na história tudo que deseja é um caminho,

nada mais correto o lugar que lhe é devido nos frutos que deu,   

pois o amor ao amor retorna quando a razão tem caráter,

protege o que é da terra numa ação de erguimento

e não como longo despejo através da cor desbotada.