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sexta-feira, 24 de maio de 2013

Caboclo Alencar

                              Caboclo Alencar

                                      Cyro de Mattos

    
Não é caboclo, mas mulato, de olhos pequenos e espertos. Dono do barzinho ou boteco ABC da Noite, no Beco do Fuxico, antes Travessa dos Artistas, onde ficavam as tendas de cabeleireiro, alfaiate, sapateiro, relojoeiro e vendedores de coisas miúdas. O dono do ABC da Noite é filósofo por vocação, bebe no saber popular. Logra extrair da vida com simplicidade e espontaneidade uma sabedoria que dá alegria e descontração ao freguês que freqüenta o seu pequeno estabelecimento comercial: político, comerciário, professor, profissional liberal, caminhoneiro, pedreiro, viajante, estudante, jornalista, escritor, artista e por aí vai.
É tanta gente que  por lá aparece que ele não sabe o nome de muitos. E para não cometer a gafe, errando o nome, passou a chamar todo mundo de caboclo. E os fregueses passaram a chamá-lo também de caboclo. O chamamento pegou como visgo de jaca.  È ficou sendo  conhecido como o Caboclo Alencar, muito mais do que  Alencar Pereira da Silveira, comerciante há mais de setenta anos.
 De primeiro começou ajudando o padrasto a vender no único cômodo da casa o óleo animal, banhas e gorduras. Nos idos de 1950 houve uma queda no comércio de carne, o Caboclo Alencar resolveu assumir o ponto sozinho para transformá-lo em um pequeno bar. Surgiu o ABC da Noite, especializado na venda de batidas feitas com fruta e cachaça.
O ABC da Noite tem  mais de cinqüenta anos funcionando para sua distinta e fiel freguesia. Tornou-se um ponto tradicional na vida da cidade. No início funcionava até 21,30 horas. Hoje está aberto das 10 às 12,30 horas, e das 17 às 19 horas.  O dono do ABC da Noite fez a mudança de horário para aliviar o movimento na rua, que já é  estreita e, no horário do funcionamento do bar,  fica impossível de ser transitada, de tanto freguês ocupando seu espaço no lado de fora, à espera de sua vez para ser atendido no balcão pelo Caboclo Alencar.
O que faz um barzinho com um pequeno cômodo, uma geladeira, uma pia, um balcão, atrair  tanta gente para falar da vida alheia, sendo o prato principal do cardápio a fuxicaria política? Não se pode deixar de considerar que as batidas feitas pelo Caboclo Alencar são deliciosas, não existindo outras na cidade com igual sabor: de caju, cajá, gengibre, maracujá, pitanga e outras. Cada uma mais saborosa do que a outra. Juntem a isso os ensinamentos sábios do Caboclo, sem cobrar nada, com suas tiradas, sentenças,  provérbios, conselhos e ditos populares.
Há quem afirme que caminhoneiros vão visitar o ABC da Noite para pescar alguma frase interessante sobre a vida e colocá-la depois no pára-choque do caminhão. Pode ter certeza que o Caboclo Alencar vem dando uma contribuição inestimável  para a filosofia e a poesia na estrada com frases como essas:

Pior juiz é a consciência, tá?
Que bom se corrupção desse AIDS
Pobre só come carne fresca quando morde a língua
Fazer a criança é fácil, difícil é consertar o homem
Se morte é descanso prefiro viver cansado
O erro do médico a terra esconde
Faça da sua vida uma canção de amor

Para quem não sabe, o Caboclo Alencar é o criador da ciência Mulherologia. Vem transmitindo saberes e sabores da vida com muita propriedade aos freqüentadores da  Escolinha ABC da Noite. Tem dado tratamento notável aos diversos assuntos envolvendo o objeto que essa ciência estuda, embora ele seja um autodidata e só tenha concluído apenas o curso primário. No quadro negro o freguês da Escolinha ABC da Noite lê o assunto que deve ser abordado na semana.  Leva para a casa a ideia anotada  para ser desenvolvida em uma lauda, escrita legível, pode ser em prosa  ou verso. A composição deve ser lida depois pelo aluno em dicção clara. O aluno, leiam freguês, pode molhar a  goela com  uma  e, no máximo, duas batidas, antes de começar a leitura de um dos assuntos abaixo relacionados:

 Proteja seu cão: vacine sua sogra contra a raiva;
 Se casamento fosse bom, Cristo  não tinha morrido solteiro;
 Pra quem ama catinga de bode é cheiro;
 Namorar muito, noivar pouco e casar nunca;
Se Deus  fez algo melhor que  a mulher só  fez pra Ele;
 Carinho de mulher feia é dentada;
 Vitamina de chofer é sorriso de mulher;
 Por não ter uma roupa nova passei o ferro na velha;
 Saudade no jardim é flor, é dor;
 Marido de mulher feia só acorda assustado;
Faça da vida uma alegria, mas com mulher.

Para evitar tumulto e queixas de injustiça, na escolha do assunto anunciado no quadro negro, é feito um sorteio entre os alunos da Escolinha do ABC da Noite.
Antes que me esqueça, você encontra na parede do ABC da Noite, em letras grandes, a portaria seguinte:

Art. Primeiro – Aqui é permitido sonhar e sorrir.
Art. Segundo – Revogam-se as disposições em contrário.

                                   Caboclo Alencar.

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