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terça-feira, 2 de julho de 2013

Rio Morrendo de Sede

Rio Morrendo de Sede


                                    Crônica de  Cyro de Mattos
      

          E dizer que esse rio já forneceu água de suas fontes puríssimas para que todos matassem a sede no bebedouro da vida. Isso foi há muito tempo, a  cidade tinha uma população pequena. Talvez nem chegasse a trinta  mil habitantes. Ainda não havia sido instalado o sistema de abastecimento de água encanada para servir à população. O aguadeiro trazia a água do rio nos carotes, pequenos barris feitos com madeira de putumuju, que eram  carregados pelos jumentos. Cada jumento carregava quatro carotes, dois de cada lado, pendurados na cangalha. O homem anunciava na rua: “Água do Mutucugê! Água boa do Mutucugê! Água fresca do Mutucugê! Quem vai querer?”
        O rio tinha muita gente que vivia de sua bondade. Lavadeiras, aguadeiros, pescadores e tiradores de areia, usada nas construções residenciais, armazéns e lojas do comércio. Uma gente das camadas pobres da cidade   tirava o sustento da família com o que o rio lhe fornecia, de janeiro a janeiro. O rio era chamado de pai dos pobres. 
       Antes de ser construída, perto da Ponte Velha, a represa, que submergiu  as inúmeras pedras pretas, espalhadas em muitos trechos do rio, o velho Cachoeira tinha um visual para agradar a quem visse.  Baronesas não ficavam entulhadas no lençol de água que passou a cobrir toda a extensão do rio. Desde o bairro da Burundanga  até lá onde o rio  faz uma curva e se despede da cidade, conversando de dia com o sol, à noite com a lua, por entre as pedras pretas, rumo ao mar de Ilhéus. 
        Homens e meninos  retiravam a areia do rio com a pá, que ia e vinha no esforço do dia. Tempo bom para a areia ser retirada  era nos meses de verão. A cidade toda sabia que pelas mãos do areeiro a argamassa da casa era feita de fibra específica: calo, suor e areia. O homem passava pelas ruas, a taca silvando o ar. Caminhava apressado, tangendo os jumentos  carregados de areia nas latas. Um poeta da cidade resumiu  em versos que as casas cochichavam nesse momento em que o homem passava. Comentavam que a areia sem a pá não seria dádiva. Nada seria a pá sem a areia. Ajoelhando as fachadas, as casas  tomavam a bênção ao velho rio. E agradeciam ao tirador de areia.
      A lavadeira tinha as mãos grossas de calo de tanto bater roupa na correnteza de águas límpidas. Durante a semana descia o caminho do  barranco com a trouxa  de roupas sujas  na cabeça. Quando chegava à beira do rio, colocava a trouxa de roupas  em uma pedra grande, junto ao areal. Não demorava e começava a tirar as roupas da trouxa. Molhava, ensaboava, esfregava, lavava e torcia. Estendia as roupas nas pedras pretas para secar ao sol. De repente as pedras pretas, cobertas de roupas estendidas, apareciam coloridas naquele trecho do rio.
       O rio tinha muitos peixes. Robalo, pratibu, carapeba, piau e bagre. E outros pescados: pitu, camarão e acari.  Para não falar nos peixes miúdos,  piaba, moreia, jundiá e beré. Pela manhã, o  pescador passava com as fieiras  de peixe,   batia na porta  e oferecia os pescados  à dona da casa.  “Peixe fresco do rio Cachoeira!”  Na semana,  de casa em casa  a cena se repetia.  Na feira, aos sábados, o litro cheio de camarões era vendido por um preço barato na banca de peixe do pescador mais velho do rio Cachoeira.  Um preto magro, a cabeça branca, o nariz achatado, os lábios grossos:  o rosto com rugas marcava  na pele crestada que o sol havia passado por ali durante muitos anos.
          O rio virou um grande esgoto a céu aberto. Não há mais peixe, borboletas no barranco, o espelho onde o sol costumava se admirar nas horas banhadas de luz. Ninguém se atreve a tomar banho nas suas águas. Está  entulhado de sujeira, viscoso, gangrenado com os detritos que as bocas de vômito da cidade despejam em seu ventre. Se os políticos e setores importantes da sociedade quiserem podem reverter o quadro deplorável em que se encontra o nosso bondoso rio. Basta ouvir o que a sua voz entristecida clama: “SOS, cidade, antes tarde do que nunca”.  É questão de boa vontade. 


*Cyro de Mattos é escritor, poeta e advogado aposentado. Premiado no Brasil e exterior.

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