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terça-feira, 24 de setembro de 2013

O Clarim da Garrincha

                                  (Crônica de Cyro de Mattos)
        


                 Lá  está a garrincha com o seu clarim no alto do poste.  Escovo os dentes, tomo banho e, apressado, ainda vestido no pijama,  vou para a  sacada do apartamento. Fico ali sentado na cadeira, ouvindo o clarim da garrincha, que estridente não para de anunciar que a noite chegou ao fim. Quanto mais escuto, quero mais escutar esse aviso que ressoa nos meus ouvidos como um dos milagres operado por Deus na manhã clara. Um passarinho aceso de canto e luz matinal, tão pequeno, vestido num casaquinho marrom,  com seu clarim a vibrar contente,  todas as vezes em que  anuncia a vida perto de clarear o dia.
              Quando surge a madrugada, de azul, branco e rosa nas asas,  a garrincha logo vibra lá no alto seu clarim. Repetidas vezes, ela toca forte, enquanto o sol começa a desembarcar da carruagem de ouro, vindo lá detrás do morro, que cerca uma das partes da cidade. Todo dourado pela cauda, o sol não demora a resvalar seus raios sobre casas e prédios de minha rua. Imagino como devagar o sol, nessa hora, passa a iluminar os seres e as coisas em vários locais da cidade. As coisas que foram postas no mundo para que sejam vistas e alcançadas. Assim, na manhã  que brilha no sem fim, é que fico a escutar a garrincha tocando  seu clarim, sem me cobrar nada, numa cena bonita de ver.
          Todas as vezes que a garrincha começa a tocar seu clarim para anunciar que a noite chegou ao fim, o bem-te-vi sai de sua casa no alto da palmeira e vai pousar na  antena da televisão, instalada no telhado da casa do vizinho, em frente. De lá, ele avista os raios de sol alagando de luz a  fachada dos prédios e casas na rua. Batendo as asas, radiante canta:
               - Bem-te-vi!
               - Bem-te-vi!
               - Bem-te-vi!
               Nervosos e barulhentos, os assanhaços bicam a manhã luminosa  nos galhos do flamboyant. A rolinha faz carícias de amanhecer no companheiro que se aproxima dela.  As andorinhas dão voos ligeiros, trissam alegres na manhã banhada de luz. O beija-flor, no seu pequenino ventilador,  sai beijando, uma a uma, as flores no quintal do vizinho. Os pombos enchem o ar como naves serenas que seguem na direção do prédio de fachada amarela.  Um casal de pombos pousa no telhado da casa. Os bicos se tocam, sempre  inquietos no afeto. Nunca é de mais o arrulho seguido, nesse ritual do amor, que eles cumprem desde ontem, continuam hoje, prosseguirão amanhã e depois.
                          Havia me mudado com a família para esse novo apartamento, que dá para a nascente. É bem ventilado e iluminado,  não fica distante do centro da cidade. A rua é calma, nela passam poucas pessoas e carros. Quando era pequeno, no lugar desse bairro onde está localizado o apartamento em que agora eu moro,  havia pastos e capoeiras de uma fazenda de cacau decadente. Aqui jogava futebol com meus queridos amigos no campo improvisado; no meio do pasto, duas pedras marcavam as balizas de cada gol. Era aqui mesmo que  armava arapuca para pegar passarinho na capoeira.
           Antes de fazer a mudança para o apartamento, andava me perguntando o que era que um homem idoso como eu estava fazendo ainda neste mundo. Com setenta e quatro anos de idade, sentia-me deslocado  nesse mundo cheio de atropelos e sobressaltos, consumismo extremo, guerras inconcebíveis, desigualdades e dominações. Crimes horrendos pelo insano matador das vítimas indefesas e inocentes. Tráfico de drogas. A arte literária machucada pela onda de falsos artistas, uma gente vaidosa e compulsiva  que deturpa o que é belo, sem qualquer remorso. Arremedos de escritores e poetas tomam o lugar de quem merece aplauso e reconhecimento, ao invés do exílio e esquecimento. Ao  largo a música popular alucinante, alimentada por manadas ferozes,  feita com fácil arrumação da letra, que não suaviza a alma, não cativa nem comove. Presta-se apenas para o prazer do corpo, que balança e treme, mexe  e remexe,  na dança que não se esgota. É  a hora e a vez  da imagem e som como faces de uma linguagem que domina o social.  Perguntava-me o que  ainda eu estava  fazendo aqui, neste mundo conturbado, de gestos truculentos, políticos corruptos, resvalando sobre minhas sombras esse mal-estar que me envolve agora, desafinando-me, impiedoso,  com a natureza das coisas em constante transformação.   
                         O que se envolve em mim de luz e pluma, a cada  manhã anunciada por um pequenino músico divino, retira-me, neste instante, a tristeza de tudo que é o fim. De repente eis que estou salvo. O mundo,  que ressoa  nessa guerra lá fora,  de cada um só pensar em si, passa a ter uma visão diferente. Impele-me a olhar para ele de uma maneira agradável,  inclinado de alegria nos sons diminutos,  cantantes e brilhantes do amor.
                     Enquanto a garrincha prossegue na manhã tocando forte seu clarim.

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