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domingo, 27 de julho de 2014

Onde Está Minha Cidade?

Sigo pela cidade a pé. Acompanha-me um  menino outrora afoito, magro,  que fazia da vida uma expressão da liberdade. “Primeiro a obrigação, depois a diversão”, a mãe dizia, ele cumpria a regra sem pestanejar.  Era um dos primeiros da classe.  Tinha gosto de fazer  os deveres escolares e de estudar as lições na semana. Depois disso ia se encontrar  com os amigos em algum local antes combinado  para vasculhar os cantos da cidade, em busca da melhor brincadeira que os dias pudessem oferecer. Roubar fruta madura nos quintais era uma deliciosa aventura.
Esse menino está vendo agora o quanto mudou sua cidade. Já não  existe mais a pequena casa onde morava com os pais e o irmão. Ficava na rua estreita por onde não passava carro, perto da delegacia.  O melhor mirante  da cidade era o alto do telhado, de onde se via a vida acontecer no céu e na rua, por onde passavam personagens e fatos importantes que iriam marcar a sua vida  para sempre.
Outro é o cenário  da rua do  comércio. Onde antes era lama no inverno e poeira no verão agora é uma avenida bem comprida, asfaltada. A sinaleira acende os sinais vermelho e verde,  controlando o movimento intenso dos carros e dos pedestres, que atravessam a avenida pela faixa, de um lado para o outro.   Guardas fiscalizam os motoristas, multam aqueles que estacionam os carros em locais proibidos, rompem os sinais de trânsito de maneira imprudente. Lojas, bancos, lanchonetes. Meninos de rua, guardadores de carro, mendigos. Gente no passeio indo e vindo.
O menino quer saber por onde andam as tropas de burros, que desciam carregadas de cacau seco ensacado, na direção dos armazéns de portas largas. O desfile dos animais deixava alegres os meninos, que paravam para ver os burros andando  com os passos cadenciados. Chegavam puxados pela madrinha, a mula da frente, enfeitada de guizos no peitoral, o chocalho no pescoço. Naquele desfile de cascos cadenciados,  som de guizo e chocalho, a tropa dos animais inaugurava o dia com um canto metálico,  que se propagava festivo na manhã luminosa.
O menino pergunta por que as tropas perderam-se na estrada, depois que dobraram a curva e  nunca mais retornaram. Mudo, fico sem saber como responder à pergunta, convencido de minha impossibilidade para saber do tempo por que razão tudo tem que acontecer assim no seu curso invariável. Ontem seres e coisas ali estavam nítidos, definidos, eram vistos e alcançados. De repente, sem que fosse percebida a mudança, fugiam para outra paisagem, perdiam-se por trilhas e atalhos, encobertos para sempre na estrada desconhecida. Obedeciam assim a um ritual de indiferença desde não sei quando, sem que pudessem retornar das terras do sem fim.   
Insiste, esse menino de olhos espertos,  em ver o  campinho na margem do rio onde jogava futebol com os amigos. Ele me diz que quando a bola rolava pelo barranco ia cair no rio. O jogo ficava interrompido até que um dos meninos fosse procurar a bola lá embaixo, às vezes era encontrada boiando nas águas. O jogo então  recomeçava nos lances aguerridos.  No lugar do campinho do futebol encontramos o cais, que foi construído em cada margem do rio para evitar com isso que as águas derrubassem nas cheias as casas ribeirinhas,  causando estragos e até mortes.  Onde estão as pedras pretas que eram cobertas pelas roupas coloridas quando  as lavadeiras estendiam para secar  ao sol. Espetáculo vistoso de cores que os olhos nunca cansavam de ver. As  lavadeiras, os areeiros, os pescadores, os canoeiros? As   águas do rio ficaram poluídas, não existe mais peixe, ninguém se atreve a tomar banho no rio,   tomado de baronesas. E o Campo da Desportiva, lugar festivo  aos domingos, com seus jogadores habilidosos no trato com a bola?  A seleção amadora da cidade foi oito vezes campeã do Intermunicipal.
            O menino está com os olhos úmidos e vermelhos. Desiste de continuar no passeio com o homem  calvo, de  rosto tristonho, que também busca um tempo que se foi com suas vozes, cores, brincadeiras. No jardim da Beira-Rio havia um coreto, fontes luminosas, árvores que abrigavam os namorados, conversando sentados no banco. Flores, muitas flores. Para não ficar mais triste com o que vê agora na paisagem com outro visual, revestido de ausências íntimas, o menino afasta-se desse  homem idoso, que tem o rosto coberto de uma pequena nuvem cor de sombra.






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