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segunda-feira, 30 de julho de 2018





  Poeta em São Paulo: Álvaro Alves de Faria

                     Cyro de Mattos


Da “Geração 60” dos poetas de São Paulo, Álvaro Alves de Faria é o único que circula por diversas escritas literárias. Publicou romances, novelas, ensaios e peças teatrais encenadas em várias capitais brasileiras. Organizou antologias e praticou o jornalismo literário, que lhe rendeu o Prêmio Jabuti de Imprensa por duas vezes, em 1976 e 1983.
Ao fazer o lançamento de O Sermão do Viaduto, no Viaduto do Chá, na capital paulista, durante noves recitais, que lhe deram  cinco detenções, até que foram proibidos pelo DOPS por motivos políticos, sob a alegação de que realizava manifestações subversivas, o poeta Álvaro Alves de Faria instalava um comportamento poético diferente do que se estava acostumado a ver nos meios culturais de São Paulo. A geração antecedente de poetas vinha aprisionando a vida nas torres da arte. Outros grupos daquela época demitiam da poesia a intuição, propondo uma sintaxe visual com o mínimo de palavras e a valorização do espaço em branco  na elaboração do poema.  Ao reduzirem o conteúdo à estrutura visual do poema,  suscitavam dúvidas quanto à sua fecundação: a repetição de uma só palavra gerava ausência de criatividade, derivando para um automatismo que desligava a linguagem das matrizes perspectivistas, carregada de símbolos e conotações no discurso  imanente.
Qual profeta moderno, o poeta revolucionário   recorria ao sermão para atar as pontas da vida e da poesia nas grandes e desertas  planícies. Manipulava a metáfora, a alegoria e a parábola na via pública até perder-se na noção de sua altura, exatamente naquele ponto no qual  se busca reencontrar  uma morada antiga. Seus versos cheios de verdade compareciam  na paisagem de incertezas sob o tom luminoso para resistir  aos rumores e tremores do abismo. Com uma dicção bíblica feita de imagens corajosas, sábias,  enfrentava o poeta visionário  a ordem política atemorizadora, que bania o amor, galopava nas trevas, como se a solidariedade fosse coisa inútil e o absurdo do déspota, a única tecla. A voz de uma beleza profunda propagava-se no intuito de iluminar de esperança os desertos. Repercutia com seu ramo de luz no tema da pobreza e  da criatura indefesa. Do coração sensitivo do poeta atuante ofertava-se o trigo vindo dos longes comovidos para os sem voz num campo de mágoas.
Já em  20 Poemas Quase Líricos e Algumas Canções para Coimbra, o poeta do sermão no Viaduto do Chá conduz o coração para o transe lírico da memória. A forma do poema, o ritmo que flui do dizer poético reiterativo sobre seres e coisas  aderem ao fluxo lírico de forte teor emotivo. O coração acordado do poeta pulsando no presente  fere a “memória da memória”,  assinala a ensaísta portuguesa Graça Capinha.,   da Universidade de Coimbra. Atravessa lugares do imaginário e do real na medida em que a viagem inexplicável vai sendo empreendida pelos caminhos do tempo. O coração do andante solitário transpira momentos que lhe são caros, e a memória veste-se de  imagens com passagens puras e ardentes. Situações  que chegam de rostos, sombras,  lugares superpostos  liberados do subconsciente, coabitam no poeta,  trazendo  daquela zona suspensa  do azul o tempo que perdura no afeto.
A emoção do poeta cresce nas gradações do amor que a cidade revela nas ruas, becos, ofícios que afloram de outras idades, degraus que não têm fim, telhados acumulados de ausência, janelas fechadas, portas  que não se abrem.  Circula nas alusões aos poetas nos cafés, resvala no efêmero ante o eterno que desce no rio Mondego. Oscila  entre memória e coração avivando as  paragens dos antepassados, o pai nasceu em Lobito, Angola, a mãe em Famalicão, Portugal.  A memória aflora do que há de mais amoroso, o coração pulsa  candente no que há de mais sensível e essencial. No encontro agitado da sensibilidade produzem  uma poesia palpitante nas fissuras cósmicas, pendendo de remotas raízes portuguesas.
Permanente registro de atração por uma cidade que o chama, o poeta em densidade lírica a atravessa no olhar e se deixa invadir de impressões, ilusões, visões doloridas de secreto caminhar, através de sustos que não se decifram, porejando ternuras no imaginário  que delira. E, do ardor no sermão em viaduto, no fluxo mediúnico que verte o comportamento da linguagem inserida no discurso,  ao soluço lúcido do caminhante solitário, faz e refaz  andanças do mesmo todo, tentando compreender determinada realidade escamoteada sob a máscara do que foi e no que é visto com suas  verdades essenciais. De qualquer modo, travessia.


 * O texto “Poeta em São Paulo: Álvaro Alves de Faria” pertence ao livro A Leitura Lembrada, ensaios, em andamento.

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