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quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019


                               


                                  O Apostador
                                    
                                 Cyro de Mattos

            Começou jogando no bicho. Mudou para a loteria federal. Meses depois migrou para  a loteria esportiva. Agora estava de olho gordo na  mega-sena. Só valia ganhar, se fosse o único ganhador, entre milhares de apostadores. Mega-sena acumulada,  ao felizardo marés de milhões. Ele, o apostador incorrigível. 
           A mulher tentou livrá-lo do vício. Brincadeira no início, logo pegou feito  visgo. De tudo tentou. Benzedeira, banho com sal grosso, cartomante. Candomblé, espiritismo. Fez promessa forte a santo Expedito, o santo das causas impossíveis. Não adiantou.
         O pequeno patrimônio, com tanto esforço adquirido, sendo dissolvido. Primeiro o sítio, depois o automóvel, a própria casa. Morador agora de apartamento pequeno, sem luz do sol, vento fresco. Aluguel modesto, conjunto habitacional popular.
         A aposentadoria precária evitava que passasse fome. 
         Não tinha jeito.  Todos os dias fazia o jogo,  bebia sua bebida especial. Mês entrava, mês fugia.  Até as joias da mulher, herança recebida da mãe, que recebera da avó,  foram vendidas. Apostava, apostava. Venderia a alma ao tinhoso, se preciso. Seguia em frente. Um dia acordaria como o grande ganhador. Não conseguia fazer sequer  a quadra, não desistia. Quem não aposta,  nunca ganha, uma máxima que os apostadores não esqueciam, seguiam à risca,  dela não fugiam.
Alardeava. No dia que tirasse a sorte grande com a mega-sena acumulada,  faria  a maior  surpresa a centenas de pessoas de sua cidade natal. A cena diante dos rostos pasmos, na avenida principal, abarrotada de gente.  Distribuiria dinheiro gordo com muita gente, de preferência com os mais desvalidos. Queria ver todo mundo sorridente.     
         Foi comprar o pão na padaria do bairro. Na rua, as fezes do pombo  acertaram sua cabeça. Que nojo! Considerou o fato, podia ter sido um aviso. Entre tantos habitantes da cidade populosa, só ele foi o agraciado, ao ser carimbado com as fezes das aves na cabeça. O imponderável poderia favorecer-lhe em dados positivos lá na frente.  Acertaria na mega-sena,  para isso acontecer continuasse fazendo as apostas seguidas.     
         Fez o jogo, riscou apenas uma sena na cartela.  O dinheiro estava curto,  há tempos não fazia jogo alto. Foi conferir depois, o coração acelerado.   Só alegria,  acertou em cheio na mega-sena. Sozinho. Ganhou o mundo a notícia. Acertador do maior prêmio acumulado pela mega-sena fez apenas um jogo em uma cartela.  
        Cumpriria a promessa. Compartilharia o dinheiro ganho na mega-sena  com muita gente.
         Estavam crentes, pobres, medianos e ricos, que ele ia distribuir muito dinheiro na avenida principal.
        O trânsito  interrompido. O locutor pelo megafone parabenizava o homem da sorte grande. Não cabia de gente a avenida principal naquele trecho.
      Todos ficaram perplexos  com a cena surpreendente. Tirou as roupas do corpo, tacou o facão em cima e tocou  fogo. Ficou gritando: “Dinheiro você diz que me quer bem,  no meu bolso você vem!”
      Foi morar no sanatório Bom Retiro. Lá continuou  a fazer as apostas para acertar de novo na mega-sena. 

*Cyro de Mattos é escritor e poeta. Publicado  por editoras europeias. Membro da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz (Bahia). Premiado no Brasil, México, Itália e Portugal.


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