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domingo, 17 de março de 2019





           O Triunfo do Amor   

Cyro de Mattos

O moço morava no outro lado do rio. Lá havia uma olaria. Trabalhava ali, fazia moringa, panela,  bonecos e santos.  Mãos caprichosas, artesão afamado. A moça  morava no lado de cá, margem esquerda do rio,  onde havia a pequena cidade com o seu comércio próspero. Fazia  toalha, tapete, rede. As mãos delicadas, tecelã admirada. 
Em cada domingo, empreendia o caminho das águas. Na canoa remava. Sentia-se bem  com a manhã clara, a aflorar sentimentos de ternura, a cada lance que remava.  ”Rema, rema,  remador, se queres ver o teu amor”.    
 Manejava o remo com serenidade, a  canoa singrava no espelho das águas. Prosseguia na manhã sem nuvens,  o moço concentrado em cada remada que dava, a canoa como uma folha  deslizando nas águas claras,  de fontes puríssimas.  “Se a canoa não virar, devagar chegarás  lá,  o teu  amor vais encontrar. ”   
        O casamento foi marcado para maio, mês de nascimento do moço artesão  e da moça tecelã.  Era para acontecer num desses domingos de sol radiante.  Na igrejinha de paredes alvas,  erguida na colina, no pátio  enfeitada de bandeirolas. Lá dentro os vasos com cravos e rosas, os ares ativados com o perfume das flores.  O sino velho na torre saudaria os noivos, as batidas fazendo blem, blem, blem, alegrando a cidadezinha na manhã luminosa.
Vontade de chegar depressa, abreviar o caminho das águas. Bater à porta da casa onde a moça o esperava desde cedo, o coração temeroso, o rosto de ânsia.  A canoa impelida  pelo remo em lances cadenciados. O vento, a princípio manso, de repente assoviou forte,  no peito do moço bateu enraivado.  Mostrava que também estava enamorado da moça. Vento virado em bicho ciumento, danado,  como se quisesse derrubar nas águas  o moço, impedindo-o de se encontrar com a moça.  Bateu mais forte na canoa,  que bateu na pedra,  virou de lado, encheu de água. Desceu para o fundo do poço.  
Nadou com firmes  braçadas. Para se encher de ânimo, o moço dizia para si, entre os redemoinhos da alma.  “Nada, nada, nadador, se queres ver o teu amor.” Até que pisou em terra firme. Estava cansado, o peito arfava. Colheu flores silvestres no barranco, antes de prosseguir na jornada. 
Já desanimada, a moça não mais esperava que ele aparecesse. Ouviu alguém bater palmas lá fora. “Tem alguém aí em casa?”  Apressada foi abrir a porta. Queria saber de quem eram as palmas fortes.  Assustada, viu o moço que aparecia risonho,  um rosto de expressão vitoriosa.  
Entregou à moça o buquê de flores. Pediu uma xícara de café quente. Sentou na cadeira da sala,  vestido com outras roupas, limpas e engomadas,  que a própria moça providenciara. Depois de aquecer o peito com o café, bebido  aos poucos, começou a contar por que se atrasara.  O vento cheio de ciúme  bateu na canoa com uma rajada medonha, suficiente para fazer um  rombo na popa. A canoa afundou.  Para não esmorecer na travessia, fortaleceu a vontade com uma coragem impressionante. Impeliu-se em arrojadas braçadas. Nada o atemorizava. Nem o poço fundo, a correnteza poderosa, o vento incontrolável, que enciumado  assoviava  na manhã tormentosa.   
Durante a difícil travessia, só queria que chegasse aquela  hora para dizer à moça o que sempre desejara:
- Estou esperando na igrejinha para receber você como a minha esposa.  
 Como  havia prometido,  desde aquele dia em que o artesão afamado deu o seu  primeiro beijo na tecelã amada.   

·        Cyro de Mattos é escritor e poeta. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Possui prêmios literários expressivos no Brasil e exterior. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia.    

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