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quarta-feira, 16 de junho de 2021

 

                              Três Registros

                             Cyro de Mattos

 

   O Gesto  

 

        Estava com o lado esquerdo todo paralisado, a fala comprometida. Alimentava-se por sonda. Talvez fosse irreversível seu estado.  Rezava por ele. “Se tivesse alta do hospital, provavelmente irá para uma clínica”, pensou.

       Requeria cuidados, durante 24 horas por dia. 

          Foi visitá-lo no hospital e ficou muito sensibilizada. Não entendeu nada do que ele falou. Ele pegou sua mão e deu um beijo. Era como se despedia dela. Agradecia todos os momentos que habitara com ela, envoltos na alegria e na tristeza. 

         Voltou para casa sabe como...  Lamentou daí a instante quando soube que ele acabara de falecer. Em lugar da máscara no rosto, a pele enrugada cobrindo o rosto ossudo, levava uma expressão serena, assinalada pelo gesto que fez quando lhe beijou a mão. Deixava assim para ela uma saudade formada de afeição e entendimento nos momentos que viveram juntos. 

        Durante sessenta anos de casados. O tempo havia ofertado a eles cinco filhos e quinze netos. 

 

 O Espetáculo

 

De repente o menino se fez homem.

De repente o homem se fez idoso.

De repente o idoso se fez velhinho.

As cortinas fecharam-se.

Não mais que de repente.

 

Presente

 

O pai disse que ia lhe dar um grande presente.

Estava fazendo cinco anos no domingo. 

- Pai, é esse o mar?

- É

- De quem é, pai?

- É seu.

O mar rugia sem parar. A água molhava seus pés pequenos.

Na poça que se formou ali perto, encheu de água o balde de plástico.

Ficou cavando com a pá a areia.

O vento soprava nos cabelos.

Aquele marzão era todo seu.

De contente sorriu.

Um sorriso do tamanho do mar.

 

 

 

 

 

 

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