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sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

 

   Um caso difícil

    Cyro de Mattos

 

          Causava transtorno à família o vício que ela havia adquirido. Seu caso foi parar numa psicóloga, muitas sessões, não adiantou nada. O marido ficava mudando de supermercado para evitar que ela fosse flagrada com o roubo, o escândalo divulgado na mídia através do plantão policial, programa Difícil de Acreditar, do jornalista Doutor Verdade. Sua reputação de médico competente, diretor presidente da Santa Casa de Misericórdia, chefe de família honrada, seria abalada nos alicerces. Os filhos seriam atingidos com a mancha que envergonha, servindo de comentários entre os que gostam de falar da vida alheia.

               Quando ia fazer compras no supermercado, assegurando-se de que não havia ninguém por perto, tirava do carrinho cheio de compras algum dos produtos escolhidos nas prateleiras e colocava na bolsa. Claro que no caixa o objeto usurpado não seria relacionado no pagamento do que havia sido comprado. Foi flagrada pela câmara de filmar os que gostam de pegar indevidamente algum produto no supermercado quando escondia na bolsa o objeto para evitar o pagamento e aliviar com isso as despesas com as compras.  Uma cena vergonhosa que o esposo jamais pensou que haveria de enfrentar seguidas vezes. Da última vez, diante do gerente a vergonha foi tão grande que pensou até em sumir do mundo. 

         Prometeu que aquela era a última vez, não ia fazer mais isso, expor a família à situação deplorável com a notícia vexatória que poderia ser divulgada na mídia. “Mulher de médico famoso gosta de pegar o que não lhe pertence no supermercado e esconder na bolsa.” Já pensaram que escândalo! Iriam comentar nos corredores do hospital os que gostam de falar da vida alheia com uma cena saborosa como essa protagonizada pela esposa do médico famoso e diretor da Santa Casa de Misericórdia.

           De novo prometeu ao esposo que não cometeria mais esse tipo de ato deplorável, não queria emporcalhar a honra da família com procedimento indecente, pediria ajuda à Nossa Senhora do Perpétuo Socorro para tirar de sua vontade compulsiva aquele vício horrível de surrupiar algum produto quando fosse fazer as compras semanais no supermercado.

            O vício era mais forte. Prometia, jurava, pedia perdão ao marido, acendia vela no oratório para a santa e rezava, rogava para se livrar dessa doença infame, que espicaçava sua vontade quando ia fazer compras semanais no supermercado. O fato lastimoso se repetia. Da última vez não fosse a intervenção do marido, chamado às pressas, o caso ia parar na delegacia.  Recorreu ao psiquiatra, que depois de muito esforço à luz da ciência conseguiu interromper o seu procedimento deprimente.

            Um dia, o marido, crente que o caso houvesse sido curado, percebeu que a sua bolsa estava gorda, estufada, com algo volumoso dentro.

           - Abra a bolsa, quero ver o que está aí dentro.

            Ela em pânico.

           - Não é nada, é minha escova de cabelo e a sombrinha.

           O marido tomou-lhe a bolsa no movimento brusco. Abriu e encontrou dentro os dois quilos de carne enrolada no papel plástico.

            - Já lhe disse que não temos precisão de fazer uma coisa dessa, você não toma vergonha mesmo.

            - Prometo que essa será a última vez.

           - De novo a lenga-lenga. Trate de entregar essa carne roubada a um pobre, vá se arrepender antes que seja tarde. Quando menos esperar, você será flagrada outra vez pela câmera de filmar o movimento de gente no supermercado e não vou lhe socorrer. Você irá na viatura da polícia para prestar depoimento na delegacia.

             Em casa relutou em se desfazer da carne, oferecer a um pobre que vivia de catar lixo na rua, como o marido queria.  No dia seguinte foi buscar a carne na geladeira para preparar os bifes que seriam servidos na refeição suculenta do almoço. Desconfiou que a carne tinha sido surrupiada pela metade. Não havia dúvida, vinha desconfiando das coisas que estavam sumindo da geladeira rapidamente. Só podia ter sido a empregada,                

           Pesou a carne na balança, constatando que estava faltando quase a metade. Bem que estava desconfiando daquela cara sonsa da empregada, cheia de sorrisos e agrados quando falava com a patroa. Tinha que ser despachada por justa causa. Não era pessoa que merecesse a confiança.

           O marido:

          - Despedir? Isso não farei, nem pense.                                         

         - Por quê? Qual a razão para se manter em casa uma doméstica ladra.

        - Pelo simples fato de que ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão.

        Com raiva nos olhos, não se conformou com o que o marido acabava de dizer, fundamentando-se em sábio provérbio popular, corrente de boca a ouvido.    

 

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