Páginas

segunda-feira, 8 de julho de 2024

 

Jorge Amado Contista

Cyro de Mattos

 

Existem escritores que preferem a amplidão para expressar a vida, optam nas suas criações por um gênero que corresponda ao seu imaginário fecundo, numa forma capaz de representar com sobras as visões críticas do mundo, seguidas vezes repetindo no tempo suas questões agudas

Jorge Amado nunca se interessou pelo conto em seu percurso de ficcionista. Sua experiência de vida fez com que a metamorfose da história se expressasse através do romance, que em essência se expande ligado na vastidão do mundo. Seu romance no volume alentado acontece na geografia de três regiões, Salvador de Bahia, o Recôncavo e o Sul da Bahia, no tempo da conquista da terra.  Desde cedo escutou muitas histórias das gentes que iriam ser habitantes de seu universo literário no espaço das zonas urbanas e rurais.  Com uma vida prodigiosa, marcada de aventuras e perseguições, em Jorge Amado tudo funciona como enormes experiências, por isso só o romance se prestaria para representar o conteúdo de um universo literário assim tão grande. O conto vai acontecer no percurso desse escritor vasto como um simples episódio.  

O livro Cinco Histórias (2004), de Jorge Amado, como diz o título, é a reunião de cinco prosas de ficção breve, que integraram publicações avulsas no período compreendido entre 1959 e 1989, em revistas, periódicos e antologias, O volume de capa dura, com ilustrações de artistas famosos, traz as histórias seguintes: “Do jogo de dados e dos rígidos princípios”, “História de carnaval”, “As mortes e o triunfo de Rosalinda”, “De como o mulato Porciúncula descarregou o seu defunto” e “O Episódio de Siroca”.

Nesses cinco contos, o leitor terá encontro de novo com o narrador de prosa envolvente, que bem sabe recriar o cotidiano do povo, com seus costumes, aptidões, façanhas e artimanhas usadas por seus tipos com caracteres próprios. Na prosa prazerosa irá absorver a linguagem fluente do narrador admirável, conhecedor do ofício, íntimo de suas gentes populares, dos seus valores, alegrias e tristezas. O expositor do erótico como essencialidade da natureza humana sem apelar às lubricidades.

Em “Do jogo dos dados e dos rígidos princípios”, Jorge começa dizendo:

 

Nada mais perigoso do que confundir o destino irremediável de cada um de nós com sem-vergonhice, safadeza, falta de caráter. Não é por querer, por falta de princípios e de firmeza, que o homem repete uma, duas, três, dez mil e tantas vezes a mesma e irreparável besteira. (pg. 9)

        

            E observa que neste sentido muitas injustiças acontecem com verdadeiros cidadãos devido à ligeireza dos juízos. Justamente o que se vê na história protagonizada por Pedro Porró, cabo Martim, Antônio Bispo com seus dados viciados, e Clímaco, o que trabalhava em madeira, em chifre e até em marfim.

        Já “História de Carnaval” é uma obra prima sobre o tema. Narrativa em que Maria dos Reis, Teodoro e Antonieta formam o trio principal de protagonistas, coadjuvado por Dona Marocas.  O drama desse relato, que acontece no carnaval baiano, apresenta-se com sectária rigidez ligada ao machismo, contrapondo-se nessa condição aos sentimentos puros do sonho e da emoção. Escrita sob encomenda, a inspiração da história aflora com toques de alegria e em sequência se transpira no drama ritmado nas relações conflitantes, terminando de maneira dolorida.  

 

                                    Então as Felizes Borboletas cantaram ainda mais                                                   

                                      alto, tão alto, que Maria dos Reis não pode fingir

                                     que não ouvia e teve que parar para olhar, apertar

                                     os lábios para que os soluços não rebentassem.

                                    (pg. 36)

                                       

         “As mortes e o triunfo de Rosalinda” é uma história que Jorge Amado dedicou   ao amigo Campos de Carvalho, autor dos romances A Lua Vem da Ásia (1956), Vaca de Nariz Sutil (1961), A Chuva Imóvel (1963) e O Púcaro Búlgaro (1964). Esquecido pela crítica a princípio, esse romancista de romances transgressivos foi valorizado tempos depois como importante da ficção contemporânea. Riqueza do vocabulário, linguagem com precisão semântica, agilidade nas frases bem construídas, períodos longos a serviço de uma narrativa inovadora, com enredo pouco convencional, são as marcas que Campos de Carvalho imprime em seus romances construídos com elementos estruturantes avançados. 

 Na dedicatória de “As mortes e o triunfo de Rosalinda”, Jorge Amado refere-se ao amigo como mestre jovem da literatura contemporânea. Alude ao estilo realista-anárquico desse autor considerado como possuidor de uma linguagem carnavalesca, comparado às vezes com um clown, tanto o insólito é tomado pela ironia, doses engraçadas de humor e ácida alegria na crítica.

 É visível a experimentação que Jorge Amado empreende na linguagem da história “O triunfo e as mortes de Rosalinda”. Não lembra a entonação de sua linguagem simples, espontânea, que prende da primeira à última página, sem esforço. No fluxo verbal de seu discurso, agora um tanto diferente do que nos acostumamos, o assassino confesso de Rosalinda conta as diversas vidas e as múltiplas mortes dessa mulher incrível, que se reinventa em várias ocasiões, ao mesmo tempo como dona de casa, madre superiora e dona de prostíbulo, além de ter sido amante do patriarca de Alexandria.

No entendimento de Jorge Amado, a narrativa “De como o mulato Porciúncula descarregou o seu defunto” pode ser considerada como uma história para cachaça comprida, noite de chuva, ou melhor, para uma viagem de saveiro, em noite de lua. A história é contada por Porciúncula, mulato que se apaixona por Maria do Véu, que nunca quis dormir com ele.

Esse Porciúncula era o mulato mais bem falante que eu conheci, o que é muito dizer. Tão cheio de letras, tão de maciota, que, não se sabendo de seus particulares, podia-se pensar ter ele alisado banco de escola, quando outra escola não lhe deu o velho Ventura senão a rua e a beira do cais. (pg. 70)

O último conto dos cinco reunidos no volume de bela confecção gráfica é “O episódio de Siroca”. Zélia Gattai informa que Jorge Amado inspirou-se em Siroca com a empregada de sua filha, uma pouca maluqueta, que um dia sumiu. Espontâneo na linguagem solta, na narrativa que se descarrega com lances intrigantes, à primeira vista incoerentes, Jorge Amado usa também o diálogo como recurso pertinente para conduzir a história com seus personagens chegados a umas maluquices, ora irritantes, ora incompreensíveis. Na Bahia Siroca namora Bóris, moço com a fama de boca de mel, com ele provando de febricitantes ternuras, beijos demorados, que provocam intenso prazer, em especial quando visitam com a língua como brasa o bico dos peitos. Ela deixa que o Boris faça tudo com ela, menos se atrever a arrancar os tampos da virgindade, “tire a mão daí, tem dono.” Guardava-se para o eletricista José Daniel, que retornara ao Rio, dando a ordem de lá para ela voltar de Salvador para junto dele, prometendo que ia se casar com a amada.  A maluquice da história segue o seu percurso para o final quando Siroca pede a Boris para ajudá-la a fugir da patroa Nazá, a madrinha, que não se cansa de perguntar à afilhada se ainda continuava virgem, chegando ao ponto de fazer o exame com o médico para tirar a dúvida. Boris ajuda Siroca a fugir para o Rio para se encontrar com José Daniel, na expectativa de que sua virgindade vai ser arrancada por ele, era só querer.

                     Jorge Amado escreveu mais três histórias de ficção breve: O milagre dos pássaros (1979), O gato Malhado e a andorinha Sinhá (1976) e O goleiro e a bola (1981). A primeira dessas insere-se na linhagem do realismo mágico, já a  segunda é uma fábula, a terceira destina-se ao leitor infantil.

Nenhum comentário:

Postar um comentário