A Patativa Nininha
Por Cyro de Mattos
Nininha
era a patativa de nossa rua. Faladeira que só ela quando não estava
cantando. Pequenina, pele cor de cobre, seus cabelos soltos iam até a
metade das costas. Andava ligeira nos passos miúdos. Tinha cinco irmãos. Com o
falecimento da mãe ficou incumbida de conduzir as tarefas de casa.
Ficava
ouvindo do meu quarto a vizinha desfiar na sua voz cantadora as canções
mais românticas do cancioneiro popular, mal o sol despontava na manhã. Desde
cedo custava a sair da cama só para ficar ouvindo a vizinha interpretando
alguma canção que seus cantores prediletos costumavam cantar. Dalva
de Oliveira, Ângela Maria, Emilinha Borba, Alaíde Costa, Caubi Peixoto,
Francisco Alves, Luís Gonzaga, Nelson Gonçalves, Moreira da Silva, Agnaldo
Rayol e Orlando Silva. Nessa hora parecia que os passarinhos no pé de carambola
gostavam também de ouvir a vizinha cantar na manhã cheia de luz. Eles ficavam
assanhados, não paravam de cantar e pular nos galhos do pé de carambola.
Com cantos e pios faziam o fundo musical para que a voz maviosa de Nininha se
propagasse na manhã festiva.
Nininha da Mata Virgem.
Certa vez perguntei ao Codinho, irmão caçula de Nininha, porque ele e os
irmãos tinham aquele sobrenome Mata Virgem. Informou que o pai quando era jovem
andou muito pela mata virgem, cheia de cobras e bichos perigosos, para não se
falar dos indígenas, no tempo em que a lavoura cacaueira estava no início.
Existiam poucas roças de cacau na região. As árvores nativas cobriam léguas de
terra fértil. O pai de Codinho conseguiu derrubar um estirão de mata virgem na
zona de Ferradas, lá plantara na clareira uma pequena roça de cereal
e cacau. Ficou assim conhecido como o homem da mata virgem. O chamamento
como se fosse o sobrenome pegou feito visgo nele e nos filhos.
Alguns
meninos daquele tempo começaram a se interessar em aprender a cantar os
sambas de sucesso e as marchinhas mais animadas quando se aproximava o
Carnaval. Quem soubesse cantar as melhores marchinhas e sambas tinha um trunfo
para atrair e namorar as meninas mais bonitas durante o baile na matinê do
Itabuna Social Clube.
Contei
com a ajuda de Nininha para aprender a letra e como cantar com fervor o samba e
a marchinha. Ela tinha vários cadernos anotados com a letra da música
carnavalesca. Ficava horas ao pé do rádio ouvindo o programa de carnaval
transmitido pelas emissoras da Rádio Nacional, Tupi, Continental e Tamoio.
Ouvia com o máximo de atenção o programa musical dirigido pelo radialista e
compositor Cesar de Alencar, prenunciando o carnaval nas vozes dos cantores
Jorge Veiga, Jorge Goulart, Marlene, Emilinha Borba, Francisco Carlos, Elza
Soares, Carmélia Alves, as irmãs Linda e Dircinha Batista. Ia
passando para o seu caderno a letra da marcha ou do samba que
aquelas vozes animadas cantavam no programa de grande audiência da
rádio.
O cunhado de Nininha era o locutor do
Serviço Regional de Propaganda Regional. Timóteo tinha uma voz metálica, que
saía vagarosa pelo alto-falante no poste quando estava anunciando os produtos à
venda com preço barato pelas casas comerciais. Costumava colocar o canto triste
da ave-maria pelo alto-falante, em cada entardecer, para que tocasse no fundo
da alma dos seus ouvintes e fãs, que trabalhavam nas lojas do comércio ou
moravam nas casas que ficavam perto do centro da cidade.
Daquela vez houve um
contratempo com o aparelho de som que costumava tocar o disco da ave-maria.
Amanheceu com defeito, a gravação se interrompia em alguns trechos. Quando
tocava a música, às vezes ficava arranhando em várias passagens.
Nininha
foi chamada às pressas por Timóteo para cantar daquela vez a ave-maria. E
aconteceu o que ninguém acreditava. A interpretação da patativa emocionou as
pessoas, que ficaram comentando na semana o surpreendente desempenho da
vizinha. Nunca se tinha ouvido uma ave-maria ser cantada por voz tão piedosa e
triste.
Recebeu
muitas congratulações por sua cantata da ave-maria. Timóteo foi uma
das pessoas que muito se emocionou com a voz pungente de sua cunhada
quando cantou no entardecer a ave-maria. No
alto-falante pendurado no poste das ruas do centro e praças principais
da cidade, sua voz pungente ressoava e arrancava suspiros dos ouvintes.
Uma
vez vi um homem conversando alegre com a vizinha na sala da frente de sua casa.
Soube depois que era o seu namorado.
Daquele dia em diante ela passou a cantar com mais intensidade as
canções românticas na manhã ensolarada, o coração irradiava felicidade por
todos os cantos da casa. Em pouco tempo ficaram noivos,
o casamento ocorreu daí a um ano, com uma noiva baixinha, de véu e
grinalda, e um noivo engravatado, alto e gordo. Alguns vizinhos duvidaram
que um dia aquele enlace fosse acontecer. Só acreditaram quando
viram os noivos sorrindo alegres quando saíam da Igreja de São José, o
padroeiro da cidade.
Nininha foi cantar cantigas
bonitas nas manhãs e tardes do novo lar. Sem a sua voz impecável, as manhãs
perderam o encanto na casa vizinha onde ela morava. E nunca mais fiquei ouvindo
de meu quarto a patativa de nossa rua cantar bolero, tango, baião, samba,
samba-canção, marcha e valsa. Qualquer cantiga suave ou canção dramática do
cancioneiro popular com aquela voz que Deus lhe deu para alegrar a
vida.