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terça-feira, 20 de agosto de 2024

 

A Patativa Nininha

Por Cyro de Mattos

 

Nininha era a patativa de nossa rua. Faladeira que só ela quando não estava cantando. Pequenina, pele cor de cobre, seus cabelos soltos iam até a metade das costas. Andava ligeira nos passos miúdos. Tinha cinco irmãos. Com o falecimento da mãe ficou incumbida de conduzir as tarefas de casa.           

Ficava ouvindo do meu quarto a vizinha desfiar na sua voz cantadora as canções mais românticas do cancioneiro popular, mal o sol despontava na manhã. Desde cedo custava a sair da cama só para ficar ouvindo a vizinha interpretando alguma canção que seus cantores prediletos costumavam cantar.  Dalva de Oliveira, Ângela Maria, Emilinha Borba, Alaíde Costa, Caubi Peixoto, Francisco Alves, Luís Gonzaga, Nelson Gonçalves, Moreira da Silva, Agnaldo Rayol e Orlando Silva. Nessa hora parecia que os passarinhos no pé de carambola gostavam também de ouvir a vizinha cantar na manhã cheia de luz. Eles ficavam assanhados, não paravam de cantar e pular nos galhos do pé de carambola. Com cantos e pios faziam o fundo musical para que a voz maviosa de Nininha se propagasse na manhã festiva.
          Nininha da Mata Virgem. Certa vez perguntei ao Codinho, irmão caçula de Nininha, porque ele e os irmãos tinham aquele sobrenome Mata Virgem. Informou que o pai quando era jovem andou muito pela mata virgem, cheia de cobras e bichos perigosos, para não se falar dos indígenas, no tempo em que a lavoura cacaueira estava no início. Existiam poucas roças de cacau na região. As árvores nativas cobriam léguas de terra fértil. O pai de Codinho conseguiu derrubar um estirão de mata virgem na zona de Ferradas, lá plantara na clareira uma pequena roça de cereal e cacau. Ficou assim conhecido como o homem da mata virgem. O chamamento como se fosse o sobrenome pegou feito visgo nele e nos filhos.

Alguns meninos daquele tempo começaram a se interessar em aprender a cantar os sambas de sucesso e as marchinhas mais animadas quando se aproximava o Carnaval. Quem soubesse cantar as melhores marchinhas e sambas tinha um trunfo para atrair e namorar as meninas mais bonitas durante o baile na matinê do Itabuna Social Clube.

Contei com a ajuda de Nininha para aprender a letra e como cantar com fervor o samba e a marchinha. Ela tinha vários cadernos anotados com a letra da música carnavalesca. Ficava horas ao pé do rádio ouvindo o programa de carnaval transmitido pelas emissoras da Rádio Nacional, Tupi, Continental e Tamoio. Ouvia com o máximo de atenção o programa musical dirigido pelo radialista e compositor Cesar de Alencar, prenunciando o carnaval nas vozes dos cantores Jorge Veiga, Jorge Goulart, Marlene, Emilinha Borba, Francisco Carlos, Elza Soares, Carmélia Alves, as irmãs Linda e Dircinha Batista.  Ia passando para o seu caderno a letra da marcha ou do samba que aquelas vozes animadas cantavam no programa de grande audiência da rádio.

          O cunhado de Nininha era o locutor do Serviço Regional de Propaganda Regional. Timóteo tinha uma voz metálica, que saía vagarosa pelo alto-falante no poste quando estava anunciando os produtos à venda com preço barato pelas casas comerciais. Costumava colocar o canto triste da ave-maria pelo alto-falante, em cada entardecer, para que tocasse no fundo da alma dos seus ouvintes e fãs, que trabalhavam nas lojas do comércio ou moravam nas casas que ficavam perto do centro da cidade.
          Daquela vez houve um contratempo com o aparelho de som que costumava tocar o disco da ave-maria. Amanheceu com defeito, a gravação se interrompia em alguns trechos. Quando tocava a música, às vezes ficava arranhando em várias passagens.

Nininha foi chamada às pressas por Timóteo para cantar daquela vez a ave-maria. E aconteceu o que ninguém acreditava. A interpretação da patativa emocionou as pessoas, que ficaram comentando na semana o surpreendente desempenho da vizinha. Nunca se tinha ouvido uma ave-maria ser cantada por voz tão piedosa e triste.

Recebeu muitas congratulações por sua cantata da ave-maria.  Timóteo foi uma das pessoas que muito se emocionou com a voz pungente de sua cunhada quando cantou no entardecer a ave-maria. No   alto-falante pendurado no poste das ruas do centro e praças principais da cidade, sua voz pungente ressoava e arrancava suspiros dos ouvintes.  

Uma vez vi um homem conversando alegre com a vizinha na sala da frente de sua casa. Soube depois que era o seu namorado.  Daquele dia em diante ela passou a cantar com mais intensidade as canções românticas na manhã ensolarada, o coração irradiava felicidade por todos os cantos da casa.  Em pouco tempo ficaram noivos, o casamento ocorreu daí a um ano, com uma noiva baixinha, de véu e grinalda, e um noivo engravatado, alto e gordo. Alguns vizinhos duvidaram que um dia aquele enlace fosse acontecer. Só acreditaram quando viram os noivos sorrindo alegres quando saíam da Igreja de São José, o padroeiro da cidade.
          Nininha foi cantar cantigas bonitas nas manhãs e tardes do novo lar. Sem a sua voz impecável, as manhãs perderam o encanto na casa vizinha onde ela morava. E nunca mais fiquei ouvindo de meu quarto a patativa de nossa rua cantar bolero, tango, baião, samba, samba-canção, marcha e valsa. Qualquer cantiga suave ou canção dramática do cancioneiro popular com aquela voz que Deus lhe deu para alegrar a vida.  

 

 

 

 

 

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