Páginas

domingo, 10 de julho de 2016


POESIA DE FLORISVALDO MATTOS




Em bom momento deste mês, em que Itabuna completará no dia 28 mais um ano de emancipação política,  a poesia de Florisvaldo Mattos chega até nós  para avivar o imaginário. Poeta de linguagem expressiva e conteúdo fraterno,  de lastro clássico em seu discurso coeso, um dos mais importantes nas letras contemporâneas brasileiras, nascido em Uruçuca, Florisvaldo Mattos é também jornalista,  professor aposentado da UFBA, membro da Academia de Letras da Bahia. Publicou livros de poesia e ensaio, sendo os dois últimos Poesia Reunida e Inéditos (2011) e Sonetos elementais (2012); tem no prelo Estuário dos dias e outros poemas, seu oitavo livro de poesia, do qual constam estes abaixo  em homenagem a Itabuna, onde viveu, de 1945 a 1958, mas sempre presente em sua memória. (Cyro de Mattos)



OS HEROIS
(Infinita memória de Tabocas) 

A Cyro de Mattos e em memória de saudosos amigos itabunenses: Agostinho, Carlito Barreto, Dedé, Edson Cordier, Eraldo Cerqueira Gomes, Fernando Menezes Dantas, Dr. Gervásio Santos, Hélio Nunes, Hélio Pólvora, Manoel Leal de Oliveira, Raleu Baracate, Ruy Cedar Fontes, Telmo Padilha, Vidal, os irmãos Vitório e Zequinha Carmo.

                                                          



I
Ao redor de um jequitibá 

A mata vai gemendo, e a terra estremece...
                            E o matagal cortado em fúria desfalece.
                                               Nataniel Ruben Ribeiro Gonçalves (1960)

Com as flores de mil novecentos e onze,
Saúda-se uma construção dos homens,
Primeiro trem-de-ferro em Itabuna.
Estação branca e verde, vigamentos
E colunas fundidos na Inglaterra.
Logo se juntam ventos mensageiros.
Plataforma apinhada de murmúrios,
Espargem-se no ar gestos que meu pai
Fazia, quando moço, certamente, 
E amargara na terra em que buscava
Tolhido fruto ao sonho retirante.
Lá, de gravata e colarinho duro,
O Intendente rodeado de comparsas
Bufa contentamento sob o fraque
E manda um telegrama ao Presidente
Alcovitando o feito dos ingleses.

Aprumando o Latim das Escrituras,
O Padre vem benzer o prédio novo.
Ajusta os paramentos de seu culto
E fala aos fiéis do bem que é o Progresso,
Quando mansa a alma se volta para os céus.
Discute-se o futuro dos transportes,
O quanto servirão a safra e ganhos.
O Juiz exalta a força do vapor,
A do carvão e da eletricidade. 
Especula-se a sorte do aeroplano,
Ou do que irão chamar de zepelim,
Maior glória não há por entre nuvens.

A fé republicana abrasa as mentes.
Lábios estrugem matinal vanglória
De batalhas vencidas, que devolvem
Trajetos de remotas aventuras,
Apegadas ao nome do arraial.
No ardor de lúbricas fruições, desfraldam
Firmamento de audazes fundadores:
Firmes rostos e nomes que até rimam
(Félix Severino do Amor Divino,
Constantino, José Firmino), e passos
De claro curso que celebrizaram
Valentias e força de trabalho.

Hálito de matas e aldeias índias,
As sílabas percorrem de Tabocas
Mágico som jorrado de uma física
Tertúlia de músculos e pulsos
Contra espesso e imperial jequitibá,
Regência de machado em fortes mãos, 
Espelhadas em pedregoso rio.
Embora calem pássaros e ramos,
Abençoa-as um céu de cores grandes
E corpos vibram de tenacidade.

Teve também os seus Eneias essa 
Laboriosa extensão de apenas terra,
Que se atribui nascida pátria da honra,
Isenta de alegrias musicais,
Sem artes de alma e ardências, sem violões,
Sem canções que não as da natureza;
Somente árvore e sombra, em dura faina,
E o cabedal de lutas intestinas.
Uns ridentes, outros compenetrados,
Entretém-se, conversam e confabulam.
Há um novo sol no século que se abre,
Vozes em eco, unânimes, consagram
Passado que resume um sonho plástico:
Charcos que foram e serão depois
Ruas e praças, casas e sobrados,
Matas vencendo, derrubando cercas,
Auras que são tributo da coragem.

A estação miram com olhos do presente.
O trem-de-ferro logo chegará.
“Para cá virão tropas e tropeiros,
Os que passam agora e passarão
Outros que sejam por manhãs e tardes”.
Dali saem e vão jogar bilhar,
Ou simplesmente ao coito com donzelas,
Um conhaque talvez no Elite Bar.
Ruge o inverno nas roças de cacau,
Esplende a lama cevando jatiuns.

II
Aurora com Zé Nik

                   CONTRA NATURAM
                   Trouxeram putas para Elêusis
                   Meteram cadáveres no banquete
                   A mando da usura.
                                               (Ezra Pound, Canto XLV)

José Nik a este mundo não pertence.
Jamais seria alferes dessas hostes;
Era mais personagem que um ser físico.
Vinha de pai honrado fazendeiro,
Gozou de lar e escola, tinha letras,
Mas como herança de satyricons,
Pela trama dos dias e das noites, 
Ganhou fama de mestre em diabruras.
De onde vem como fauno endinheirado,
Ilhéus lhe impôs coroa de valente.
Dispensa o trem-de-ferro e, em montaria,
Tabocas é o destino, a terra nova
De áulicos e de belas raparigas, 
E vai se divertir no Ponto Chic,
Áureo templo de bródios camaradas.
Todos esperam que chegue o endiabrado.

Acendendo relâmpagos nas pedras,
Por uma dessas portas chegará
O cavaleiro de rosto amorenado.
Conhaque de alcatrão e Vinho do Porto,
Gim e aguardente espalham-se nas mesas.
Envolto em lumes, ele enfim chegou,
Com seu chapéu de feltro e aba larga, 
Camisa em listras, largo cinturão;
O revólver de cabo madrepérola,
O punhal e o rebenque encastoado. 
Pisara em flores sobre lama e lodo.
O punho forte segurando as rédeas,
Apeia-se da mula e entra no bar.
Pede conhaque com açucena e, sério,
Bebe de um gole um quarto de garrafa.
Já veio bambo e, após os cumprimentos, 
Senta-se. Logo se levanta e brada:
“A canalha está em festa, a raça espúria.
Quero que morra a nata apodrecida,
Que nem mesmo vale um tostão furado”.
Da audiência refletida nos espelhos,
Tanto quanto as garrafas de bebidas,
Abre-se o riso em luz de acetileno,
Sobre as pedras de silenciosa rua.
Entre um gole e outro, a frase aguda,
Os olhos presos no mármore da mesa,
Sabe-se que vem ébrio; entanto, todos
Querem ouvir o oráculo das matas.

Vivas estalam em rolhas de champanhe,
Entre os cristais do bar estrelejado.
Logo debulha os vícios da República,
Que homizia um rosário de maldades.
E, ante ávida plateia, alinhavava:
Os deputados a bico de pena,
A moral de rapina, o chão de ratos,
Astúcias no silêncio dos cartórios, 
De notários e fátuos advogados,
Venalidades e querências surdas;
Os enfatuados donos do dinheiro,
Nas casas compradoras de cacau,
Com estrangeiros de rosto avermelhado,
Tramam revoltas e terras ocupam,
Expulsando posseiros a chicote;
Os caxixes, o exército de agiotas
(A usura participa do cenário),
Balas e assassinatos de tocaia.
Transpiram calma e cálculo, astros são
De um conservadorismo abençoado,
Cujas filhas fornicam nos quintais.
Divertem-se liberando ansiedades.
À noite nas sessões de jogatina,
Entorpecidos, jogam bacará
E sete-e-meio e pôquer apostado.
Privam também com suas concubinas,
Em bordéis e mansões; arreiam tropas
E transportam cacau pela alvorada.
Tensas mulheres em lençóis de seda
Libertam-se de sexo reprimido,
Entre cortinas de um amor furtivo,
Vezes muitas por trás de um naipe de ouros.

Olhos vívidos miram os cristais,
Um gole a mais, o cálice no ar.
(Escrevente Manoel Fogueira observa 
Ovações e estridências do espetáculo).
Todos lembram o instante em que Zé Nik
Destratara um Juiz em calma rua
E a noite em que, em pleno Quartel Velho, 
Tonto, se defrontou com três maçons;
Mandou que abrisse o bolso cada um,
Enfiando neles moedas de um vintém.
Chovera. O céu de estrelas semelhava
Um lago que espelhasse pedrarias.


III

Noite com Zé Nik

                   Na cinquentenária avenida
cinquenta anos te espero:
foste herói impossível de um dia
que não vingou nos anos vindouros.
                            (Telmo Padilha)

Horas havia, à noite, em que o peito arfava,
O coração media em derredor.
Destravando as amarras do pensar,
Cogitava outro passo, outro caminho.
Sonhava que estivesse num jardim,
Entre flores e amigos, num coreto,
A dizer-lhes que o mundo é bem diverso
Do que ruminam eles, do que sonham,
Como talvez lutar no Contestado, 
Soldado ser no Rio de Janeiro,
Viver na terra como um desastrado.
Rugas na testa evocam movimentos,
Em paragens longínquas, alistado,
Araucárias e verdes pinheirais,
De árduo escudeiro, de anjo protetor.

Tarde de sol venal e de cansaço,
Na hora em que búzios desertam o dia, 
Entre nuvens de excesso e perdição,
Olhos de azeite e voz tonitruante,
O desastrado irrompe no terreiro
De uma fazenda calma e preguiçosa. 
Aguardente de cana na mão trêmula,
Com todos grita, acusa, execra e xinga.
Depois arruma alforjes nos arreios,
Emborca um gole a mais, apruma o corpo
E deita, despedindo-se do dia.
Entre restos de selva e serrania,
O Rio Almada exaure-se em canções,
Prenunciando auroras e crepúsculos
De uma saga que nasce nele próprio.
Zé Nik dorme o sono da inocência.
É quando, alma que veio do Nordeste,
Para sumir nos eitos do cacau,
Colecionando injúrias, lavrando ódios,
Arreando tropas, o Amarelo espreita.
Com a mesma mão que arreia as alimárias,
Doa a um machado os sonhos de Zé Nik
E ao Juiz disse que matou sem cúmplices,

Na tarde de incógnitas infinitas.
Foi-se sem um rugido, mesmo um sopro.
Fechados olhos como que de ausência, 
Do corpo pendem-lhe mãos de escultura,
Da boca e queixo, um terno e rubro líquido,
Sangue que peito cobre e alaga o chão.
Arreado está, arreado ficará.
“Ai! Que anjos o levem, jamais Caronte”,
Imploram os varões do Ponto Chic.
Astros e deuses logo o levarão
Pelo moroso céu do que se finda.
Adiante passam burros, passam tropas,
Verdes matas prosseguem expectantes,
Talvez nos ramos pássaros gorjeiem.
Ansiosa desde sempre a terra vibra,
Em pouco alegre chuva a encharcará.
O outono vem com nuvens de cetim.
(O rio Almada corre silencioso,
No seu fado de eterna testemunha).
Já pelo ar calmos ventos anunciam:
Por milagre talvez ou santas mãos,
Sobe na Bolsa o preço do cacau.
Gritos se ouvem, nas águas, nos caminhos,
Em mil novecentos e vinte e sete.
Personagem de conto fin-de-siècle,
Aqui se finda a história de Zé Nik,
Em nada parecido com um ser físico.

IV

Alvorada renascida


Ah! Como eu sou feliz e me sinto orgulhoso
De um dia ter nascido em teu seio faustoso,
Sob o esplendor de um céu de beleza tão rara!
                                               José Bastos (1905-1937)


A luz que escorre sobre um rio morto
Ainda derrama cores e nos alerta
Que o passado vivido que passou 
É passado lembrado que não passa.
(Ó sonoro Guillén, disseste-o bem,
Ecoando suados rastros de conquistas,
Com voz de bardo hispano-americano:
“O passado passado não passou”).*
O tempo foge, gasta e desconcerta.
Os caminhos da vida têm cancelas,
Que se abrem, quando emergem na memória
Com os ecos de machados retumbantes,
Força e fervor de braços sergipanos.
Não só de sóis a letra é devedora,
Das estrelas menores é também.
Sumiu Tabocas, o arraial primeiro,
Matas de cedros e maçarandubas.
(Só não sumiu o amor pelo cacau).
As noites moldam novas alvoradas,
Enquanto nuvens pelos céus bendizem
Terras heroicas sobre as quais ainda hoje
O vento sopra despejando flores,
Saudando todas as criações e luzes,
Os caminhos acesos de Tabocas,
Que ainda fosforescem e cintilam,
Em chão de orvalho e lidas que retornam
A esperanças vividas e sentidas.
Dessas auras, contrito, me despeço.
Itabuna venera seus Eneias,
Que dialogavam com jequitibás.
Tabocas nunca esquecerá Zé Nik,
Que foi seu outro lado incandescente.

(SSA/BA, 1982-01.05.2016) 

*Oh aurora dos tempos, incendida!
Oh mar de sangue, mar que desbordou!
O passado passado não passou.
A nova vida espera nova vida.

(Nicolás Guillén, in “Elegia a Jacques Roumain, tradução de Manuel Bandeira).



Nenhum comentário:

Postar um comentário