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domingo, 13 de novembro de 2016





                                
POEMAS DO NEGRO
      Cyro de Mattos


Canga

Não se logra extrair
Os ossos dessa massa,
Os músculos mutilados
No esforço dos anos.
Tuas mãos, escravas,
Alimentadas na turva
Ferida, dor sem cura.

A atrocidade no ferro
Que furou o coração,
 A enchente na vala
Que transbordou de mágoa,
Nuvens não tocadas. 
Nunca será paga a conta
Na mancha que envergonha.

Como herança os rastros
Dessa noite escura na pele
Que te lança nos muros,
Agarra-te  nas  manhãs
Com sua claridade vista
Apenas pelos não pretos.
Até quando barreiras
De tua  cor opaca farão
Da vida  uma coisa qualquer, 
Desigual, desvão sem canto?

Pelourinho

Como suportar?
Treze... trinta... cinqüenta...
Até o último gemido.

Os outros olhando
Cada chibatada. Tristes,
Sem nada fazer.    

Ladeiras gastas.
E esse vento que recusa  
Ao largo a desgraça.


Escravo

Uma mão
Feito casca
Não lava
A outra
Feito lixa.

Ásperas
As duas
Feito bucha
Limpam
As duas
No esmero
Do senhor.

Limpam
As sobras
Ou  largura
Depois de lá
De dó em dó.

Perto
De o dia
Clarear
Até o sol 
Se pôr. 


Ferro de Passar Roupa

Passa minha roupa 
Lembrando outros tempos.
Vai fazendo estragos
Na pele dos meus bisavôs.

Ferro nos pés,  mãos
Na carne viva chiando,
O coração sangrando.
Do ventre e de velhice
Um dia foi  banido.
Afinal teve as asas
Pra voar sem marcas? 

Nas fendas acumuladas
Impregnado de aversão.
No caco,  no estômago
Mal surge cada manhã,
No prato lavado na pia.
Empoeirado na lata,
Nas unhas corroídas, 
Com urubus pelo lixão.

Pra findar eternidades
Desses gestos caóticos
A natureza inventou
Uma escultura jovem,
 No caldo uma mistura
Doutra ginga  infiltrada.
Sem fissura, amargura,
Pisando no chão,  solta,
Com a pulseira do amor. 


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