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domingo, 18 de julho de 2021

 



                Poetas Revisitam o Poeta Pessoa*

                                  

                          Cyro de Mattos

              

               Luís de Camões cantou um pequeno Portugal de marinheiros com seus feitos maravilhosos por mares nunca dantes navegados. É considerado o poeta mais abrangente e expressivo da lusitanidade, voz poderosa do humanismo renascentista que transformou a obra-prima Os Lusíadas (2003, no Brasil) em monumento de imaginação e arte nas letras mundiais. Fernando Pessoa é um dos fundadores da modernidade literária portuguesa, criador de uma obra poética de dimensões universais como um caso genial, que dá vida a personagens de qualidades poéticas de alto nível. Cada uma delas com a sua biografia própria, ideias próprias, maneira própria de fazer poesia, a simular pensamento e sentimento diante de tudo, ligar o eu ao externo no enigma do existir.

Nascido em Lisboa a 13 de junho de 1888 e falecido a 30 de novembro de 1935, com uma obra poética que superou como nunca se tinha visto em tempos modernos as fronteiras estreitas de Portugal, Fernando Pessoa, em sua feição instigante de poeta singular e plural, tornou-se o mais famoso dos poetas da língua portuguesa. “Minha Pátria é a Língua Portuguesa”, o poeta disse, ganhando dimensões admiráveis cada vez mais toda a extensão desse dizer, como resultado de uma poesia calcada em dois elementos de natureza fortíssima, a imagística de seu lirismo e o visionarismo mítico de seu pensamento.

Poetas revisitam Pessoa (2003) é a antologia que o professor João Alves das Neves organizou para homenagear Fernando Pessoa. Nela reúne cinquenta poetas, entre portugueses e brasileiros, que escreveram poesia inspirada no poeta e em seus famosos heterônimos, Alberto Caieiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Entre os poetas de Portugal que participam da antologia foram relacionados Adolfo Casais Monteiro, Agostinho da Silva, Miguel Torga, Natália Correia, Sophia de Mello Breyner Andresen, Teresa Rita Lopes e Vasco Graça Moura. Do lado brasileiro foram elencados, dentre outros, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Mário Chamie, Alberto da Costa e Silva, Álvaro Alves de Faria, Ariano Suassuna, Carlos Felipe Moisés, Cyro de Mattos, Eduardo Alves da Costa, Glauco Matoso, Miguel Jorge e Neide Archanjo.

Além da homenagem que é prestada ao imenso poeta, que se sentiu um transeunte inútil, estrangeiro no cotidiano de Lisboa, a “errar em salas de recordações”, essa antologia traz um conjunto harmonioso de notas afetiva e intelectual, nacional e universal, que ressoam como descobertas preciosas no próprio Fernando Pessoa, autor de poemas breves e leves, sonoras canções e versos “ocultistas”.

Da singularidade de uma poesia fingida, produzida por eus fictícios, a antologia sinaliza em Alberto Caeiro, o poeta materialista, esses estados do ver e do conhecer relacionados com a realidade imediata através de sentimentos inocentes. Externa em Ricardo Reis o timbre de uma poesia clássica, que tem como modelo Horácio, antigo poeta romano. Confere em Álvaro de Campos aquele poeta impressionado com o mundo tecnológico, anunciador de ventos velozes, por meio da máquina construtora dos tempos modernos, após a Primeira Guerra Mundial.  

Em Poetas revisitam Pessoa, lendo-se Agostinho da Silva, por exemplo, fica-se sabendo dessas reflexões de Alberto Caeiro: Ser só um elo/ eu ao que é tudo / mas que sem mim / seria mudo (p. 19). Sente-se em Alberto da Costa e Silva que o eterno é agora e em si mesmo morre (p. 21). Em Carlos Drummond de Andrade percebe-se que por mais que se busquem as identidades do poeta essas são difíceis de serem achadas. Afinal, quem é quem na maranha /de fingimento que mal finge / e vai tecendo com fios de astúcia / personas mil na vaga estrutura / de um frágil Pessoa? (p. 40). Nos desejos de saber por entre versos que tocam as cordas íntimas da angústia, solidão no mundo, Carlos Drummond de Andrade prefere ignorar esse enigma com seus diversos eus independentes, expostos, oblíquos em véu de garoa. Encontra-se ainda em Miguel Torga o poeta de Mensagem como o vidente filho universal / dum futuro-presente Portugal,/ outra vez trovador e argonauta (p. 88).

Assim temos uma antologia que diz da singularidade dos sentimentos de Fernando Pessoa e sua multiplicidade pensante de eus fictícios, criados como fingimento pelo poeta para conhecer-se e conhecer   o outro na leitura do mundo. Com os poetas Adolfo Casais Monteiro, Glauco Matoso, Mário Chamie, Murilo Mendes, Natália Correa, Sophia de Mello Breyner Andresen e Vasco Graça Moura, o poeta buscador sem pátria do “outro” que somos e nos habita é tocado de afinidades eletivas, apresentando-se de novo com a necessidade de multiplicar-se para sentir-se.

Para que fosse possível essa multiplicidade tão dele, sabe-se que construiu uma obra poética a partir de relação sensitiva e imediata com o ver, desenvolvida por atividade criadora maiúscula em que precisou refletir tudo, sustentar todo o peso terrestre através de seus males e mistérios. Entre a ilusão do ver e da lúcida consciência do saber, nesse conflito diante do mundo, fez-se um dos maiores fingidores de gente que já apareceu na existência através dos sinais marcantes e simbólicos da poesia. De maneira genial. Foi urdida uma idealização da realidade multifacetada para alcançar o sonho composto de humanidade tão dele, tecida, nas profundezas da alma e labirintos do cérebro, com temas vários questionadores da existência.

          O conhecimento e a compreensão de poetas portugueses e brasileiros nessa antologia para homenagear Fernando Pessoa expressam as mais diversas realidades e situações de um poeta incomum com o seu caso heteronímico. Limita-se o elogio a uma convivência de pensamento nos círculos da boa poesia, de argumentos cúmplices relacionados com o voo altíssimo de sentimento do belo na poesia da vida, retomado agora sob uma ótica própria, bem pessoal.

         Trata-se de antologia que, nas reflexões, lembranças, sonhos, labirintos, amores e dores, resulta em testemunho importante desse poeta que até hoje desafia a crítica, apaixona intelectuais e leitores.

          Ele, o genial poeta português, que com Alberto Caeiro confessou:

        

       Não tenho ambições nem desejos.

       Ser poeta não é uma ambição minha.

       É a minha maneira de estar sozinho.

 

 

·       In “Encontros com Fernando Pessoa”, do livro Kafka, Faulkner, Borges e Outras Solidões Imaginadas”, Cyro de Mattos, EDUEM – Editora da Universidade Estadual de Maringá, Paraná, no prelo. 

Poetas revisitam Pessoa, antologia de poetas portugueses e brasileiros,        organização João Alves das Neves, Universitária Editora, Lisboa, 2003.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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