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sexta-feira, 29 de novembro de 2024

 

                   Livros em espanhol de autor grapiúna

                  Vão ser estudados na UESC em 2025               

A professora doutora Raquel da Silva Ortega, da Universidade Estadual de Santa Cruz, comunicou ao escritor Cyro de Mattos que no próximo semestre acadêmico (de abril a julho de 2025) vai estudar seu livro "Infancia con animal y pesadilla (y otras historias)" com os seus alunos da disciplina Língua Espanhola VII, ao mesmo tempo que convida o autor grapiúna  para participar de uma roda de conversa sobre os seus  livros publicados em espanhol.  

 

Os livros de Cyro de Mattos publicados em espanhol são estes: Donde Estoy y Soy, bilíngue, tradução de Alfredo Pérez Alencart, Guitarra de Salamanca, bilíngue, tradução de Raquel da Silva Ortega, Navidad de los niños negros, em seis idiomas, tradução para o espanhol por Meritxell Marsal Hernando, e Historias Brasileñas, em preparo de edição pela Casa das Americas de Cuba, na importante Coleção La Honda. Além disso, vários poemas do autor grapiúna estão incluídos em antologias publicadas na Espanha onde também são divulgados pela TV  Salamanca no programa “Crear en Salamanca”.  

 

 Ressaltando que era uma honra para ele,  Cyro confirmou sua presença com os alunos na conversa decorrente dos estudos de seus livros em espanhol na UESC. Sobre este assunto a doutora Raquel observou:  

“Acredito que um momento de conversa sobre as suas publicações em espanhol e a participação em premiações internacionais - principalmente o Casa de Las Américas, de Cuba - será muito significativo para os alunos.” 

 

domingo, 24 de novembro de 2024

 

                      O Cego Marujo

                          Continho de Cyro de Mattos

 

               Na minha infância conheci criaturas interessantes que, na maneira de ser de cada uma delas,  davam cores e sons à cidade. Faziam parte do espetáculo da vida onde  quer que se apresentassem.  O cego Marujo era uma delas. Fazia ponto com a sua viola inseparável no estacionamento  de ônibus, que ficava no centro da cidade, atrás do prédio do Instituto de Cacau da Bahia, perto do Ginásio Divina Providência. 

         As marinetes, assim chamados os ônibus de cadeira dura daquela época,  chegavam e saíam daquele local  movimentado com  gente próspera e modesta. Ali,  os carregadores entregavam  os embrulhos grandes pelas janelas aos passageiros que  retornavam  a alguma cidade circunvizinha. Não importava o tempo, chuvoso ou de estio, lá estava o cego Marujo dedilhando a viola ao peito, a cuia ao lado.

         Ficava no passeio, embaixo da marquise, junto à entrada  para os guichês onde os passageiros compravam a passagem.  Antes que o ônibus partisse,  passageiros gostavam de ouvir o cego Marujo dedilhando a viola, que gemia ao peito. A cuida ia se enchendo de cédulas de dinheiro e  moedas na medida que ele ia tirando  suas cantigas, dizendo de coisas alegres e tristes, das ocorrências rotineiras que serviam de alimento à memória da cidade.

     .  Desfiava na viola a história que falasse de algum assunto  bastante comentado na cidade, como o da mulher  que foi esfaqueada pelo marido ciumento quando o casal atravessava a Ponte  Velha.  O marido acusava de estar sendo traído pela mulher com o vizinho.  A pobre coitada só fazia cuidar dos  afazeres da casa e fazer a comida gostosa para o marido ciumento. No meio da discussão acirrada, o marido golpeou a infeliz com várias facadas. Melado de sangue,  sem saber o que fazer depois da cena alucinada,   o marido ciumento  jogou da ponte o corpo da mulher no rio e saiu disparado rumo ao centro da cidade,  gritando que era um homem desgraçado.

      Outra vez o cego Marujo desfiou a cantiga da mulher que pariu no meio da Ponte Velha. Teve sorte. Deu à luz com a ajuda de duas mulheres idosas,  que cedo  iam fazendo a travessia na ponte.  Pariu um menino graúdo. Não deu um gemido durante o parto, não chorou, , não  fez cara feia.  Levantou-se com a ajuda das duas mulheres  que fizeram o parto. Saiu andando como se nada de mais tivesse acontecido, o menino nos braços, no rosto alegre o sorriso gordo.   

            Se o cego Marujo não enxergava, os olhos estavam submersos nas sombras,  como era que conseguia gravar aquelas histórias,  que pareciam  publicadas nos  cordéis escritos pelos  trovadores da cidade?  Comentava-se que o seu guia, um menino negro, esperto,  era quem lia as histórias de cordel  para ele no barraco onde moravam no bairro da Conceição. Ele fazia a música e encaixava a letra no  cordel  cujo conteúdo  mais o marcava. Mas também improvisava com  cantigas baseadas em histórias que ele mesmo inventava.

           Gostava de fazer o  público sorrir quando estava  aglomerado  diante dele. Certa vez, ouvi o cego Marujo  falar do tempo que era jovem, enxergava até agulha na areia, era pescador que saía cedo  para pegar o peixe  nos longes do mares bravios.

 

          O barco parecia brinquedo

          Nas mãos da onda gigante,

          Que assombrava a tripulação,  

         Só Marujo não tinha medo

         Quanto maior  fosse o perigo

         Causando enorme aflição..

 

       Não viesse pescar comigo    

       Nos mares longes  de Ilhéus,

      Homem que fosse frouxo,

     Que goste de sombra fresca,   

     Dormir gostoso na cama,

    Comer mulher de bunda gorda.   

domingo, 10 de novembro de 2024

 

                   Nosso Herói Jipe e Maria Camisão  

                                 Por Cyro de Mattos

 

                 Jipe não era apenas mais um doido manso com suas esquisitices que habitou minha infância cheia de sentimentos e graça. Era o mais querido por gente grande e pequena. Hélio Pólvora, nascido em Itabuna, ficcionista dos melhores da moderna literatura brasileira, dedicou-lhe o conto “No Peito o Motor”, que faz parte do livro Estranhos e Assustados, publicado pela editora Francisco Alves, Rio, 1977. Teve várias edições, deu ao autor o Prêmio Nacional da Fundação Castro Maia.

                 Depois do conto primoroso do conterrâneo Hélio, tive a ousadia de escrever um texto de ficção breve sobre nosso herói do trânsito, que de repente se achara que era de corpo e alma um jipe. O título do meu texto é “Um Jipe nas Nuvens”. Faz parte do livro Nada Era Melhor, da Editus, 2017, é uma reunião de contos curtos ou romancinho da infância, se quiserem. Jipe aparece no meu romance Eterno Amanhecer, ainda inédito, com mais estaque.

            Os meninos de meu tempo consideravam os doidos mansos como uma gente indefesa, ingênua, engraçada, sofrida, invenção do destino. Tanta consideração tínhamos por eles, que meu livro Zurububuruna, Editora Batel, Rio, 2024, poesia satírica em formato de cordel, sobre uma gente que habita com suas vilanias uma localidade imaginária, é dedicado aos doidos mansos de minha terra, claro que na homenagem não podia faltar nosso famoso Jipe.

         Eis a dedicatória no meu livro Zurububuruna:          

                                    

                                      Aos doidos mansos de minha terra, que não fazem mal a uma mosca.                                                        

                                     Ingênuos, indefesos, perseguidos pelo fado. Incansáveis intérpretes

                                     da vida diária, riso do trânsito. Mula-Manca, Maria Camisão, Ciro Mergu-

                                    lhador, o tal Jipe falado. Zeles Carnavalesco, mais Chiranha, mais Paturi,

                                    meio azoado, entre outros, dedico com muito gosto esses versos de pé

                                   quebrado.

                       

       Maria Camisão vestia uma camisa folgada, mangas compridas, de tão grande batia nos joelhos. Ela era de estatura baixa, os cabelos sempre assanhados, a boca desdentada.  Alguns diziam que guardara como lembrança meia dúzia de camisas do seu homem, um preto alto e forte. Vivia do ganho da roupa que lavava para a família abastada. Nas horas de crise aparecia na avenida do Cinquentenário. Revoltava-se, xingava a Deus e o mundo. Comentava-se que ela havia ficado adoidada depois que o marido amanheceu enforcado na cadeia, dizem que a mando do delegado Nero, que armara para ele uma cilada. O delegado mandou que os dois soldados tomassem as caças moqueadas e prendessem na feira o homem chamado Barba Preta.  Não demorou, não se sabe como, o delegado passou a ser o dono da rocinha de cacau e cereais, que o negro Barba Preta havia plantado nas Salteadas.

Escrever sobre esses tipos curiosos de minha terra, convenhamos, é atender com prazer no tempo o aceno das distâncias. O aceno dos dias com sua graça e lamento. Eles preenchiam a minha infância como um episódio relevante da vida, sem que nada me custasse.