Nosso Herói Jipe e Maria Camisão
Por Cyro de
Mattos
Jipe não era apenas mais um
doido manso com suas esquisitices que habitou minha infância cheia de
sentimentos e graça. Era o mais querido por gente grande e pequena. Hélio
Pólvora, nascido em Itabuna, ficcionista dos melhores da moderna literatura
brasileira, dedicou-lhe o conto “No Peito o Motor”, que faz parte do livro Estranhos
e Assustados, publicado pela editora Francisco Alves, Rio, 1977. Teve
várias edições, deu ao autor o Prêmio Nacional da Fundação Castro Maia.
Depois do conto primoroso do conterrâneo
Hélio, tive a ousadia de escrever um texto de ficção breve sobre nosso herói do
trânsito, que de repente se achara que era de corpo e alma um jipe. O título do
meu texto é “Um Jipe nas Nuvens”. Faz parte do livro Nada Era Melhor, da
Editus, 2017, é uma reunião de contos curtos ou romancinho da infância, se
quiserem. Jipe aparece no meu romance Eterno Amanhecer, ainda inédito,
com mais estaque.
Os meninos de meu tempo consideravam os doidos mansos como uma gente
indefesa, ingênua, engraçada, sofrida, invenção do destino. Tanta consideração tínhamos
por eles, que meu livro Zurububuruna, Editora Batel, Rio, 2024, poesia
satírica em formato de cordel, sobre uma gente que habita com suas vilanias uma
localidade imaginária, é dedicado aos doidos mansos de minha terra, claro que
na homenagem não podia faltar nosso famoso Jipe.
Eis a dedicatória no meu livro Zurububuruna:
Aos doidos mansos de minha terra, que não fazem mal a uma
mosca.
Ingênuos, indefesos,
perseguidos pelo fado. Incansáveis intérpretes
da vida
diária, riso do trânsito. Mula-Manca, Maria Camisão, Ciro Mergu-
lhador, o
tal Jipe falado. Zeles Carnavalesco, mais Chiranha, mais Paturi,
meio
azoado, entre outros, dedico com muito gosto esses versos de pé
quebrado.
Maria Camisão vestia uma
camisa folgada, mangas compridas, de tão grande batia nos joelhos. Ela era de
estatura baixa, os cabelos sempre assanhados, a boca desdentada. Alguns diziam que guardara como lembrança
meia dúzia de camisas do seu homem, um preto alto e forte. Vivia do ganho da
roupa que lavava para a família abastada. Nas horas de crise aparecia na
avenida do Cinquentenário. Revoltava-se, xingava a Deus e o mundo. Comentava-se
que ela havia ficado adoidada depois que o marido amanheceu enforcado na
cadeia, dizem que a mando do delegado Nero, que armara para ele uma cilada. O
delegado mandou que os dois soldados tomassem as caças moqueadas e prendessem
na feira o homem chamado Barba Preta.
Não demorou, não se sabe como, o delegado passou a ser o dono da rocinha
de cacau e cereais, que o negro Barba Preta havia plantado nas Salteadas.
Escrever sobre esses tipos curiosos de minha
terra, convenhamos, é atender com prazer no tempo o aceno das distâncias. O
aceno dos dias com sua graça e lamento. Eles preenchiam a minha infância como
um episódio relevante da vida, sem que nada me custasse.
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