O Cego Marujo
Na minha infância conheci criaturas
interessantes que, na maneira de ser de cada uma delas, davam cores e sons à cidade. Faziam parte do espetáculo
da vida onde quer que se apresentassem. O cego Marujo era uma delas. Fazia ponto com a
sua viola inseparável no estacionamento de ônibus, que ficava no centro da cidade,
atrás do prédio do Instituto de Cacau da Bahia, perto do Ginásio Divina Providência.
As marinetes, assim chamados os ônibus
de cadeira dura daquela época, chegavam
e saíam daquele local movimentado com gente próspera e modesta. Ali, os carregadores entregavam os embrulhos grandes pelas janelas aos
passageiros que retornavam a alguma cidade circunvizinha. Não importava
o tempo, chuvoso ou de estio, lá estava o cego Marujo dedilhando a viola ao
peito, a cuia ao lado.
Ficava no passeio, embaixo da
marquise, junto à entrada para os
guichês onde os passageiros compravam a passagem. Antes que o ônibus partisse, passageiros gostavam de ouvir o cego Marujo
dedilhando a viola, que gemia ao peito. A cuida ia se enchendo de cédulas de
dinheiro e moedas na medida que ele ia
tirando suas cantigas, dizendo de coisas
alegres e tristes, das ocorrências rotineiras que serviam de alimento à memória
da cidade.
. Desfiava
na viola a história que falasse de algum assunto bastante comentado na cidade, como o da
mulher que foi esfaqueada pelo marido
ciumento quando o casal atravessava a Ponte
Velha. O marido acusava de estar
sendo traído pela mulher com o vizinho.
A pobre coitada só fazia cuidar dos
afazeres da casa e fazer a comida gostosa para o marido ciumento. No
meio da discussão acirrada, o marido golpeou a infeliz com várias facadas.
Melado de sangue, sem saber o que fazer
depois da cena alucinada, o marido
ciumento jogou da ponte o corpo da
mulher no rio e saiu disparado rumo ao centro da cidade, gritando que era um homem desgraçado.
Outra vez o cego Marujo desfiou a cantiga da
mulher que pariu no meio da Ponte Velha. Teve sorte. Deu à luz com a ajuda de
duas mulheres idosas, que cedo iam fazendo a travessia na ponte. Pariu um menino graúdo. Não deu um gemido
durante o parto, não chorou, , não fez
cara feia. Levantou-se com a ajuda das
duas mulheres que fizeram o parto. Saiu
andando como se nada de mais tivesse acontecido, o menino nos braços, no rosto
alegre o sorriso gordo.
Se o cego Marujo não enxergava, os olhos
estavam submersos nas sombras, como era
que conseguia gravar aquelas histórias,
que pareciam publicadas nos cordéis escritos pelos trovadores da cidade? Comentava-se que o seu guia, um menino negro, esperto,
era quem lia as histórias de cordel para ele no barraco onde moravam no bairro da
Conceição. Ele fazia a música e encaixava a letra no cordel
cujo conteúdo mais o marcava. Mas
também improvisava com cantigas baseadas
em histórias que ele mesmo inventava.
Gostava de fazer o público sorrir quando estava aglomerado diante dele. Certa vez, ouvi o cego Marujo falar do tempo que era jovem, enxergava até
agulha na areia, era pescador que saía cedo para pegar o peixe nos longes do mares bravios.
O barco parecia brinquedo
Nas mãos da onda gigante,
Que assombrava a tripulação,
Só Marujo não tinha medo
Quanto maior fosse o perigo
Causando enorme aflição..
Não viesse pescar comigo
Nos mares longes de Ilhéus,
Homem que fosse frouxo,
Que
goste de sombra fresca,
Dormir gostoso na cama,
Comer mulher de bunda gorda.
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