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terça-feira, 30 de setembro de 2025

 

Romance O Barulho no Fim do Mundo

Cyro de Mattos

 

O romance O Barulho no Fim do Mundo pode ser lido pelo leitor crítico conhecedor de problemas estéticos e também pelo curioso que queira fruir de uma ficção produzida com as fantasias simuladoras dos destinos humanos, pulsando com suas vozes solitárias e conflitos que possibilitam voos numa paisagem surreal.

         É ficção não convencional, que inova por sua linguagem de ritmo delirante, na sua arquitetura inteligente ultrapassa o verismo da realidade exterior. Faz uma desmontagem do romance com bases no psicologismo ou dramas calcados nos episódios extraordinários, com sua cronologia linear do tempo movido pelos personagens.  Trata-se de prosa de ficção de autora ilusionista, que se mostra na fatura do texto ilógico com uma força arrebatadora, fazendo com que a arte da palavra subverta a ordem dos seres e coisas postos na existência para que sejam capturados no seu curso constante de movimentos diversos, ritmado num ilogismo de vozes, que não são nossas.   

        Como nos contos mágicos de O Cavalo Cantor, a inteligência cantante de Denise Emmer assume aqui a narrativa que produz seres e coisas em transformações, inventa personagens que moram em complexas situações, associadas ao sonho com suas  verdades que doem.  Vivem como portadores de solidões, imaginam-se nos extremos de suas realidades desesperadas e desesperadoras. Apresentam-se com mirabolantes fugas e transtornos perversos, irrompem com investidas instintivas como formas de agir sob opressão,  embora alguns emitam vislumbres da inocência como se fosse o enleio que se prova no aconchego e na distração. 

    Criação verbalizada no texto de planos discursivos surpreendentes, encontramos nesse romance de textura moderna a personalização de uma casa com duzentos anos, a abrigar gerações de infelizes, corruptos e ladrões. Embora de concreta edificação, tem pensamento e alma, visões com a piedade. Narra os acontecimentos vividos entre os personagens com suas solidões arrastadas entre voos e medos, tentativas de uma menina para fugir do barulho opressivo inventado pelo homem de apetência machista no fim do mundo, um mensageiro de inconcebível absurdo, irascível conduta através de desejos destrutivos, que têm como alvo um coração inocente sustentado por batimentos frágeis.       

     Há nessa ficção instigante o homem dominador. A mulher avó, gasta pelo uso do parceiro. Amiudinha é coxa, rejeitada por ter nascido fêmea, serve assim para os trabalhos caseiros e sórdidos. O cão Lanterna, achado no céu, torna-se o guardião de Amiudinha contra o homem atroz. A Menina Céu entra em cena com suas inquietações ante a obsessiva fixação do homem ávido para corromper uma alma feita de ingenuidades. O tuberculoso, que respirava com a ajuda de um passarinho, deixa impregnado tudo de bactérias antes de partir para as terras do nunca. Gentes mirabolantes de um circo surge com suas fantasias e sons e cores e riquezas para comover nas terras longe.

         É uma casa de construção sólida, dotada de enleios embaraçantes, de um coração que pulsa em algum tesouro escondido. Personagens de conteúdo humano divergente do padrão normal ou na condição de coisas com alma transitam nesse romance formado de eventos com particularidades que nos colocam diante de situações curiosas, insólitas, com aterrissagens complexas da razão nos abismos. Pleno de invenções incomuns descortina uma paisagem solitária com visceral integração com o surreal.   

     É preciso ler com calma o texto desse romance com sentidos absurdos do viver nas zonas do imaginário, sem romantismo bobo nem realismo vulgar, que não instauram uma estrutura nova para transmitir a existência com beleza.

 

* Denise Emmer, O Barulho no Fim do Mundo, romance, Editora Bertrand Brasil, São Paulo, 2023.

 

 

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

 

Lembrando o Irmão

Cyro de Mattos

 

José Orlando foi o único irmão que tive por parte de meus pais Augusto José de Mattos e Josefina Pereira de Mattos. Era o mais velho. Protegia-me dos meninos de tamanho maior do que o meu, que quisessem me maltratar em qualquer brincadeira. Inspirou-me a ser torcedor do Vasco da Gama, no tempo em que o Expressinho da Vitória era um timaço, deu oito jogadores para a seleção brasileira de 1950.

         Foi aprovado no vestibular da Escola Baiana de Medicina de Salvador, seis anos depois era diplomado como médico por aquela instituição. Fez residência médica no Hospital Santa Isabel durante dois anos para aprimorar o exercício da profissão como cirurgião e na especialização de urologia. Com armas e bagagens suficientes regressou à terra natal para exercer a profissão de médico. Tornou-se em pouco tempo um cirurgião de mão cheia, operava muito, diariamente, assim aliviou e salvou inúmeras vidas. 

             Uma geração valorosa de médicos daquela época, anos de 1963, elevou o patamar da medicina local em excelentes níveis. Essa geração singular de médicos era constituída de excelentes profissionais, como Mário Peixoto, Manoel dos Passos Galvão, Raimundo Freire, John Leahy, Amilton Gomes, Ubaldo Dantas, Antônio Vieira e outros. O jovem médico Orlando Mattos foi um dos destaques dessa geração de homens e mulheres de branco, exercendo por quase quarenta anos a medicina. Nessa época foi diretor do corpo médico do Hospital da Santa Casa.  

          O irmão tinha pendores artísticos.  Pintava e desenhava. Escrevia poemas, três de sua autoria participam da antologia Poesia Moderna da Região do Cacau (1977), organizada por Telmo Padilha. Entre suas leituras preferidas estavam livros de Kafka, Augusto dos Anjos, Malba Tahan, Emílio Mira e Lopez, Jorge Amado e Fritz Kahn.  Foi o idealizador da Sociedade Itabunense de Cultura, entidade criada para promover salões de arte plásticas, saraus literários e musicais. A SIC realizou mensalmente eventos literários e de música clássica no auditório do edifício Helenilson Chaves, na avenida Beira-Rio. Revelou, nos salões de artes que promoveu, artistas plásticos de expressão e qualidades, como Renart, Alceu Pólvora, Valuilzo e Valdirene Borges, que deram em pouco tempo voos altos no exercício da vocação.  

          Foi político para satisfazer o desejo de nosso pai. Não me parece que foi um passo certo em sua vida. Acima de tudo, ele nasceu para ser médico. Nosso pai queria que o filho mais novo, formado em advocacia, fosse também um político partidário e alcançasse o posto de prefeito local. Não conseguindo isso, assediou o filho mais velho para satisfazer o seu desejo. E o irmão cedeu.

        Quando se candidatou a prefeito de Itabuna, ficou em terceiro lugar na votação geral dos cinco candidatos. Em primeiro foi o doutor Amorim, em   segundo veio o populista Fernando Gomes.  A legenda do MDB teve mais votos do que a da Arena. Fernando Gomes, por ser filiado à primeira, fora eleito prefeito graças ao reforço dos votos que recebera de nosso irmão.  Como gratidão, ao invés de nomeá-lo para a Secretaria de Saúde, já que era médico dos bons, inventou uma Secretaria de Turismo e a destinou para quem lhe deu os votos necessários para que se elegesse prefeito. Isso não soou bem. Coisas do amigo da onça. Não me surpreendi com a atitude do novo prefeito, sempre soube que o ser humano na rotina da vida gosta de cometer a ingratidão, a traição e a difamação.

             Como secretário de Turismo, fortaleceu a festa da Lavagem do Beco do Fuxico, foi um dos fundadores do bloco carnavalesco Casados I...responsáveis, reanimou o carnaval de rua, estagnado há anos, com a criação do Carnacacau.  Estava de bem com a vida quando apareceu a vassoura de bruxa e devastou suas três fazendas de cacau com produção mediana. Veio também a doença cardíaca, que aos poucos foi minando as suas forças, impedindo-o de exercer a medicina.  Recolhido à vida rural, findou seus últimos anos de vida na fazenda Bela Vista.

      Poucos sabem que ele foi um dos fundadores do Hospital São Lucas. Casado com a professora Celeste Cotrim, pai de três filhos:  Catarina, Orlando Filho e Lorena, todos graduados em universidade. Um pai carinhoso, marido dedicado à esposa e ao lar, cidadão sério e prestativo.

        Por favor, não falem mal de meu irmão, divulgando inverdades, fere à família, essa conduta do mal só serve para enfeiar a vida. Sua alma precisa de repouso e paz na casa de Deus, como todos nós quando formos para o outro lado de lá.

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

 

O Mar na Rua Chile Conquista

Prêmio Sabiá de Crônica Junior

da Revista da Crônica RUBEM

 

O livro O Mar na Rua Chile e Outras Crônicas foi eleito vencedor do Prêmio Sabiá Junior de 1999, promovido pela Revista da Crônica RUBEM, criada em outubro de 1991 para homenagear o cronista Rubem Braga. O livro foi finalista do Jabuti no ano 2000, o único de crônicas concorrendo com livros de contos de escritores brasileiros importantes. O Mar na Rua Chile teve sua primeira edição pela EDITUS, editora da Universidade Estadual de Santa Cruz, esgotada há 25 anos. Uma segunda edição vai ser realizada breve pela Editora da Assembleia Legislativa do Estado da Bahia - ALBA.

 A notícia de que O Mar na Rua Chile foi o escolhido como vencedor do Prêmio Sabiá de Crônica Junior, o melhor do ano por autor estreante no gênero, em 1999, foi anunciada ao autor do livro no dia 14 deste mês pelos escritores e cronistas Henrique Fendrich e Anthony Almeida, editores da Revista da Crônica RUBEM. Vejam abaixo:

 

“Prezado Cyro de Mattos,

É com grande alegria que anunciamos que o seu livro O mar na Rua Chile foi eleito vencedor do Prêmio Sabiá de Crônica Júnior de 1999.

O Prêmio Sabiá de Crônica Júnior é uma iniciativa simbólica da Revista Rubem, criada para destacar a cada ano o melhor livro de um cronista estreante. Sua primeira edição oficial acontece em 2025. Entretanto, decidimos também avaliar retrospectivamente quais teriam sido os vencedores em anos anteriores, desde 1910, e compor assim uma tradição literária que reconhece e celebra grandes vozes da crônica brasileira.

Dentro dessa retrospectiva, sua obra se destacou de forma especial, reafirmando a força de sua escrita sensível e a relevância de sua contribuição para a literatura nacional.

Receba, portanto, nossos parabéns e nosso reconhecimento por ter oferecido à crônica brasileira um livro de estreia tão marcante.
 

Atenciosamente,
Henrique Fendrich e Anthony Almeida
Editores – Revista Rubem”

 

Entre os vencedores do Prêmio Sabiá de Crônica Junior, desde 1910, compondo assim uma tradição de  expressivo nível no gênero, segundo avaliação da Revista Rubem, estão Humberto de Campos, Olegário Mariano, Álvaro Moreira, José do Patrocínio Filho,  Antônio Alcântara Machado, Ribeiro Couto, Dinah Silveira de Queirós, Genolino Amado, Carlos Heitor Cony, Artur da Távola, Armando Nogueira, Sérgio Porto, Paulo Mendes Campos, Luís Veríssimo, Maria Julieta Drummond de Andrade,  Ruy Guerra, Aldyr Blanc, e os baianos Luís Henrique Dias Tavares, Carlos Eduardo Novais, Carlos Coquejo e Luís Carlos Maciel. Os cronistas Rubem Braga, Fernando Sabino, Rachel de Queiroz, Luís Veríssimo e Carlos Drummond de Andrade foram vencedores do Prêmio Sabiá de Crônica várias vezes na categoria para autor de vários livros de crônica.

Prezado Cyro de Mattos,

É com grande alegria que anunciamos que o seu livro O mar na Rua Chile foi eleito vencedor do Prêmio Sabiá de Crônica Júnior de 1999.

O Prêmio Sabiá de Crônica Júnior é uma iniciativa simbólica da Revista Rubem, criada para destacar a cada ano o melhor livro de um cronista estreante. Sua primeira edição oficial acontece em 2025. Entretanto, decidimos também imaginar retrospectivamente quais teriam sido os vencedores em anos anteriores, desde 1910, e compor assim uma tradição literária que reconhece e celebra grandes vozes da crônica brasileira.

Dentro dessa retrospectiva, sua obra se destacou de forma especial, reafirmando a força de sua escrita sensível e a relevância de sua contribuição para a literatura nacional.

Receba, portanto, nossos parabéns e nosso reconhecimento por ter oferecido à crônica brasileira um livro de estreia tão marcante.
 

Atenciosamente,
Henrique Fendrich e Anthony Almeida
Editores – Revista Rubem

terça-feira, 9 de setembro de 2025

 

                             O palhaço foi embora

                              Cyro de Mattos

                                               

 

 

Recebo do Conselho de Cultura Municipal a notícia de pesar em que se lamenta profundamente o falecimento de Raimundo Maia, agente de cultura que atuou no cenário local como ator, humorista, cantor, compositor, músico, instrumentista e artesão. E sobretudo foi aquele palhaço que pergunta o que ele é, a garotada responde é ladrão de mulher.

Despontou, para a alegria da garotada e dos adultos, como o Palhaço Cocada, realizando nesse personagem versátil os seus shows, programas de TV, rádio ou como garoto propaganda de vários empreendimentos empresariais. Tinha o propósito de levar o riso no que de melhor um artista nato pode fazer pela humanidade: a felicidade. Assim entrou para o rol dos grandes nomes de artistas do interior que contribuíram com o seu trabalho para o enriquecimento da cultura e do bem estar com a vida. 

          Que Deus receba o seu espírito em luz para o repouso dos simples e justos, ao tempo que dê força, resignação e compreensão aos amigos e familiares para que esse momento de profunda tristeza dos adeptos do riso seja transformado em memória saudosa, que faz bem como a doçura da fruta madura. E assim seja sentido esse fazedor de arte e cultura populares como reflexo de um ser humano que dedicou a sua vida para tornar melhor o dia de cada um. 

Comento a notícia de pesar considerando que o Palhaço Cocada foi um poeta do riso no trânsito da vida, um artista múltiplo da cultura, um homem simples, de bom coração. Sem ele, a vida fica privada de quem fazia do mundo uma criança com riso e lambança. Certamente vai fazer falta entre nós e nos céus dos céus será abrigado pelos anjos, que terão a oportunidade de se empanturrar com o riso quando ouvirem dele uma boa piada ou assistirem incrédulos uma boa presepada. 

Ele sempre soube que o mundo é feito com o divertimento vindo da brincadeira de bom gosto, no riso seguidas vezes provocado com as vozes da piada ou da cena atrapalhada.  E assim foi que pode oferecer a graça sem querer nada em troca, a não ser o bem estar da vida, temperada com a ternura, a esperança e o amor, nossos sentimentos do bem fortes.

Era assim o palhaço Cocada, cheio de manhas e artimanhas. Com ele, o espetáculo tinha uma boca risonha, de ponta a ponta. Tinha às vezes a cara de mau, olho e nariz de limão, muitas vezes a criançada na mão.