Romance O Barulho no Fim do Mundo
Cyro de Mattos
O romance O Barulho no Fim do Mundo pode ser lido pelo leitor
crítico conhecedor de problemas estéticos e também pelo curioso que queira fruir
de uma ficção produzida com as fantasias simuladoras dos destinos humanos,
pulsando com suas vozes solitárias e conflitos que possibilitam voos numa
paisagem surreal.
É ficção não convencional, que inova
por sua linguagem de ritmo delirante, na sua arquitetura inteligente ultrapassa
o verismo da realidade exterior. Faz uma desmontagem do romance com bases no
psicologismo ou dramas calcados nos episódios extraordinários, com sua
cronologia linear do tempo movido pelos personagens. Trata-se de prosa de ficção de autora
ilusionista, que se mostra na fatura do texto ilógico com uma força
arrebatadora, fazendo com que a arte da palavra subverta a ordem dos seres e coisas
postos na existência para que sejam capturados no seu curso constante de
movimentos diversos, ritmado num ilogismo de vozes, que não são nossas.
Como nos contos mágicos de
O Cavalo Cantor, a
inteligência cantante de Denise Emmer assume aqui a narrativa que produz seres
e coisas em transformações, inventa personagens que moram em complexas
situações, associadas ao sonho com suas verdades que doem. Vivem como portadores de solidões,
imaginam-se nos extremos de suas realidades desesperadas e desesperadoras.
Apresentam-se com mirabolantes fugas e transtornos perversos, irrompem com investidas
instintivas como formas de agir sob opressão, embora alguns emitam vislumbres
da inocência como se fosse o enleio que se prova no
aconchego e na distração.
Criação verbalizada no texto de planos
discursivos surpreendentes, encontramos nesse romance de textura moderna a
personalização de uma casa com duzentos anos, a abrigar gerações de infelizes,
corruptos e ladrões. Embora de concreta edificação, tem pensamento e alma,
visões com a piedade. Narra os acontecimentos vividos entre os personagens com
suas solidões arrastadas entre voos e medos, tentativas de uma menina para
fugir do barulho opressivo inventado pelo homem de apetência machista no fim do
mundo, um mensageiro de inconcebível absurdo, irascível conduta através de
desejos destrutivos, que têm como alvo um coração inocente sustentado por
batimentos frágeis.
Há nessa ficção instigante o homem
dominador. A mulher avó, gasta pelo uso do parceiro. Amiudinha é coxa,
rejeitada por ter nascido fêmea, serve assim para os trabalhos caseiros e
sórdidos. O cão Lanterna, achado no céu, torna-se o guardião de Amiudinha
contra o homem atroz. A Menina Céu entra em cena com suas inquietações ante a
obsessiva fixação do homem ávido para corromper uma alma feita de ingenuidades.
O tuberculoso, que respirava com a ajuda de um passarinho, deixa impregnado
tudo de bactérias antes de partir para as terras do nunca. Gentes mirabolantes
de um circo surge com suas fantasias e sons e cores e riquezas para comover nas
terras longe.
É uma casa de construção sólida,
dotada de enleios embaraçantes, de um coração que pulsa em algum tesouro
escondido. Personagens de conteúdo humano divergente do padrão normal ou na
condição de coisas com alma transitam nesse romance formado de eventos com
particularidades que nos colocam diante de situações curiosas, insólitas, com
aterrissagens complexas da razão nos abismos. Pleno de invenções incomuns
descortina uma paisagem solitária com visceral integração com o surreal.
É preciso ler com calma o
texto desse romance com sentidos absurdos do viver nas zonas do imaginário, sem
romantismo bobo nem realismo vulgar, que não instauram uma estrutura nova para
transmitir a existência com beleza.
* Denise Emmer, O
Barulho no Fim do Mundo, romance, Editora Bertrand Brasil, São Paulo, 2023.
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