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domingo, 26 de outubro de 2025

 

       O vento e suas maneiras  

         Cyro de Mattos

 

        A mãe dizia:

       - Pra dentro menino! É vem o vento levado levando cisco!

      Quando feria o olho com um cisco, inflamava, causava aborrecimento.

        No verão abafado refrescava. Se fosse no tempo de veraneio, na cidade vizinha, de praias lindíssimas, tinha o gosto de sal. Rolava com as ondas, que rugiam como se fossem leões de jubas brancas e luminosas. Zangado batia, voltava, batia. Reinventava-se na areia como colares de espuma. Rendilhado murmurejava, cochichava com peixinhos minúsculos no raso.

         Ao largo fazia das vagas tirânicos vagões, incríveis vagalhões, tufão. Quebrava o mastro, afundava a embarcação. Mostrava-se indiferente aos gritos lancinantes dos náufragos pedindo por socorro. Era impiedoso, esbagaçava as ondas no rochedo. Tomava altura inimaginável.

         Mágico, mais ligeiro do que tudo em movimento veloz, o único que sem pernas ia até o fim do mundo, chegando primeiro. Esmurrava o rio na enchente, causando estragos nas casas ribeirinhas e na avenida principal onde estava instalado um comercinho ativo.  

      Travesso zuinchava na greta da porta e da janela. Interrompia o sono das pessoas quando dormiam na cidade pequena, após mais um dia de trabalho estafante, fazendo barulho nas telhas de alumínio no telhado.

      Salpicado de verdes e azuis rolava no mar, pra lá, pra cá. Dava uma sensação agradável quando soprava no campo com o gosto de terra molhada. Morno, gostava de fazer carícia no rosto da árvore frutífera, folhas como cílios pestanejavam. 

       Tocava uma música suave nas folhas da palmeira, farfalhava no quintal durante a primavera cheia de passarinhos saltitantes, voos e gorjeios.

.     No inverno esvoaçava toalhas de névoa pelas ruas vazias da cidade, penetrada de frieza, os ares gelatinosos, tendo aspecto fantasmal. Em trêmulos movimentos, seus espectros de névoa vagavam por todos os cantos. 

       Vento, ventania, vendaval. Levava tudo que encontrava pela frente. Derrubava árvore, poste, ponte. Mudava a casa de um lugar para outro. Emborcava o caminhão, rompia a ponte, fazia rachaduras nas paredes do prédio.    A lona do circo fora jogada longe, o sobrado desmoronou-se, ficou reduzido a escombros, não perdoou nem o nome do dono, Comendador Ataulfo Seabra, em grandes letras de bronze gravadas na fachada. Botou abaixo o muro que cercava o estádio de futebol, as torres de iluminação do campo ficaram aos pedaços.      

     Quando era leve, chegava de mansinho para soprar na florzinha da plantinha sozinha no brejo. Afagava, recebia de volta fragrâncias, retornava ao seu rumo incerto,  ninguém sabe onde começa nem termina.

      Assoviava no canavial, açoitava, chicoteava as folhas da cana, que se agachavam e subiam, ondulavam como num mar verdejante, agitado na terra preta do engenho.   

     No velório amolava sua lâmina com os mudos gemidos da mulher, inconformada com a perda irreparável do marido. Dava frio na barriga dos que estavam presentes na vigília do velório. A expressão do rosto coberto de sombra e tristeza. Os olhos assombrados no ambiente quieto, sem compreender o que estava acontecendo, atemorizados com a presença daquele vento, frio, sem cor, pousado no morto. Transtornava, incompreensível, desconcertava. 

       Era este o vento que metia mais medo, imóvel, surdo, cego, mudo, habitava severo no funeral das horas. 

 

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