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sexta-feira, 2 de junho de 2017




Contos Bem Exemplares

          Cyro de Mattos
         

Retorno em tarde sem Sol (2016) é o  décimo livro de ficção do escritor baiano Aramis Ribeiro Costa.  O volume reúne quinze narrativas  de desenvolvimento ficcional breve,  mas com larguras e profunduras no que o autor diz sobre  a condição humana com as suas dimensões trágicas, desencontros patéticos, desapontamentos nos quais não se vê caminhos para a solução de situações impregnadas de contradições  na vida diária.
Cada autor tem sua marca digital na massa do que foi escrito. Aramis Ribeiro Costa é desses contistas que envolvem o leitor com uma linguagem sedutora, que flui com espontaneidade e, na sua simplicidade encantatória,  vai dando prazer a quem lê. De trecho para  trecho a linguagem prende,  na exposição de cenas convincentes e movimentação dos personagens que interferem no momento oportuno. De conto para conto,  não é preciso fazer o intervalo para tomar fôlego e seguir na leitura, como ocorre no diálogo que o leitor crítico estabelece com o texto de uma  escrita complexa. Em sua construção formal, os contos de Aramis Ribeiro Costa sempre  operam a generosidade  de transmitir com espontaneidade a comoção final da escrita bem cadenciada, desenvolta, harmoniosa, na qual revela quase sempre as tristes notas de uma experiência humana.  
Mas não se trata apenas de um autor prazeroso nas suas criações, como se vê novamente nesses  quinze contos reunidos em Retorno de tarde sem sol.  Se o fetiche da linguagem nas formas novas de narrar uma história não o atrai, longe de estarmos diante de um autor pobre no uso da palavra e pueril no universo criativo da ideia. Tudo em Aramis Ribeiro Costa funciona nos modos estruturais de inventar uma historia, nada é inútil, do título à palavra, da linguagem  à ideia, do ritmo ao assunto, do personagem à circunstância inusitada. Nada é gratuito na enunciação do texto, que depois de enunciado faz pensar, às vezes chega a continuar  com  outra  história no pensamento do leitor. Isso é visto em “Cabaré”, quando podemos indagar qual seria a história verdadeira de Norma Morales, a rainha da noite,  aquela  em  que é vista nas suas exibições de bailarina que se despe,   de causar pena na cena nua e crua,  ou a que se oculta nos seus interiores, como dá a entender  quando, aos gritos, a personagem alega que estava sendo perseguida, algozes vão lhe matar,  e na fuga desesperada  encontra a morte  ao ser atropelada por um pequeno caminhão.      
O contista logra tirar bons efeitos do recurso de deixar no vazio uma história que poderá ser o desdobramento da que é exposta aos olhos do leitor,  acontecendo na realidade exterior, vivida  pelo personagem  em vários casos,  com os acordes  ásperos     de uma música chamada solidão. Essa técnica de embutir na história narrada  outra história, que fica por conta da imaginação do leitor, encontramos também em “Dona Amália”, uma mulher viúva e solteira, que só tem uma amiga íntima, a   Estelinha. O que acontecerá quando a sua empregada doméstica anunciar que vai deixar o emprego para se casar? O drama da situação adversa que irá provocar na viúva solitária, quando a notícia nada agradável for dada,  fica no vazio para que o leitor de novo volte a imaginar outra história.
Vida, morte, solidão,  os temas focados nesses contos  primorosos de Aramis Ribeiro Costa, reunidos agora no volume Retorno em tarde sem sol. A tragédia estampada nas tintas do horror está presente em “Partida”, conto que deixa entrever como viver é arriscado, vive-se sob um cerco perigoso, de imprevistos e cenas absurdas, que podem ser desfechadas no ímpeto inconcebível quando menos se espera. Em alguém, por exemplo,  que decidido a partir para sua cidade de origem, no interior, em busca de dias mais sossegados,  é assassinado naquele instante de despedida, pelo simples fato de gostar de tirar fotos e um indivíduo não gostar de estar sendo fotografado.
Dolorosa também é a nossa precária condição humana que se mostra no quadro em que o pai se sente apunhalado pelo filho quando soube que o mesmo havia dado um desfalque na firma do padrinho. “Sentia-se traído. De nada tinham valido as lições, os conselhos, o exemplo da própria honradez, de nada valera ter construído  um nome honesto e respeitado.”  Um mundo sólido feito de princípios e atitudes éticas, inabalável,  veio abaixo devido à vergonha, que  não tinha tamanho,  como nunca o pai havia sentido. O filho disse que ia embora, esperando que houvesse o milagre do perdão. Do lado de fora da casa, “o filho colocava as malas no seu carro quando ouviu o estampido”.
São contos exemplares esses reunidos em Retorno em tarde sem sol, não porque abracem uma ética em que o autor busque transmitir lições baseadas em ideias e princípios moralizantes, lições corretas de vida para que sejam impingidas ao leitor, no intuito de contribuir para a formação de padrões,  visões e leituras fundamentais da experiência humana. Não estão aqui enfeixados como exemplos para se ter consciência do bem e se afastar do mal, optar pelo correto no lugar do errado.  Esses contos são bem exemplares em razão de uma estética do comportamento humano sustentado pelo autor através da amostragem de instantes agudos da existência com os seus grandes conflitos. È sobre a condição humana circunstanciada pelas contradições da vida, com seus eventos inusitados, que esses contos demonstram, sem nunca forçar a nota,  o quanto a vida perturba na sua estupidez. Daí, como não poderia deixar de ser,  a presença da solidão em vários deles,  da morte, da incomunicabilidade, do trágico, do patético, das convenções estereotipadas para se comemorar uma data,  e outros momentos críticos que nos acompanham e esfacelam  no difícil gesto do viver. Todas essas falhas da vida estão presentes  nesses contos de fatura exemplar, tanto na concepção como na execução, na forma espontânea da linguagem,  no clima absurdo que geram cumplicidades que ferem  o diálogo estabelecido entre leitor e personagem, intensamente permeados  de tristeza e golpes duros, armados pelo ilógico da existência.  
Demonstram que a literatura é forma de aludir à vida como forma solidária, como ela sabe transmitir beleza e verdade  quando nos faz cúmplices da fraqueza que nós os  humanos protagonizamos na experiência de cada existência.  Ela tudo dá e nada toma, devolve a nós mesmos o que nos pertence, razão e emoção da  união geral  na constante canção do viver. 
Entre os excelentes  contos desse Retorno em tarde sem sol, dois chamaram-me mais  a atenção: “Dinamarca” e  “O Aniversário da Avó”. No primeiro,   o tema da insatisfação humana faz-se visível na comemoração de cem anos de um velho bem-sucedido, orgulho do bisneto, alvo de admiração de parentes e de muitos que estão na festa, esbanjando alegria, brindando uma data redonda, rara de ser alcançada, a não ser pela  proeza daquele homem, já decrépito, trazido ao salão numa cadeira de rodas, juntamente com a esposa, também idosa e numa cadeira de rodas.  Um homem ímpar,  que, juntando uma fortuna, tornara-se uma pessoa  importante.  “Um homem que vivera um século e construíra alguma coisa grande” e que naquele ambiente de entusiasmo só podia estar feliz.  Quando a repórter de televisão, insistindo na pergunta, procurou  saber se ele estava feliz, rodeado de tanta alegria, surpresa escutou um não, um grito de quem afirmava ser um homem incompleto porque não tinha ido à Dinamarca.  A desconcertante resposta,  em sonoro não,  mostrava o quanto a vida é curta e falha, incapaz de realizar tudo que desejamos, indiferente ao que pensamos e atuamos segue marcada de frustrações,   traumas constantes que consegue imprimir na rotina de cada um.
Em “O Aniversário da Avó”, narrativa para homenagear “Feliz Aniversário”, famoso conto de Clarice Lispector, incluído no livro Laços de família (1960),  revela o quanto um contista singular trata de assunto já desenvolvido por escritora maior, tornado clássico em nosso conto, sem que se faça  um imitador, um infrator indevido da imaginação do que veio  primeiro para ficar em texto  original sobre assunto projetado  de maneira pessoalíssima. Nessa variação de conto sobre a eterna velhice, a   ética do comportamento criativo de Aramis Ribeiro Costa salta à vista,  começando  na epígrafe que retira do conto de Clarice Lispector, É preciso que se saiba que a vida é curta. Que a vida é curta,  e coloca no seu,  antes de expor a sua leitura secreta em torno da infelicidade,  que se apresenta com as cores da  felicidade nas cenas formadas naquele dia especial  de aniversário.
Em “Feliz Aniversário”, de Clarice Lispector, ao invés de  uma comemoração prazerosa, nota-se  que não só Zilda, mas todos os parentes, os familiares estão apenas cumprindo tarefas, todos também estão sendo manipulados pelo dever. Em “O Aniversário da Avó”, de Aramis Ribeiro Costa, a solidão vem acompanhada na ausência de ternura por partes de filhos, que não comparecem, nem tampouco os filhos deles,   para abraçar a aniversariante na data em que completava oitenta anos. Como fere a atitude humana quando se faz necessário o afeto para que a vida acorde no coração  o encanto no lugar do desencanto.  É o que se afere nas entrelinhas desses dois contos magníficos, que mergulham fundo na relação complexa da solidão acompanhada, vivida em família. 
Em ambos os contos,  a vida é recortada em instantes perturbadores e brutais  do que somos em nossos relacionamentos, como é enganosa no que parece se mostrar à primeira vista. São dois contos que colocam à mostra os grandes conflitos do ser humano, explorando-se  com muita sutileza as regiões mais profundas e inexprimíveis da alma, aliando a   razão à  sensibilidade nos seus pontos mais graves,  por meio de uma linguagem visceralmente  poética em Clarice Lispector, cativante em Aramis Ribeiro Costa.  Ressalte-se que cada contista nas  histórias similares  tem a sua voz, seu acento, sua impressão, sua invenção que resulta da capacidade que tem a literatura de fixar as imensas proporções da  experiência humana.  Nesses dois casos, do micro no macro através do conto. 
A literatura opera desses milagres em que às  vezes nos deparamos com a ficção e a realidade entrelaçadas naquele ponto nodal em que a mentira, beleza da ilusão projetada com a palavra, não passa da verdade a pulsar sensibilidades provenientes dos nervos da vida concreta. Sensação que passamos quando da leitura dos contos bem exemplares enfeixados por Aramis Ribeiro Costa nesse  Retorno em tarde sem sol.


REFERÊNCIAS


COSTA, Aramis Ribeiro. Retorno em tarde sem sol, Editora Kalango, Simoes Filho, Bahia, 2016.

LISPECTOR, Clarice. Laços de família, contos, Editora Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1960.

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