Os
Cem Sonetos de Piligra
Inspirados
em Jorge Amado
Cyro de Mattos
O soneto é uma forma
fixa de poema com quatorze versos, dispostos em dois quartetos e dois
tercetos. O último verso é tido como
“chave de ouro”, devendo surpreender e
encantar com a sua revelação no
desfecho. Nessa condição de fechar o
soneto com chave de ouro, o último verso sustenta a
ideia conduzida nos anteriores.
A paternidade de sua
criação é atribuída a Pier della Vigna (1197-1249), poeta siciliano, embora a
primazia da invenção seja
atribuída a outros nomes, segundo os estudiosos. O soneto foi introduzido em Portugal pelo poeta Sá de Miranda, no século XVI. Atravessou anos
na península ibérica com a sua magia e poder.
O primeiro grande poeta a cultivar o soneto
foi Dante, mas coube a Petrarca dar-lhe forma e conteúdo, imprimindo-lhe uma fisionomia própria,
autônoma na estrutura modelar. Combatido
pelos vanguardistas, sua febre imperceptível
permanece até hoje, sendo
cultivado com fidelidade por poetas modernos,
com vistas a atingir o nível superior da alma, como resultado do micro que logra o máximo na criação expressiva do poema, que dessa
maneira, em breve espaço operacional da criatividade, sustenta o ser em estado súbito da
comoção.
Essa forma de
construção poética breve possui duas linhagens: a de Petrarca, composta de
estrofes com dois quartetos e dois
tercetos, e a inglesa, com três
quartetos e um dístico. A língua
portuguesa ganhou em beleza e modulações rítmicas, através do verso decassílabo usado no soneto,
considerado como o mais melodioso e
harmonioso. Mas não se pode esquecer que há uma variação silábica na confecção
dessa criatura minúscula, chegando ao
ponto de ser encontrada até mesmo com
um só verso na poesia modernista de
Cassiano Ricardo, que alia virtuosismo experimental à beleza.
Nascem poetas que se
tornam famosos com suas motivações expressas em poemas de fôlego, mas que não
deixam de cultivar o soneto. Lembremos de
Dante e Gôngora ontem, Pablo Neruda mais recente. Outros vates duram pouco tempo no mundo da
poesia, saindo de cena cedo com o timbre
peculiar de seu discurso, levando como
pontuação de sua obra os sonetos.
Na língua portuguesa, o
soneto tem sido cultivado por poetas que se tornaram referência
obrigatória na arte difícil e delicada
de armar a boa poesia, para celebrar a vida e a morte. Em Portugal são
exemplos: Camões, Bocage, Antero de
Quental e Florbela Espanca. No Brasil:
Cláudio Manoel da Costa, Gregório de Mattos,
Bilac, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, Jorge de Lima, Sosígenes Costa, Carlos Pena Filho, Vinicius
de Moraes e João Carlos Teixeira Gomes.
Em ensaio excelente, que antecede aos não menos excelentes sonetos
do livro O labirinto de Orfeu (2014),
o ensaísta e poeta João Carlos Teixeira
Gomes refere-se aos dois epítetos
“sonetoso” e “sonetífero”, criados contra os sonetistas. Registra uma série de expressões em desfavor
das andanças do rejeitado poema de quatorze versos: “refúgio da decadência”, “gaiola da
inspiração”, “bestialógico acadêmico”, “muleta da má poesia”, “cabresto da
criatividade”, “onanismo poético”, “barbitúrico para insônia”, “sucedâneo de
palavras cruzadas”, “museu do bolor formalista”,
“chavão de segunda ordem”, “formalismo
oco e vazio”, “museu de velharias passadistas” .
Não obstante o
comportamento contundente dos que desfazem de
imbatível criatura nanica, sua garra
permite que continue de pé, ínfimo caminhante do sol e da chuva nos seus modestos quatorze versos, buscando em sua peripécia métrica atingir o
ponto máximo do prazer na alma. Segue
indiferente às acusações e atropelos da legião de fanáticos, que não o aceitam, sob qualquer hipótese.
Teima em habitar com seus lampejos líricos a floresta dos poemas maiores, de
poetas célebres com suas criações
em versos longos, vasta quantidade de estrofes.
É dado a formar uma
sequência quando vários poemas são ligados entre si por um
tema, como se deu com os cento e
cinqüenta e quatro sonetos de Shakespeare. Outra de suas proezas quando escrito
em sequência é formar a coroa de sonetos, uma forma poética composta por 14 sonetos, que têm ligação
entre si por um tema. Os primeiros e
últimos versos são versos de um outro (décimo quinto) soneto, denominado
soneto-base, ou soneto-síntese.
A proeza verbal dessa coisinha
poética chegou agora ao Sul da Bahia através de A
odisséia de Jorge Amado (2015),
de Piligra. Trata-se da reunião de cem
sonetos, que contam as veredas de vida percorridas pelo grande romancista e
falam dos seus livros famosos.
Retratando episódios de uma vida com maiúscula, incursionando pelos livros do autor mais lido na língua
portuguesa, cheio de humanidade e linguagem sensual, Piligra procura fixar no encadeamento dos poemas, ao lado de sua
fugacidade e beleza, momentos verdadeiros da alma do homem generoso e consagrado romancista.
Incorpora na estrutura
da obra o ritmo de cordel, fácil de dizer,
fácil de ouvir, fácil de entender. Torna desenvolta a narrativa poética
de seu estro derramado, do qual aos borbotões versos são dotados de ênfase poética e terminações sonoras. Seus cem sonetos,
encadeados com incandescente
ternura, pulsam sentimentos e nervos no discurso de fôlego, que diz à vontade
do amor e dor, da alegria e tristeza,
do sonho navegado e ferimento do
perseguido, da linguagem com cheiro de povo
e pura emoção, enfim, do encantamento no coração ardoroso,
envolvido sempre por gestos
fraternos na aventura da vida.
O eu do poeta Piligra não está imune a essa mágica experiência do
soneto com seus modos líricos, que se
manifestam em ritmo febricitante,
impulsionando o relato na linguagem específica para dizer, intenso, do
mundo vivenciado pelo renomado escritor
Jorge Amado. E, mesmo que críticos
formalistas achem que o poemário que veicula os episódios e cenas de uma
biografia não tem muita validade, tal a fragilidade na composição mista de sua
estrutura, na qual o autor fantasia um discurso
informativo, que já encontrou antes
com o conteúdo pronto, resultando o objeto verbal da recriação da
realidade em um produto híbrido, que não é nem biografia, nem poesia
legítima; como também acontece na prosa com a biografia romanceada, cujo discurso procura fundamentar-se com motivações de um lastro
encontrado perfeito e acabado, não se pode deixar de considerar que A odisséia de Jorge Amado reveste-se de
uma base imaginativa que transcende do
texto, além do real circunstante.
Desgarra-se do produto híbrido literário, com seus clarões atinge o que em si mesmo reverbera, graças à competência e sensibilidade do
autor da novidade, de sua habilidade para retirar os fatos do real objetivo e transfigurá-los como um outro mundo,
trazido ao presente para junto dos nossos olhos.
Vejamos esse exemplo na
página 69:
Lua
vermelha, sangue bonito sobre a terra,
Negro
presságio se anuncia a toda gente,
Quem
busca glória e quer dinheiro, medo sente:
Jagunço
esperto o tiro certo jamais erra...
Vem
lá das “Terras do Sem Fim” cada semente
D’ouro
que mata, que maltrata e que desterra,
Na
noite escura o filho chora o pai que enterra:
O
coronel sabe da morte e ri contente...
Na
negra mata tudo é sombra, medo e dor,
Desejo
louco de abraçar toda a riqueza,
Cega
ambição no dedo frio do atirador,
Bala
sem alma produzindo a vil tristeza...
-
O velho Juca Badaró planta o terror
Entre
os “grileiros” que já vivem na pobreza...
Ou nesse outro
exemplo da página 97:
“Jardim
de Inverno” ganha forma e consistência,
A
dor do exílio toma conta do escritor,
Zélia
registra o tempo triste e a violência:
Estar
distante do País lhe causa dor...
O
mundo é visto pela voz da resistência
De
quem se mostra mais valente ou lutador;
A
velha Europa se transveste de aparência,
Mulher
da vida sem futuro promissor...
“Cantos
modernos de canhões surgem do nada;
A
terra treme, geme, sofre de agonia,
A
dor do mando sempre é coisa encomendada,
Uma outra guerra ganha espaço à luz dos dias...”
-
“Jardim de Inverno”, tradução desesperada,
Texto
que faz da dor sofrida, poesia...”
Os versos dos dois
sonetos referidos mostram como o poema
pode surgir da linguagem veemente, em
sintonia com a figuração fácil, e ser
capaz de fazer de tudo o acontecimento,
inovando na própria índole do soneto com um ritmo ágil , que fornece ao leitor os tons naturais para uma boa escuta e ao mesmo tempo um aprendizado útil sobre o
que lhe é transmitido. Não importa que
seus elementos de composição emanem de
unidade poética com o feitio híbrido,
minimizado pelos críticos e
teóricos formalistas. Explicam tais versos que foi sonhando e acreditando que o
poeta Piligra experimentou o soneto em vasto campo de celebração, impregnando-o de sentimentos e emoções,
sonoridades e sentidos, intuições e visibilidades, numa curiosa extração de eventos e
mensagens, motivada pelos gestos solidários de uma vida de
criatura rara.
O
poeta Piligra juntou assim os meios de diferentes composições
poéticas, mesclando a forma fixa do soneto, de espaço operacional
breve, com a manifestação rítmica do
cordel, sempre espontânea, agradável à escuta e leitura, no intuito de
evidenciar o trajeto notável do escritor
que deu voz aos excluídos, quis a vida com mãos nas mãos para que se
tornasse viável, fosse acesa com as chamas do amor e repercutisse perante
a existência com as vozes da
liberdade. E o poeta, que fundou
a odisséia protagonizada pelo Ulisses nascido nas terras do cacau, amado
cidadão do mundo, tornou-se prazeroso do verso com essa sacada.
·
PILIGRA. Odisseia de Jorge Amado, EDITUS, Editora da UESC, Ilhéus,
2015.
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