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domingo, 2 de fevereiro de 2025

 

Dia de Iemanjá

   Cyro de Mattos

 

Hoje é dois de fevereiro, dia de Iemanjá.  Aos pares ou em grupos todos vão ao Rio Vermelho para prestar sua homenagem à dona do mar. Vem gente do interior e de todos os cantos de Salvador de Bahia para comemorar a festa da rainha do mar. Pessoas circulam na areia da praia, entram no mar, depositam a oferenda nas águas. Desde cedo os fiéis vêm fazer suas preces e entregar presentes que são levados em barcos e deixados nas ondas. Flores, perfumes, colares, pulseiras, brincos, anéis, enfeites, espelhos, imagens de uma mulher formosa onde nos mares mais bela não há. 

Em sua linguagem mágica, atabaques tocam no tom cativante, brando. Cânticos e orações saem de vozes contritas, gestos de gratidão. Lamentos e pedidos, afetuosos com certeza. Provavelmente os pedidos são para que a rainha do mar apague o fogo dos inimigos com a força de suas águas. Traga ondas cheias de paz, saúde e prosperidade. Que sejam levados para os espaços mais profundos do mar desconhecido as dores, privações e ressentimentos.

Quando era estudante universitário, sempre frequentava o Rio Vermelho nesse dia especial para os baianos. O sol se pondo, o movimento de pessoas aumentando, à noite era difícil encontrar um espaço no largo para se instalar de maneira cômoda. Em trânsito, turistas queriam se aproximar dos grupos de pessoas que estavam entoando cânticos em torno da imagem de Iemanjá com os seus ares de orixá afetuoso, com bondade que sai do seu jeito maternal e se instala no coração de cada fiel com suas ondas de carícia.

O fiel sabe que não sucumbiu no ano graças a Iemanjá. Suplicou para que a rainha do mar o salvasse da situação contrária, levando-o para longe nas águas perigosas. Sem os verdes e azuis de ondas que jogam e passam serenas.

 Pessoas em fila movimentam-se na direção da baiana do acarajé.  Bares e barracas cheias de gente. Tudo é alegria que circula nos rostos com os ares perfumados que chegam das águas do mar. É dia também de brincar e brindar.

Há algum tempo já não vou à festa de Iemanjá no Rio Vermelho. Com a idade avançada, o corpo se ressente de movimentos firmes entre gente festiva por onde passa. Mas não deixo de acender minha vela no peji e agradecer à minha mãe mais um ano de vida no seio de minha família. Ainda vejo a vida com seus raios claros, escuto o canto dos passarinhos que saltitam alegres nas árvores do quintal do vizinho, nesse dia em que a Bahia inteira na cidade marinha  se rende em homenagens aquela mulher formosa e translúcida, de deusa poderosa que desde a madrugada vem cantar, rezar, na areia dançar. 

. Não esqueço o gesto daquela figura de homem concentrado em algo distante no dia dois de fevereiro. Um preto velho, cabelo miúdo, fios brancos, como se formassem uma boina natural tecida de bucha para adornar a cabeça marcada de esperança. Tinha um cacho de flores nos braços para na sua vez deixar nas ondas de mãe Iemanjá. Saía da expressão de seu rosto algo de místico e profundo. A certa altura cantou, mesclou seu canto com reza numa língua entendida por poucos. Interrompeu-se no gesto silencioso, de concentração e humildade nos olhos miúdos. Ficou olhando para longe, bem longe, seu olhar atravessando as ondas, indo rumo àquele ponto de onde vieram seus ancestrais na carga do navio com gente aprisionada no porão escuro. Olhava para lá das zonas mais remotas do mar, talvez buscando encontrar alguns de seus antepassados, que foram   arrancados daquela terra livre onde o sol nasce radiante e o céu faz uma curva.

Como esquecer esse dia florido nas espumas, dança mágica sob a luz do sol, prata da noite no dia perto de clarear, oguns em oração que também querem homenagear. Carícia de alga, onda rainha, sempre rezo nesse dia festivo consagrado à dona do mar. Salve, minha rainha. Odoiá! Odoiá! Ó minha mãe, no mar difícil vem me proteger.  Do sal que fere no atrito torna-me onda mansa desse mar sem grito.

sábado, 18 de janeiro de 2025

 

Para Lembrar a Academia de Letras de Itabuna

Por Cyro de Mattos

 

Verdade, o confrade Marcos Bandeira demonstrou qualidades admiráveis de um juiz de direito operoso na Vara Criminal da Comarca de Itabuna, apresentando domínio dos fatos trazidos ao processo, além de ser dono de instrumental teórico jurídico consistente em suas sentenças, proferidas com lucidez e equilíbrio, como o artigo de Rilvan Santana ressalta em boa hora. Com relação à sua atuação na fundação da Academia de Letras de Itabuna gostaria de acrescentar que se não fosse ele eu não seria um dos fundadores da entidade.   Quando fui presidente da Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania, por várias vezes seguidas ele me visitou no meu gabinete, acompanhado do juiz de Direito Antônio Laranjeiras e o promotor Carlos Eduardo Passos. Mostraram da intenção e necessidade para se fundar uma academia de letras em Itabuna, na qual eu não poderia faltar. De tanto insistir com os outros dois preclaros homens da lei e por amor a Itabuna, terminei sucumbindo.

 

Para tanto, cedemos a sala da diretoria da Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania para que fosse o local das primeiras reuniões preliminares com o intuito da criação da sonhada academia de letras. Na primeira reunião compareceram Marcos Bandeira, Antônio Laranjeira, Ary Quadros, Carlos Eduardo Passos, Cyro de Mattos, Dinalva Melo, Gustavo Fernando Veloso, Lurdes Bertol, Genny Xavier, Ruy Póvoas, Sione Porto, Sônia Maron, Marialda Jovita e Maria Luiza Nora.

 

Nas reuniões, indiquei dois terços dos nomes que deveriam constar no corpo de patronos e de membros da entidade. O nome de Jorge Amado para ser o patrono foi indicação de Sonia Maron e teve o apoio unânime dos presentes. Fiz ver que o nome do patrono devia ser Adonias Filho, uma vez que Jorge Amado já era o patrono da Academia Grapiúna de Letras. Sonia Maron e Sione Neto redigiram o Estatuto da Academia de Letras de Itabuna, em trabalho árduo e profícuo da Juíza de Direito e da competente delegada de polícia.

 

 Ao término daquelas reuniões tomadas emprestadas ao sonho e ao querer fazer o melhor para Itabuna, no campo das letras, ciências e cultura, sugeri que o escritor Aramis Ribeiro Costa, na qualidade de Presidente da Academia de Letras da Bahia, viesse presidir a sessão de instalação da instituição, o que aconteceu em memorável noite festiva no auditório lotado da Faculdade de Ciências e Tecnologia.

 

Antes que esqueça, o confrade Ary Quadro indicou, na última reunião realizada lá na FICC, o meu nome para ser o presidente da instituição, que estava nascendo alimentada pelo idealismo de alguns abnegados. Foi aceito por aclamação. Agradeci, mas recusei, por não me achar com perfil para a importante missão, daí ter referido o nome de Marcos Bandeira para ser o primeiro presidente da entidade, o que também foi aceito por aclamação.

 

Quanto à revista Guriatã e os dizeres Litteris Amplectis como marca do brasão da instituição foram sugestões nossas aprovadas em votação democrática da assembleia. Os dizeres Litteris Amplectis venceram as indicações desse teor mencionadas pelas confreiras Sonia Maron e Ceres Marylise, e isso foi registrado em ata. Esses fatos aconteceram quando a Academia estava funcionando com precariedade em duas salas do Edifício Dilson Cordier. Na época era presidida pela confreira Sonia Maron, diga-se com empenho, competência e sacrifício.  As duas salas foram cedidas sem custo por nossa querida Presidenta, de saudosa recordação. 

 

Tivemos ainda a ideia de apresentar o nome da revista, com o pássaro guriatã para a capa, aos presentes em uma sessão na sessão da assembleia, além disso funcionei como editor nos três primeiros números. A letra do hino e a criação da Medalha Jorge Amado são ideias nossas. Fiz mais de dez lançamentos de meus livros tendo como anfitriã a instituição. Tenho comparecido na revista Guriatã e site da Academia com frequência, desde a sua fundação, como autor de ensaios, contos, poemas e discurso. Mas é imperioso notar que não estou alegando  nada, acreditem. 

 

O confrade Marcos Bandeira tem declarado em algumas das reuniões que para ser como Jorge Amado eu só precisava morrer. Também afirmou que a Academia de Letras de Itabuna não existiria se não fosse por mim.  Não vejo assim, o gesto do confrade com tais afirmações decorrem de sua generosidade. Considero-me mais um membro da Academia de Letras de Itabuna, chamada carinhosamente de ALITA, para a qual procuro cumprir com os deveres estatutários. Concederam-me a distinção de Presidente de Honra, isso me qualifica como integrante da instituição, mas outros membros mereciam esse reconhecimento.

 

Fundada em 2011 para valorizar a literatura regional, entre seus objetivos, essa academia tem em seu Quadro de Presidentes o acadêmico Marcos Bandeira, as acadêmicas Sonia Maron, Silmara Oliveira e o confrade Wilson Caitano. Atualmente, a presidenta Raquel Rocha é quem rege o destino da entidade com altivez e dedicação, realizando bons projetos e conta para isso na diretoria com uma equipe constituída de membros eficazes em cada função. Possui a instituição quarenta patronos e quarenta acadêmicos, mais três sócios correspondentes.

 

E assim, como nos versos do poeta maior Marcus Accioly, “que o mundo todo é gaiola / E a vida é Guriatã”, vejo a Academia de Letras de Itabuna prosseguir com suas pegadas afirmativas de querer crescer para o bem das letras. É uma instituição pobre em termos econômicos, não tem sua sede, renda suficiente para dar voos mais altos, como a instituição anual de um concurso nacional de contos, romance, ensaio, exposições, encontros e seminários.  Faz o que pode com a junção de algumas vozes associativas que persistem com brio em escrever sua história.  Precisa do apoio de empresários para realizar suas ações, dos poderes públicos e da boa vontade dos que amam essa terra. 

 

 

sábado, 11 de janeiro de 2025

 

Entidade Símbolo dos ´Trabalhadores 

Por Cyro de Mattos

No dia 8 de fevereiro de 1920, artistas e operários de Itabuna se reuniram em momento festivo para a posse solene da primeira diretoria da Sociedade Monte Pio dos Artistas, eleita em 1º de novembro de 1919. Em momento histórico, de saudável memória, mostravam que de fato e de direito tinham obtido autonomia suficiente para construir uma sociedade de amparo à sua classe e que iria sobreviver às intempéries da dura lei da vida. A criação da entidade simbolizava um triunfo justo da luta organizada dos trabalhadores em busca de melhores condições de vida no sul baiano.  

Ao longo dos anos essa sociedade iria se consolidar como uma das principais agremiações de artistas e operários do Sul da Bahia, construindo uma significativa rede de sociabilidade e de solidariedade entre os trabalhadores.  Funcionou como palco de importantes reuniões envolvendo artesãos e autoridades políticas, bem como cenário de festividades em torno de quermesses e de tocatas da filarmônica, fruto do esforço das atividades desenvolvidas pelos seus membros.

A fundação da Sociedade Monte Pio dos Artistas foi liderada pelo carpinteiro Flaviano Domingues Moreira, que, após receber uma carta, que lhe fora enviada pelo deputado Maurício de Lacerda, reuniu ourives, pedreiros, tanoeiros, funileiros e outras categorias de artistas para criar uma das primeiras associações de trabalhadores da região cacaueira da Bahia. Através da instituição de caráter filantrópico, seus associados tornaram-se detentores de uma série de direitos que ajudavam a amparar parte da classe trabalhadora no enfrentamento de dificuldades econômicas, apesar da riqueza promovida pela economia cacaueira na região sulina do Estado.

Entre as vantagens, o membro da sociedade era amparado em caso de acidente de trabalho, de moléstia contraída, ou se viesse a ficar desempregado ou impedido de trabalhar. Esse espírito de corpo revelava o caráter solidário de humanismo social da associação, que buscava criar mecanismos de sobrevivência para seus membros.

O Monte Pio dos Artistas promoveu também a criação de duas outras entidades de relevante importância para a sociedade local – A Escola Manoel Vitorino e a Filarmônica Euterpe Itabunense. Foi por meio dos esforços de seus associados que, em 1921, inaugurou-se a escola noturna, destinada a educar os filhos de artistas e de trabalhadores que não tinham acesso à educação pública ou que não tinham condições de pagar escolas particulares.

Ressalve-se que a Sociedade Monte Pio dos Artistas de Itabuna tornou-se uma das poucas entidades dessa natureza que conseguiu sobreviver até o século XXI, mantendo-se ativa em suas funções, provavelmente a única. O autor do presente texto aprendeu o ABECÊ nos bancos da Escola Manoel Vitorino, com a professora Lourdes Hage. Pessoas ilustres da terra tiveram o aprendizado das primeiras letras nessa escola. Por outro lado, a Filarmônica Euterpe Itabunense foi criada em 1925 e sua função era reunir trabalhadores associados ao Monte Pio que tivessem vocação para a música. Era função da filarmônica comparecer às manifestações cívicas, religiosas e festivas da cidade. As tocatas dos músicos da Euterpe Itabunense ficaram registradas na memória de muitos moradores.

Uma dessas tocatas na praça Adami, sob a batuta do maestro Elpídio, foi assistida por um menino que se tornaria depois um dos poetas de sua terra. Anos mais tarde, o poeta registraria no seu livro Cancioneiro do Cacau o poema “Músico”, motivado por aquele momento de encanto e magia produzido pela Filarmônica da Euterpe na sua infância.

Abaixo transcrevo o poema.

 MÚSICO

(Para Sabará)

 

Encanto de som

vem da filarmônica,

na praça o povo

 êxtase de onda.

 Prata do clarinete,

 ouro do saxofone,

flor da flauta.

riso da tuba,

brilho do pistão,

diamante da caixa

e o voo na valsa.

(Cyro de Mattos)

 

 


 

Cyro aos quatro anos com os coleguinhas na Escola Montepio dos Artistas, é o primeiro da frente que segura o ABECÊ.

 

 

domingo, 5 de janeiro de 2025

 

Evocação de Ferradas em Versiprosa  

Por Cyro de Mattos                

                

                 Para Jorge Amado

                 e Telmo Padilha,

                 em memória.

 

De tanto estar o céu em longe amanhecer

dizendo o bem na fé houve o padre Livorno 

com a sua batina mágica.

Ecoava temente a Deus sua voz no chão bárbaro,

indiferente ao que dizia a escritura da paixão.

A catequese do louvor na sapiente profecia

se ligava nos indígenas como refúgio do amor.

Cruzavam as solidões sacolejando na carga

os que vinham de longe. No pouso do povoado

queriam nova ferradura para o casco da burrada.

Em alvoroço de festa ferravam até as árvores,

uma coisa grandiosa de ver onde deixavam sua marca 

para o mundo não esquecer.    

O machado anunciou os propósitos da terra,  

duras mãos enredaram grossos nós do destino.   

Com talhos na jaqueira a folhinha imprimiu      

as vastidões desoladas.  Em ébrio ouro vegetal

 facão e podão dançaram. 

Comercinho novo veio cifrar o mundo, o fazer

das ferramentas anotava a cada chuvada

a arte de influenciar a lavra.

Inaugurou-se a praça com água boa, ardente.

Lá para as tantas a viola no peito gemia,

 sua irmã sanfona retirava da lágrima     

sons agudos com suor, um frio medonho

da serra, os dias de açoite do vento

derrubando os paus grandes.  

 

Em casas escoradas o bafo da noite abafada, 

na cama de vara o coito quente ligando corpos

na danada hora do gozo se amassando e gemendo

e no ninho acontecendo.   

Marasmo de rua comprida oculta os dias de outrora,

amadurecidos na safra dourada como a riqueza,

no sobrado amanhecendo, o sol veio sumindo sem brilho

na vontade alquebrada soterrada de desejos.

Armazém de porta larga guarda o tempo remoto  

das estações grávidas, a barcaça com amêndoas

valendo tanto quanto ouro.

 Ferradas nem mais viceja, dorme agora, seu sono

arrastado de bicho pesado, submersa onde somras

 envolvem a praça calada,

Perto da igreja, em vigília costumeira, espera sua gente

 humilde, que vem à procura de Deus. Sua atitude lenta

agora é desprovida do cheiro de resina ligada na memória

de bairro-mãe  desprezado,  ao léu de omissões seguidas,

ninguém quer conhecer como ali se plantou a vida. 

Ao invés do vazio na história tudo que deseja é um caminho,

nada mais correto o lugar que lhe é devido nos frutos que deu,   

pois o amor ao amor retorna quando a razão tem caráter,

protege o que é da terra numa ação de erguimento

e não como longo despejo através da cor desbotada.    

 

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

 

Amado Menino de Belém

Cyro de Mattos

           

  Contam que nasceu numa manjedoura, em Belém, o berço era de palha. Foi anunciado por uma estrela, no céu toda acesa de Deus. Os bichos cantaram: Jesus nasceu! Jesus nasceu! Os pastores tocavam uma música serena nas suas doces flautas. São José, o pai, o que tinha mãos habilidosas no manejo de enxó, plaina e formão, soube que de agora em diante ia talhar a mais pura fé do seu constante coração. A Virgem Maria, mãe do menino, dizia baixinho: Pobrezinho quando for um homem, de tanto nos amar, vai morrer na cruz.

     

Os três reis magos foram chegando, vieram de longe, muito longe, atravessaram montanhas e desertos. Traziam, como presente para o menino, mirra, incenso e ouro. Ajoelharam-se, sabiam que não eram dignos de tocar naquela palha. Bastava agora que fizessem o bem ao próximo e seriam alçados aos céus no final de suas vidas.  Abelhas com os seus zumbidos de ouro vieram colocar afeto e mel no coração de cada um dos reis.

   

Contam mais que foi um menino que brincava como qualquer menino. Gostava de ficar sozinho, mirando a linha do horizonte.  Quando ficou rapaz, não teve dúvida, havia sido o escolhido pelo Pai entre os humanos para ultrapassar aquela linha no horizonte.  Para conseguir a façanha teria que fazer uma mágica em que disseminasse uma rosa na manjedoura dos ares. Juntar todas as mãos numa só mesa onde todos seriam irmãos.

    

Teve que trazer as sementes dadas pelo Pai para plantar cirandas nas areias do deserto. E assim, em cada ciranda que fazia entre os sofredores do ver e do viver, os sentimentos daquele homem humilde, com ares de   profeta, correram nas águas doces do rio, seguiram no vento manso, que soprou a flor sozinha na plantinha do brejo. E foram levados pela borboleta até o lugar onde o amor sempre permanece, fazendo morada nas asas da ternura.

     

Acharam que sua mensagem batia de frente com o conforto dos donos do poder quando saía por aí de mãos dadas com os excluídos e curava os enfermos.  Espalhava a esperança na pobreza dessa terra. Convencia os homens de que viver vale a pena desde que a vida seja exercida numa comunhão em que não haja desigualdade, injustiça, opressão e hipocrisia. Só dependia de nós que a vida fosse como uma dança, sem agressão, os bichos sem matança, a mata livre da queimada, as nuvens despejando a chuva para fertilizar a terra, desprovida do veneno letal da poluição.  

        

 Os donos do poder no sistema organizado não perdoaram a afronta. Traçaram o mais pérfido caminho para ele ultrapassar a linha do horizonte, que tanto contemplara quando era criança.  Fizeram que carregasse uma cruz pesada. Puseram uma coroa de espinho na cabeça, cuspiram nele, chicotearam. Morra o rebelado, o falso profeta, o demolidor da ordem, o mentiroso fazedor de milagre, alardearam.  Os que estavam com raiva nos olhos, perjuro no coração, fúria canina nas veias, investiam, urravam, não se cansavam de pedir que fosse condenado o subversivo do sistema.  Ficaram calados quando foi decretada a crucificação. Não aceitaram que no seu lugar ficasse o ladrão, que para ali fora apenado com a crucificação pelos crimes cometidos.

     

Mas o que se viu, depois de perversa infâmia vinda de uma perseguição sem igual, é que até hoje tocam os sinos do bem na cidade e na campina, só para nos dizer que do menino nascido na manjedoura se fez um homem para ofertar a todos o amor, apesar de receber em troca seguidas pedradas. No final crucificado para que se cumprisse a profecia, o bendito salvador da humanidade veio para nos dizer que era o filho do Pai Eterno, perdoava a todos que não sabiam que a mais difícil prova era a da inocência.  

     

 Blem, blem, blem, confirmam até hoje o acontecido os sinos de Belém, dizendo que o Menino Deus veio ao mundo dos humanos por nos querer tanto bem.   

 

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

 

            Papai Noel ontem e hoje

             Cyro de Mattos                                          

 

A cidade tinha pouco mais de quinze mil habitantes. Servira de burgo de penetração aos forasteiros que adentravam o continente na conquista e povoamento da terra. Tinha poucas ruas calçadas, um cinema, uma praça, pequena igreja, um ginásio, três bairros. O comércio era ativo na avenida principal. O rio corria manso no estio, era valente na enchente. Tinha peixe em abundância nas águas de fontes claríssimas.

Ninguém podia imaginar que um dia fosse inventada a televisão, na tela de um aparelho mágico se assistiria tudo que estava acontecendo no mundo. Os brinquedos seriam fabricados pelos meios eletrônicos como resultados dos avanços tecnológicos. Na pequena cidade respirava-se um clima de estábulo quando chegava o mês de dezembro.  Comemorava-se o Natal como se a cidade fosse uma família grande. Todos, dos ricos aos mais humildes, integravam-se no clima da festa, que anunciava a vinda do menino para fazer a proeza de estrela iluminando uma só mesa com todas as mãos.

Papai Noel existia no imaginário de cada criança. A mãe lembrava, na semana próxima ao Natal, que o filho fosse escrever a carta, colocasse no sapato quando for dormir, pedindo a Papai Noel o presente que você quer ganhar nesse ano. Foi o que o menino fez no mesmo dia, pedindo que queria ganhar uma bola de couro daquela vez para jogar futebol com os amigos no campo da praça Camacan.

 Na véspera de Natal, a mãe disse que fosse dormir cedo, Papai Noel podia passar por aqui e se encontrasse você acordado não vai deixar seu presente no sapato. Ele só deixa o presente no sapato se o menino estiver dormindo, não podia esperar o garoto pegar no sono, tem muita criança para presentear naquele dia especial, consagrado ao nascimento do menino Jesus na manjedoura.

O velocípede, o jogo de botão, o dominó, o jogo de dama, o realejo e o pião que rodava na mão foram presentes que Papai Noel deixara quando acontecia o Natal. Estavam no baú onde também guardava as revistas de quadrinhos, guri e gibi. 

Quando chegou finalmente a véspera de Natal, obedeceu ao conselho da mãe, foi dormir cedo, na certeza de que Papai Noel não ia se esquecer dele. Acordou no outro dia com sono. O susto esplêndido teve quando clareava o dia.  Lá estava no par de sapatos a bola de couro como o presente de Papai Noel, que atendera o seu pedido. 

O domingo brilhava com a sua luz forte que caía do céu sobre todas as coisas. De calção e peito nu, chamou os meninos para escolher os times para mais uma partida de futebol. Como dono da bola, na formação de seu time, tinha preferência para escolher os garotos que fossem os melhores jogadores. De agora em diante, com esse privilégio, o time que escolhesse seria vencedor em todas as partidas no jogo de futebol. E isso tinha que agradecer ao Papai Noel.

Passados tantos anos, o homem idoso não esqueceu que Papai Noel mora em um lugar que neva. Chega no trenó puxado por renas. Entra pela janela para deixar no sapato o presente que o menino pediu, isso porque as casas da sua cidade não possuem chaminé. Veste roupa vermelha, usa uma barba branca crescida, o gorro cobre os cabelos sedosos. Não faz rô, rô, rô, nem tira foto com a criança no supermercado. Não é pretexto para motivar as vendas no comércio nessa fase do ano. Não é um Papai Noel protagonista da sociedade consumista.

É um encantado, o homem idoso prefere esse, que faz bem, torna a vida viável como se fosse uma grande mentira de verdade.    

 

           

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

 

As Intermitências da Poeta Estreante  

Cyro de Mattos

 

         Tenho recebido muitos livros como gentileza de seus autores, alguns deles no intuito de que eu faça uma leitura crítica. A essa altura da estrada comprida no mundo das letras, com quase 86 anos de idade, quase não tenho tempo para ser o leitor voraz de outros tempos. Entre os livros que recebi ultimamente chegou-me Intermitências apenas, de Valéria Grass, que logo me deu a sensação de que se trata de uma autora estreante dona do ofício, com uma linguagem que inova na forma e ideia. A estreia dessa poeta revela um discurso eficiente no qual as vírgulas funcionam como pausas carregadas de significados, tornando-se no texto recursos de uma linguagem transgressiva que elimina a parte obscura da matéria e ao mesmo tempo ilumina o ser.  

Valéria Grass não tem compromisso com o verso, nem pretende se conter na estrofe com seu ritmo convencional. Ao invés disso tece de maneira arguta as capturas necessárias da vida para construir um discurso diferente, armado com tensões e reflexões, no intuito de plasmar o curso da experiência humana com suas circunstâncias vitais. Serve-se do intertexto para fundamentar a ideia e dizer da existência sustentada em eco onde nem sempre os desejos se confirmam.

Como William Faulkner em que o conto sempre importa mais que o contista, nas argumentações, impressões, confissões, vivências, lembranças, vozes, fluxos do inconsciente, em Valéria Grassi o conteúdo vale mais do que o autor com o seu nome gravado no livro, como é a praxe. Importa é o que está posto no centro do seu discurso, que é ela mesma, pulsando nas entranhas suas reflexões e   no pensamento suas concepções da existência.  Nesse fluxo do sentir e pensar a existência humana, há um jeito tão dela de fazer circular por entre vasos intercomunicantes seu discurso inovador em que um feixe de situações existenciais são flagradas para que ressoem sua realidade nas entrelinhas. Nisso afloram recursos inesperados da linguagem com a interrogação, a negação e a afirmação, meios de uma forma e conteúdo que seguem um curso como fluxo incessante para externar a vida com suas visões críticas, atritos e solidões.  

Essa poeta que faz sua estreia com Intermitências apenas, em que a vírgula exerce sua função nas entrelinhas, reveladora de sentidos, mostra no seu primeiro livro a capacidade de se tornar uma voz expressiva da poesia atual.  Chega para permanecer com seu discurso instigante marcado de ideias e   reflexões inteligentes trazidas pelo vento em seu galope do imaginário para levá-la até onde puder chegar.

 

* Intermitências apenas, Valéria Grassi, Editora Cambucã, Rio de Janeiro, 2024.

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

 

                   Livros em espanhol de autor grapiúna

                  Vão ser estudados na UESC em 2025               

A professora doutora Raquel da Silva Ortega, da Universidade Estadual de Santa Cruz, comunicou ao escritor Cyro de Mattos que no próximo semestre acadêmico (de abril a julho de 2025) vai estudar seu livro "Infancia con animal y pesadilla (y otras historias)" com os seus alunos da disciplina Língua Espanhola VII, ao mesmo tempo que convida o autor grapiúna  para participar de uma roda de conversa sobre os seus  livros publicados em espanhol.  

 

Os livros de Cyro de Mattos publicados em espanhol são estes: Donde Estoy y Soy, bilíngue, tradução de Alfredo Pérez Alencart, Guitarra de Salamanca, bilíngue, tradução de Raquel da Silva Ortega, Navidad de los niños negros, em seis idiomas, tradução para o espanhol por Meritxell Marsal Hernando, e Historias Brasileñas, em preparo de edição pela Casa das Americas de Cuba, na importante Coleção La Honda. Além disso, vários poemas do autor grapiúna estão incluídos em antologias publicadas na Espanha onde também são divulgados pela TV  Salamanca no programa “Crear en Salamanca”.  

 

 Ressaltando que era uma honra para ele,  Cyro confirmou sua presença com os alunos na conversa decorrente dos estudos de seus livros em espanhol na UESC. Sobre este assunto a doutora Raquel observou:  

“Acredito que um momento de conversa sobre as suas publicações em espanhol e a participação em premiações internacionais - principalmente o Casa de Las Américas, de Cuba - será muito significativo para os alunos.” 

 

domingo, 24 de novembro de 2024

 

                      O Cego Marujo

                          Continho de Cyro de Mattos

 

               Na minha infância conheci criaturas interessantes que, na maneira de ser de cada uma delas,  davam cores e sons à cidade. Faziam parte do espetáculo da vida onde  quer que se apresentassem.  O cego Marujo era uma delas. Fazia ponto com a sua viola inseparável no estacionamento  de ônibus, que ficava no centro da cidade, atrás do prédio do Instituto de Cacau da Bahia, perto do Ginásio Divina Providência. 

         As marinetes, assim chamados os ônibus de cadeira dura daquela época,  chegavam e saíam daquele local  movimentado com  gente próspera e modesta. Ali,  os carregadores entregavam  os embrulhos grandes pelas janelas aos passageiros que  retornavam  a alguma cidade circunvizinha. Não importava o tempo, chuvoso ou de estio, lá estava o cego Marujo dedilhando a viola ao peito, a cuia ao lado.

         Ficava no passeio, embaixo da marquise, junto à entrada  para os guichês onde os passageiros compravam a passagem.  Antes que o ônibus partisse,  passageiros gostavam de ouvir o cego Marujo dedilhando a viola, que gemia ao peito. A cuida ia se enchendo de cédulas de dinheiro e  moedas na medida que ele ia tirando  suas cantigas, dizendo de coisas alegres e tristes, das ocorrências rotineiras que serviam de alimento à memória da cidade.

     .  Desfiava na viola a história que falasse de algum assunto  bastante comentado na cidade, como o da mulher  que foi esfaqueada pelo marido ciumento quando o casal atravessava a Ponte  Velha.  O marido acusava de estar sendo traído pela mulher com o vizinho.  A pobre coitada só fazia cuidar dos  afazeres da casa e fazer a comida gostosa para o marido ciumento. No meio da discussão acirrada, o marido golpeou a infeliz com várias facadas. Melado de sangue,  sem saber o que fazer depois da cena alucinada,   o marido ciumento  jogou da ponte o corpo da mulher no rio e saiu disparado rumo ao centro da cidade,  gritando que era um homem desgraçado.

      Outra vez o cego Marujo desfiou a cantiga da mulher que pariu no meio da Ponte Velha. Teve sorte. Deu à luz com a ajuda de duas mulheres idosas,  que cedo  iam fazendo a travessia na ponte.  Pariu um menino graúdo. Não deu um gemido durante o parto, não chorou, , não  fez cara feia.  Levantou-se com a ajuda das duas mulheres  que fizeram o parto. Saiu andando como se nada de mais tivesse acontecido, o menino nos braços, no rosto alegre o sorriso gordo.   

            Se o cego Marujo não enxergava, os olhos estavam submersos nas sombras,  como era que conseguia gravar aquelas histórias,  que pareciam  publicadas nos  cordéis escritos pelos  trovadores da cidade?  Comentava-se que o seu guia, um menino negro, esperto,  era quem lia as histórias de cordel  para ele no barraco onde moravam no bairro da Conceição. Ele fazia a música e encaixava a letra no  cordel  cujo conteúdo  mais o marcava. Mas também improvisava com  cantigas baseadas em histórias que ele mesmo inventava.

           Gostava de fazer o  público sorrir quando estava  aglomerado  diante dele. Certa vez, ouvi o cego Marujo  falar do tempo que era jovem, enxergava até agulha na areia, era pescador que saía cedo  para pegar o peixe  nos longes do mares bravios.

 

          O barco parecia brinquedo

          Nas mãos da onda gigante,

          Que assombrava a tripulação,  

         Só Marujo não tinha medo

         Quanto maior  fosse o perigo

         Causando enorme aflição..

 

       Não viesse pescar comigo    

       Nos mares longes  de Ilhéus,

      Homem que fosse frouxo,

     Que goste de sombra fresca,   

     Dormir gostoso na cama,

    Comer mulher de bunda gorda.   

domingo, 10 de novembro de 2024

 

                   Nosso Herói Jipe e Maria Camisão  

                                 Por Cyro de Mattos

 

                 Jipe não era apenas mais um doido manso com suas esquisitices que habitou minha infância cheia de sentimentos e graça. Era o mais querido por gente grande e pequena. Hélio Pólvora, nascido em Itabuna, ficcionista dos melhores da moderna literatura brasileira, dedicou-lhe o conto “No Peito o Motor”, que faz parte do livro Estranhos e Assustados, publicado pela editora Francisco Alves, Rio, 1977. Teve várias edições, deu ao autor o Prêmio Nacional da Fundação Castro Maia.

                 Depois do conto primoroso do conterrâneo Hélio, tive a ousadia de escrever um texto de ficção breve sobre nosso herói do trânsito, que de repente se achara que era de corpo e alma um jipe. O título do meu texto é “Um Jipe nas Nuvens”. Faz parte do livro Nada Era Melhor, da Editus, 2017, é uma reunião de contos curtos ou romancinho da infância, se quiserem. Jipe aparece no meu romance Eterno Amanhecer, ainda inédito, com mais estaque.

            Os meninos de meu tempo consideravam os doidos mansos como uma gente indefesa, ingênua, engraçada, sofrida, invenção do destino. Tanta consideração tínhamos por eles, que meu livro Zurububuruna, Editora Batel, Rio, 2024, poesia satírica em formato de cordel, sobre uma gente que habita com suas vilanias uma localidade imaginária, é dedicado aos doidos mansos de minha terra, claro que na homenagem não podia faltar nosso famoso Jipe.

         Eis a dedicatória no meu livro Zurububuruna:          

                                    

                                      Aos doidos mansos de minha terra, que não fazem mal a uma mosca.                                                        

                                     Ingênuos, indefesos, perseguidos pelo fado. Incansáveis intérpretes

                                     da vida diária, riso do trânsito. Mula-Manca, Maria Camisão, Ciro Mergu-

                                    lhador, o tal Jipe falado. Zeles Carnavalesco, mais Chiranha, mais Paturi,

                                    meio azoado, entre outros, dedico com muito gosto esses versos de pé

                                   quebrado.

                       

       Maria Camisão vestia uma camisa folgada, mangas compridas, de tão grande batia nos joelhos. Ela era de estatura baixa, os cabelos sempre assanhados, a boca desdentada.  Alguns diziam que guardara como lembrança meia dúzia de camisas do seu homem, um preto alto e forte. Vivia do ganho da roupa que lavava para a família abastada. Nas horas de crise aparecia na avenida do Cinquentenário. Revoltava-se, xingava a Deus e o mundo. Comentava-se que ela havia ficado adoidada depois que o marido amanheceu enforcado na cadeia, dizem que a mando do delegado Nero, que armara para ele uma cilada. O delegado mandou que os dois soldados tomassem as caças moqueadas e prendessem na feira o homem chamado Barba Preta.  Não demorou, não se sabe como, o delegado passou a ser o dono da rocinha de cacau e cereais, que o negro Barba Preta havia plantado nas Salteadas.

Escrever sobre esses tipos curiosos de minha terra, convenhamos, é atender com prazer no tempo o aceno das distâncias. O aceno dos dias com sua graça e lamento. Eles preenchiam a minha infância como um episódio relevante da vida, sem que nada me custasse. 

 

 

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

 

Memória de Itabuna Agredida 

Cyro de Mattos

 

Sugeri há dias, no “zap” de correspondência social da Academia de Letras de Itabuna, que a entidade devia se manifestar com uma nota de repúdio contra a demolição do prédio onde morou o comendador Firmino Alves, fundador de Itabuna. Agora fico sabendo que a dose da danosa demolição foi dupla. Demoliram a casa onde morou o poeta Firmino Rocha.  Essas duas agressões estúpidas foram dadas na cara da cidade, situada ali na praça Olinto Leoni, local onde se encontra o esfacelado Centro Histórico de Itabuna. A Galeria Walter Moreira, pintor renomado das paisagens e tipos da cidade, erguida também na praça Olinto Leoni, foi demolida pela atual administração do município.  

 A demolição dos prédios que serviram de residência ao Comendador Firmino Alves e ao poeta Firmino Rocha vêm na mesma esteira do que aconteceu com o Castelinho, um primor de arquitetura colonial, representativa da beleza antiga forjada no auge da lavoura cacaueira. Ressalte-se que o Comendador mandou construir o Castelinho para dar à sua filha Áurea como presente de casamento.  Como se nada significasse, o destino desse prédio de beleza antiga rara e importância histórica incontestável teve como final desastroso o de ser engolido pela boca insaciável da ganância imobiliária

            Quando em 2011 fomos presidente da Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania, demos parecer contrário à venda do prédio onde funcionou o Ginásio Divina Providência, educandário que contribuiu para que jovens se tornassem dignos cidadãos e profissionais valorosos. O prédio daquela instituição de ensino fora tombado em 2008.  Uma empresa se interessou em adquirir à Sociedade de São Vicente de Paula, dona do imóvel, comprometendo-se em construir no local um shopping que daria   emprego a 600 pessoas.  Edital do Executivo Municipal determinou que fosse criada uma comissão para examinar o assunto. A Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania não integrou essa comissão. Consultada para que desse parecer sobre a questão, nos manifestamos para que o Executivo Municipal desapropriasse o imóvel e em seu lugar instalasse o Museu de Educação de Itabuna e o Memorial Lindaura Brandão, educadora que dedicou sua vida para que sempre estivesse em pé com dignidade o educandário de grande valor histórico  no ensino e educação, locais e regionais.  

. Apesar de nosso parecer contrário à venda do prédio onde funcionou o Ginásio Divina Providência durante décadas, o negócio da venda do imóvel foi realizado, pasmem os céus, e um shopping que foi construído na metade do terreno apenas deu emprego a poucas pessoas. Conservou-se apenas a fachada do prédio construído na metade do terreno,  e o seu interior foi destinado ao comércio. 

Na época em que fomos presidente da FICC listamos uma série de prédios históricos que deveriam ser objeto de tombamento por lei municipal, incluindo-se nesta os imóveis onde residiram o Comendador Firmino Alves e o poeta Firmino Rocha, localizados na praça Olinto Leoni. Não tive assistência jurídica municipal eficiente para levar adiante o projeto de tombamento de prédios com importância histórica para Itabuna. Não sei se os prédios listados em minha gestão foram tombados posteriormente através de processo administrativo. 

Estou de pleno acordo com os membros da Academia  de Letras de Itabuna que querem que o caso da demolição abrupta dos prédios onde residiu o Comendador Firmino Alves e o poeta Firmino Rocha seja motivo de uma nota de repúdio. E me associo também aos que desejam que o fato calamitoso seja levado ao conhecimento do representante do Ministério Público para as medidas cabíveis de lei e para que inclusive, por extensão,  seja preservado o pouco que resta do patrimônio histórico de uma cidade com papel importante na formação da civilização cacaueira baiana. 

          Já não basta o que estamos fazendo com o rio Cachoeira?  Antes de fontes puríssimas e peixe em abundância, era chamado de pai dos pobres, agora enfermo, afogando-se nas águas viscosas derramadas por bocas de vômito. Pobre rio, de vida saudável outrora, habitado por gente simples, hoje não passa de esgoto a céu aberto.