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terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Amizade


           Dois repentistas na praça faziam o improviso nos versos que discorriam sobre a amizade. Um elogiava a amizade enquanto o outro procurava mostrar que de maneira sincera ela  não existia neste mundo desde não sei quando. Curiosos que formavam pequeno cinturão  em volta dos repentistas ouviram um  deles dizer a certa altura do improviso sob galope acirrado:
Quem disser que tem amigos
Tem de si pouca ciência,
Amigo só existe aquele
O da própria conveniência.

          Quis dizer com suas impressões realistas da vida que ter o amigo fiel, certo na hora incerta, é a exceção, daí se concluir que  a regra neste velho mundo consistia na amizade ser sustentada através do interesse. O dito popular que afirmava melhor amigo na praça do que dinheiro no caixa não predominava como uma constante  nas relações de empatia entre os seres humanos. A amizade verdadeira, que não espera nada de volta, só acontecia em situações excepcionais.
          Pensando, pensando, a amizade  desinteressada só  quando não há  a competição desumana e desigual pelas coisas materiais ou a vã glória. Na competição selvagem, marca do capitalismo,  uma pessoa enxerga a outra como estranha. Nas  relações duras da luta pela vida,  a afeição, que implica em segredos e solidariedades,  tem pouca chance de achar o seu lugar ao sol.  
          Amizade pura só mesmo na infância quando a vida é uma festa colorida por gestos espontâneos,  em que entram sentimentos nutridos de  esperança e ternura. Daí o poeta dizer que quando a gente fica grande o país da infância é trancado pelos homens com pedaços de alma. Resta a  sensação de uma fruta doce que acaba. Na infância perder ou ganhar é igual a se divertir. Por ser assim em essência, não havendo competição ditada pelas necessidades materiais, naquele território feito de alegria para todos  não funciona  a regra Deus para mim e o diabo para os outros. Estou me referindo à infância feliz, não à pobre e miserável.
         Na juventude, quando no grupo se é envolvido espiritualmente por sentimentos que em si pertencem a todos,  irrompendo do coração para ultrapassar desafios e atingir metas no conhecimento da vida, a gente consegue como na infância fazer boas amizades,  que levam a vida inteira. Quando somos colegas em uma mesma escola, colégio, faculdade,  estamos nesse barco alegre da vida sem competições ferinas. Leve e solta, a criatura humana ainda não provou os  desastres gerados pelo ritmo de nossos estados de necessidade nas rinhas da vida.
         Há quem argumente que uma boa amizade nasce  na mesa de um bar, lugar onde se joga conversa fora ou a mágoa quando se tem a necessidade  ainda maior de desabafar tudo o que está preso no peito. Com este cronista as boas amizades  vêm do tempo da infância e juventude, até hoje perduram, embora sejam poucas.  Outras, de uns tempos  para cá, nasceram graças ao  milagre operado pela literatura.
        Apesar de o mundo das letras ser competitivo, em muitos casos neurótico, até mesmo diabólico,  gerando conquistas para encher as vaidades e os egoísmos, tenho feito  amigos que parecem que já me eram desde muitos e  muitos anos. Alguns deles vivem distante,  nunca os vi pessoalmente. As afinidades eletivas nesse caso forjam uma afeição  sólida a cada descoberta agradável.  A afeição  assim me aproxima  do novo amigo  numa cadeia de instantes recíprocos e suaves. As coisas acontecem em razão das horas iluminadas por impressões de leitura. A empatia é expressa  de modo sincero  com suas ondas de ternura, por correspondência aérea ou  internet.
          A amizade é necessária  para  que o entendimento decorrente do gesto das mãos nas mãos torne a vida fácil, sem dominações, ciúmes  e traições. O ideal era que resultasse duma união geral  para que a vida fosse forte e bela, com rações suficientes para todos. Enquanto tal não acontece, lembro um poema do mineiro Elias José, querido amigo, de saudosa memória,  que só tive o prazer de ver uma vez.  Ele me enviou de Guaxupé, sua cidade natal,  o poema “Amigo” quando ainda era inédito.

                      A palavra AMIGO
                      Abre-se com a gente
E sabe escutar e guardar
Queixas e segredos.
Chora a dor que é nossa,
Faz festa na nossa alegria.

O mundo seria mínimo
E sem a menor graça,
Se não existisse a  graça,
Se não existisse a luz
Da palavra AMIGO.


        Para esse mineiro de inteligência incomum, coração terno, que escreveu mais de cem livros, entre volumes de ficção e poemas, para gente grande e pequena, premiadíssimo, a amizade encantava e  comovia. Fluía no tempo de ardente aprendizagem.


                               

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