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sábado, 8 de fevereiro de 2014


                                        ITABUNA E SEUS MITOS
                                                                 Sônia Carvalho de Almeida Maron*


            Na edição do dia 4 do corrente mês, o Diário Bahia prestou justa homenagem ao cidadão desta cidade, Alencar Pereira, mais conhecido como “Caboclo Alencar”. Pequeno comerciante e proprietário do barzinho “ABC da Noite”, no Beco do Fuxico, há muitas décadas mantém o ponto de encontro de boêmios, intelectuais, comerciantes, empresários, enfim, representantes de todos os segmentos sociais, anônimos e celebridades, que apreciam a “batida”  mais famosa da Bahia. O bom papo e a atração irresistível do inteligente, bem humorado e filósofo da faculdade da vida, apelidado Caboclo Alencar, que assegura o pão de cada dia com a exibição do conhecimento de historiador autodidata  e analista sociopolítico, mantém, durante décadas, a admiração dos freqüentadores do seu bar pelo carisma e comentários próprios de um humorista de escol. Eu sei por ouvir dizer, expressão usada para as testemunhas não presenciais. As garotas dos “anos dourados” não frequentavam barzinhos especializados em batidas, entretenimento reservado aos rapazes. As informações fidedignas eu obtive, pela vida a fora, de Nilton Galvão Pinto, amigo de infância e vizinho da rua Rui Barbosa, e Huldo Baldoino, itabunense que passou a residir no Rio Grande do Sul e visitava a família nas férias, reservando, como verdadeiro ritual, um tempo para visitar o Caboclo Alencar. Logo, temos amigos comuns.
            A comemoração dos 83 anos do itabunense famoso e singular, marcada pelo carinho dos incontáveis amigos reunidos no Beco do Fuxico, foi consagrada pela matéria primorosa deste jornal, com direito à chamada de primeira página  e a marca inconfundível  da redatora Celina Santos. Registre-se, ainda, por conta das comemorações, o documentário exibido pela TV Itabuna, no qual a competência e sensibilidade de Barbosa Filho reuniu intelectuais de todos os matizes, jornalistas, advogados, pessoas do povo, um delicado mosaico de celebridades e amigos, alguns tecendo uma análise sociológica do papel do Caboclo Alencar na cultura de Itabuna, outros sugerindo o tombamento do “ABC da Noite”, como marco precioso da nossa história.
            Nenhuma dúvida quanto ao merecimento do Caboclo Alencar. A propósito, muitos meses atrás, o escritor itabunense Cyro de Mattos (membro do PEN CLUB e de várias academias, com grande parte da obra premiada, traduzida em outros idiomas e publicada em vários países) neste mesmo jornal, escolheu o conterrâneo Alencar Pereira para homenagear em inspirada crônica, ressaltando sua personalidade invulgar. São atitudes que sinalizam abençoada modificação nos formadores de opinião, “louvando quem bem merece”  como diz o verso de Gilberto Gil.
            Ocorre, no entanto, que o reconhecimento ao “ABC da Noite” traz a lembrança do esquecimento total de um marco  insubstituível que definiu a vida de centenas (ou milhares) dos seus frequentadores: O ABC DO DIA. O que foi o ABC DO DIA? Ninguém lembra, é certo. O ABC DO DIA, ícone  maior da história de Itabuna, foi demolido, vilipendiado, apagado, deletado. Morreu ignorado, sem choro nem vela. O pior é que o ABC DO DIA tinha um mundo de celebridades que poderiam defendê-lo e impedir seu assassinato.  Muitos fecharam os olhos, os  ouvidos e emudeceram por covardia ou conveniência; outros desconheciam o plano sinistro de destruição; poucos, muito poucos, gritaram, esbravejaram, manifestaram a indignação de filhos ultrajados, porque o ABC DO DIA era o pai e a mãe de todos que buscaram seu abrigo e sua orientação. Os cegos e surdos-mudos são de fácil identificação, porque covardes, indiferentes e convenientes e são inúmeros; entre os que nada puderam fazer por ignorar o projeto de destruição, estão celebridades como Jorge Hage, controlador geral da União e Ubaldo Porto Dantas, ex-prefeito desta cidade; gritando indignados através deste jornal apenas Cyro de Mattos, João Otávio Oliveira Macedo e a autora destas linhas, três pessoas comuns do cotidiano itabunense, também ex-alunos do Ginásio Divina Providência, como nossos conterrâneos e sempre amigos Jorginho Hage e Ubaldo. 
            Volto a lembrar o atentado à cultura e à história de Itabuna, consubstanciado na destruição do prédio onde existiu o Ginásio Divina Providência. Dir-se-ia assunto recorrente, resolvido sob a pá de cal dos escombros que apareceram sob a pressão de máquinas fantasmas que trabalharam durante a noite... É verdade. A demolição ocorreu durante a noite. Por quê?  Sabe DEUS! O fato é que a pressa em concluir o “trabalho” antes do amanhecer, fez com que surgissem rachaduras nas paredes da Igreja de Santo Antonio e nos imóveis do comerciante Reinaldo Cruz e livraria “Um pouco de tudo”. É o que dizem as más línguas. Não estou afirmando que ocorreu prejuízo material para os vizinhos do prédio sinistrado, não vi, não investiguei, não inspecionei. Apenas ouvi dizer e a verdade sobre a transferência de domínio e a demolição, a esta altura, nada significa em cotejo com o prejuízo cultural, histórico, moral. É doloroso constatar que tantos metros quadrados que poderiam destinar-se à construção de outros templos de conhecimento e cultura, minimizando a carência de uma cidade que cresce desordenadamente, e o que é pior, sem respeito ao passado, abriguem, hoje, uma loja de departamentos e outra de sapatos populares. Como poderá Itabuna sequer sonhar com o futuro? Quem não teve passado ou o repudia, não existe no mundo real, é filho de chocadeira.
            Que seja homenageado o Caboclo Alencar. Ele merece. Por tudo que representa como cidadão digno da comunidade que consegue, durante décadas, manter um estabelecimento reservado à venda de bebidas alcoólicas fora do rótulo da mediocridade e do estímulo manifesto ao vício. Ele, ao seu modo, faz a diferença. Principalmente porque conseguiu reunir pessoas que proclamam suas virtudes e provocam a celebração dos 83 anos de uma figura humana que integra a memória de Itabuna. É uma façanha que o meu ABC DO DIA não conseguiu. Somente os três itabunenses já citados, eu, Cyro e João Otávio, tentam salvar o que resta de uma vida inteira da dedicação de LINDAURA BRANDÃO DE OLIVEIRA à formação da juventude de Itabuna e de toda a região sul da Bahia.
            Sinal dos tempos, da modernidade, da pós-modernidade, da sociedade líquida, do que quiserem os eruditos de plantão e de ocasião. Pelo menos, nós,  os três sobreviventes, continuamos lutando para provar que o passado existe e serviu de bússola às nossas escolhas. Nós acreditamos que as chocadeiras ficaram para os aviários. Nunca para a vida das comunidades.


*Sônia Carvalho de Almeida Maron é Juiza de Direrito. Presidente da Academia de Letras de Itabuna (ALITA)

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