Páginas

sexta-feira, 21 de março de 2014

       Copa do Mundo 70

                    Carlos Drummond de Andrade
I

Meu Coração no México


Meu coração não joga nem conhece
as artes de jogar. Bate distante
da bola nos estádios, que alucina
o torcedor, escravo de seu clube.
Vive comigo, e em mim, os meus cuidados.
Hoje, porém, acordo, e eis que me estranho:
Que é do meu coração? Está no México,
voou certeiro, sem me consultar,
instalou-s, discreto, num cantinho
qualquer, entre bandeiras tremulantes,
microfones, charangas, ovações.,
e de repente, sem que eu mesmo saiba
como ficou assim, ele se exalta
e vira coração de torcedor,
torce, retorce e se destorce todo,
grita: Brasil! Com fúria e com amor.


II

O Momento Feliz

Com o arremesso das feras
e o cálculo das formigas
a seleção avança
negaceia
recua
envolve.
É longe e em mim.
Sou o estádio de Jalisco, triturado
de chuteiras, a grama sofredora
a bola mosqueada e caprichosa
Assistir? Não assisto. Estou jogando.
No baralho de gestos, na maranha
na contusão da coxa
na dor do gol perdido
na volta do relógio e na linha de sombra
que vai crescendo e esse tento não vem
ou vem mas é contrário... e se renova
em lenta lesma de replay.
Eu não merecia ser varado
por esse tiro frouxo  sem destino.
Meus onze atletas
são onze meninos fustigados
por um deus fútil que comanda a sorte.
É preciso lutar contra o deus fútil,
fazer tudo de novo: formiguinha
rasgando seu caminho na espessura
do cimento do muro.

Então crescem os homens. Cada um
é toda a luta, sério. E é todo  arte.
Uma geometria astuciosa
aérea, musical, de corpos sábios
a se entenderem, membros polifônicos
de um corpo só, belo e suado. Rio,
rio de dor feliz, recompensada
com Tostão a criar  e Jair terminando
A fecunda jogada.

É gooooooooool  na garganta florida
rouca exausta. Gol no peito meu aberto
goll na minha rua nos terraços
Nos bares nas bandeiras nos morteiros
gol
na girandolarrugem das girândolas gol
na chuva de papeizinhos  celebrando
por conta própria do ar: cada papel,
riso de dança distribuído
pelo país inteiro em festa de abraçar
e beijar e cantar
e gol legal é gol natal é gol de mel e sol.

Ninguém me prende mais, jogo por mil
jogo em Pelé o sempre rei republicano
o povo feito atleta na poesia
do jogo mágico.
Sou Rivelino, a lâmina do nome
cobrando fina, a falta.
Sou Clodoaldo rima com Everaldo.
Sou Brito e sua viva cabeçada,
cm Gerson e Piazza  me acrescento
de forças novas. Com orgulho certo
me faço capitão Carlos Alberto.
Félix, defendo  e abarco
em meu abraço a bola e salvo o arco.

Como foi que  esquentou assim o jogo?
Que energias dobradas afloraram
do banco de reservas interiores?
Um rio passa em mim ou sou  o mar atlântico
passando pela cancha e se espraiando
por toda a minha gente reunida
num só vídeo, infinito, num ser único?

De repente o Brasil ficou unido
contente de existir, trocando a morte
o ódio, a pobreza, a doença, o atraso triste
por um momento puro de grandeza
E afirmação no esporte.
Vencer com honra e graça
com beleza e humildade
é  ser maduro e merecer a vida,
ato de criação, ato de amor.
A Zagalo, zagal prudente
e a seus homens de campo e bastidor
fica devendo a minha gente
este minuto de felicidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário