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sábado, 15 de março de 2014


                        Gente Pobre de Dostoievski
                          
                           (Cyro de Mattos)
             
            Dostoievski era homem da cidade, um intelectual pequeno-burguês, que possuía  uma alma espiritualista ligada à interpelação da vida sob as manifestações do bem e do  mal. Nessa dicotomia religiosa era que concebia os caminhos de uma libertação com base  no evangelho e nas visões filosóficas de um cristianismo angustiado. Segundo Otto Maria Carpeaux, “a sua obra inteira é um protesto apaixonado contra o determinismo que lhe parecia o fundamento do materialismo ateu.” (Conf. História da Literatura Ocidental, V, pág. 2532)       
         Gente Pobre, romance de estreia de Dostoievski, foi considerado o  primeiro romance social da literatura russa. O livro causou sensação no meio literário e cedo trouxe a glória ao autor, que  passou a fazer amigos com gente da alta sociedade. As obras que vieram depois de Gente Pobre foram consideradas de nível inferior: O Sósia, A Hospedeira e O Senhor Prokharttchine.
        Em Gente Pobre, os primeiros passos de um escritor com uma arte voltada para o psicologismo das camadas  inferiores transitam por entre as pulsações que exprimem a aflição e a humilhação de uma gente infortunada. Nesse romance de autor estreante   é percebido, em  nível expressivo de criação literária, uma das tônicas da ficção que Dostoievski iria desenvolver ao longo de sua obra,  associada ao que há de dramático e sofrido no curso doloroso da vida. Na inventiva do jovem romancista,  aflora o sofrimento de uns pobres diabos participando  de um cenário retirado de um dos bairros miseráveis de São  Petersburgo.
         Ficou bastante  conhecido  o que disse Dostoievski ao jovem Merejekowski, de quinze anos, que ao lhe visitar  leu seus versos: “Para escrever bem, é preciso sofrer, sofrer.” Dostoievski sempre soube que dor é vida, os outros sofriam como ele porque todos estavam na vida. Certa vez, na voz de um de seus personagens, chegou a  um desabafo quando disse que lá embaixo, na outra terra, não podemos amar senão com dor, e somente através da dor.
         Este sofrimento integral conheceu Dostoievski em longa pena de trabalhos forçados, durante os  anos  que passou  na prisão da Sibéria, quando então teve conhecimento pela primeira vez de  todo tipo de criminoso. Experimentou  nas regiões infernais do jogo, na danação das dívidas, na falência, na humilhação, na doença da epilepsia, nas desilusões de uma vida amorosa, nas verdades pessimistas  que iriam formar seu espírito inquieto e atormentado, inclinando-o, na progressão de sua obra,  às auscultações místicas, à exacerbação do  psicológico e ao credo permanente na Arte.                                    
        Gente Pobre é um romance de estrutura simples com uma narrativa também de fácil apreensão. Descreve o que são  os dias de desalento vividos pelo funcionário Makar, um homem de meia-idade, e Varvara, moça desonrada e órfã.  Dostoievski faz uso da troca de cartas entre os dois personagens para que a vida como um espelho reflita o comportamento afetivo de duas criaturas tristes,  quase na indigência. Informa assim na aparente superfície das coisas  sobre duas vidas no infortúnio,  conscientes de que o pior era  viver na incerteza, sem saber nada do que seria deles em seu estado de penúria.
        As camadas superiores na Rússia desse tempo seguiam um ritual que anunciava  as pessoas vestidas em indumentária nobre, fazendo questão que fossem notadas  seu brilho no exercício dos privilégios. Era importante nas pessoas esse brilho quando  compareciam aos grandes e pequenos  acontecimentos. Marginalidade, pobreza, força do destino determinado por Deus, sobre todos esses parâmetros, fazem com que Dostoievski realize a cortante incursão na alma humana para transmitir nas entrelinhas as profundidades de um imoralismo social.  Longe de ser  panfletário, muito menos de ter uma escrita política afastada do estético, em Gente Pobre já acontece um Dostoievski imbuído daquela percepção de que a arte se torna plena de significados quando comprometida  com as verdades essenciais da vida, combinando as feridas sociais com as atribulações da alma, Sem dor e solidão, angústia e outros males da alma,   torna-se um produto fútil, que alimenta  vaidades e faz o elogio do ornamento.     

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