Gente Pobre de Dostoievski
(Cyro de Mattos)
Dostoievski era homem da cidade, um intelectual pequeno-burguês, que possuía uma alma espiritualista ligada à interpelação da vida sob as manifestações do bem e do mal. Nessa dicotomia religiosa era que concebia os caminhos de uma libertação com base no evangelho e nas visões filosóficas de um cristianismo angustiado. Segundo Otto Maria Carpeaux, “a sua obra inteira é um protesto apaixonado contra o determinismo que lhe parecia o fundamento do materialismo ateu.” (Conf. História da Literatura Ocidental, V, pág. 2532)
Gente Pobre, romance de estreia de Dostoievski, foi considerado o primeiro romance social da literatura russa. O livro causou sensação no meio literário e cedo trouxe a glória ao autor, que passou a fazer amigos com gente da alta sociedade. As obras que vieram depois de Gente Pobre foram consideradas de nível inferior: O Sósia, A Hospedeira e O Senhor Prokharttchine.
Em Gente Pobre, os primeiros passos de um escritor com uma arte voltada para o psicologismo das camadas inferiores transitam por entre as pulsações que exprimem a aflição e a humilhação de uma gente infortunada. Nesse romance de autor estreante já é percebido, em nível expressivo de criação literária, uma das tônicas da ficção que Dostoievski iria desenvolver ao longo de sua obra, associada ao que há de dramático e sofrido no curso doloroso da vida. Na inventiva do jovem romancista, aflora o sofrimento de uns pobres diabos participando de um cenário retirado de um dos bairros miseráveis de São Petersburgo.
Ficou bastante conhecido o que disse Dostoievski ao jovem Merejekowski, de quinze anos, que ao lhe visitar leu seus versos: “Para escrever bem, é preciso sofrer, sofrer.” Dostoievski sempre soube que dor é vida, os outros sofriam como ele porque todos estavam na vida. Certa vez, na voz de um de seus personagens, chegou a um desabafo quando disse que lá embaixo, na outra terra, não podemos amar senão com dor, e somente através da dor.
Este sofrimento integral conheceu Dostoievski em longa pena de trabalhos forçados, durante os anos que passou na prisão da Sibéria, quando então teve conhecimento pela primeira vez de todo tipo de criminoso. Experimentou nas regiões infernais do jogo, na danação das dívidas, na falência, na humilhação, na doença da epilepsia, nas desilusões de uma vida amorosa, nas verdades pessimistas que iriam formar seu espírito inquieto e atormentado, inclinando-o, na progressão de sua obra, às auscultações místicas, à exacerbação do psicológico e ao credo permanente na Arte.
Gente Pobre é um romance de estrutura simples com uma narrativa também de fácil apreensão. Descreve o que são os dias de desalento vividos pelo funcionário Makar, um homem de meia-idade, e Varvara, moça desonrada e órfã. Dostoievski faz uso da troca de cartas entre os dois personagens para que a vida como um espelho reflita o comportamento afetivo de duas criaturas tristes, quase na indigência. Informa assim na aparente superfície das coisas sobre duas vidas no infortúnio, conscientes de que o pior era viver na incerteza, sem saber nada do que seria deles em seu estado de penúria.
As camadas superiores na Rússia desse tempo seguiam um ritual que anunciava as pessoas vestidas em indumentária nobre, fazendo questão que fossem notadas seu brilho no exercício dos privilégios. Era importante nas pessoas esse brilho quando compareciam aos grandes e pequenos acontecimentos. Marginalidade, pobreza, força do destino determinado por Deus, sobre todos esses parâmetros, fazem com que Dostoievski realize a cortante incursão na alma humana para transmitir nas entrelinhas as profundidades de um imoralismo social. Longe de ser panfletário, muito menos de ter uma escrita política afastada do estético, em Gente Pobre já acontece um Dostoievski imbuído daquela percepção de que a arte se torna plena de significados quando comprometida com as verdades essenciais da vida, combinando as feridas sociais com as atribulações da alma, Sem dor e solidão, angústia e outros males da alma, torna-se um produto fútil, que alimenta vaidades e faz o elogio do ornamento.
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