A Bahia Perde o Grande Artista Plástico
Sante Scaldaferri
Amigos,
Acabo de postar no Facebook esse texto,
impelido pela triste notícia do fraternal companheiro de geração, o artista
plástico Sante Scaldaferri, sentimento forte que compartilho com todos.
Abraços.
Florisvaldo Mattos
LUTO NOS CÉUS DA GRANDE ARTE BAIANA
Mal acordo, recebo a
triste notícia do desaparecimento do artista plástico Sante Scaldaferri, um dos
maiores destaques de minha geração, compondo o seu grupo nuclear com Glauber
Rocha, Calasans Neto (o Mestre Calá), Paulo Gil Soares, Fred Souza Castro,
todos hoje também saudosos, e os ainda vivos Fernando da Rocha Peres, João
Carlos Teixeira Gomes (Joca, o Pena de Aço) e o também artista plástico Ângelo
Roberto. Pessoa cordial e afável, um símbolo de amizade real, sincero e
solidário, repito aqui o entendimento que desde muito manifestei sobre Sante e
sua arte, o de ser ele o maior representante da estética expressionista
na Bahia, como pintor, desenhista e praticante de outras soluções estéticas,
inclusive virtuais. Tive a sorte de ser seu amigo e o tenho como um exemplo de
fraternidade.
Apresento meus pêsames e meu sentimento solidário de afeto a Marina, sua mulher
e companheira de toda a vida. Que o nosso querido Sante descanse em paz.
Faço minhas as sentidas e fidedignas palavras que aqui postou a jornalista e
escritora italiana Antonella Tita Roscilli, repercutindo essa triste perda para
a cultura baiana.
Aproveito para reproduzir texto que escrevi sobre ele e sua arte expressionista,
mas já numa perspectiva de transvanguardismo, publicado em edição do também
saudoso Caderno Cultural de "A Tarde", que vai abaixo, ilustrado com
fotos do querido artista e de obra sua intitulada "Mulher Pensativa".
SANTE SCALDAFERRI
TRANSVANGUARDISTA
Florisvaldo Mattos
Seja por impulso
afetivo e geracional, seja por juízo crítico quanto à obra do artista, a
personalidade de Sante Scaldaferri sempre suscitou definições. Atado por laços
de cotidiana e sincera amizade, Paulo Gil Soares viu no moço quieto, franco,
prestativo e sorridente um "coração aberto a todas as dores do mundo que
não deviam ser suas". Com olhar ativo e perscrutante de cineasta ainda por
estrear, Glauber Rocha percebeu na linguagem de sua pintura uma "cor
Bahia", que a um só tempo concentrava atmosfera, luz e "pathos
bahianos", a denotar um fundamento de raízes distante do figurativismo
decorativo de fácil transposição, síntese que, à época, de tão precisa e
inventiva, para o crítico Clarival do Prado Valladares, dispensava explicações.
Em mais de uma apreciação, Wilson Rocha viu na aparência fantástica e na visão
dramática do mundo biomórfico de Sante uma prova de "honradez
pictórica"; uma visão poderosa de artista maior "que acompanha a
aventura do homem no mundo e observa os absurdos da existência humana",
cuja deformação se impunha pela dura verdade do conteúdo, expressa por
"uma dramaticidade de acentos irônicos e brutais".
Para Ferreira Gullar, pela "atitude irreverente e corajosa", Sante
era "o boca do inferno da pintura baiana", fiel a uma arte de
desmistificação que punha "a nu todas as hipocrisias e pretensões, tanto
sociais, quanto artísticas", enquanto José Roberto Teixeira Leite
reconheceu na "dura realidade" geográfica que seus quadros espelhavam
"o severo cotidiano de muitos milhões de brasileiros". Além de
atestar "um modo próprio de organizar o universo visual", a um mesmo
tempo carregado de significações, Gullar encara os personagens de Scaldaferri,
como "saídos de uma iconografia que a cultura urbana submete e
marginaliza"; contrariamente ao belo, refinado e transcendente, apontam
para baixo, para o popular, que, na obra do artista, "se identifica com a
feiúra e a rudeza das figuras e das cenas".
Já numa clave que o desvia dos acenos da circunstância, Walmir Ayala não
titubeia em descrevê-lo como "um pintor próximo da massa, do sofrimento
indefeso dos desfavorecidos", refletindo o universo cultural de um povo,
mas, consciente das suas contradições, "onde a pobreza canta e dança nas
ruas", realizando "uma pintura que contesta a diluição provocada pelo
consumo turístico".
Eu próprio, ao deparar-me com seus vaqueiros e cangaceiros de fundas e vastas
olheiras, seus rebanhos de bois e beatos - signos que chamaria de cor-Nordeste,
projetando intensos verdes, vermelho, ocre e sépia -, recriados e tratados com
humanidade sobre tela ou madeira, tomei-os em lavra poética como
"cintilação campestre" de um universo patriarcal, que aprisionava o
tempo e colhia "a rosa alvaçã", na "pelagem do
incontemplado".
Foi justamente esta predominante fixação na figura humana, já agora construída
com elementos de deformação, decomposição e desarticulação, segundo Teixeira
Leite, "com evidentes intenções expressivas", que irá representar um
salto na arte de Sante Scaldaferri. Embora confesse, por mais de uma vez, em
depoimentos e entrevistas à imprensa, ter evitado vincular-se a escolas ou
correntes pictóricas, não resta dúvida de que o impulso e a espontaneidade com
que desde jovem abraçou a arte moderna, livrando-se das peias do receituário
acadêmico, levaram-no a descobrir a fecunda trilha da cultura popular.
Aferra-se com seriedade e responsabilidade à essência de signos populares e,
daí, a uma nova atitude artística em relação à figura - principalmente a figura
humana -, que abre seu espírito à estética do expressionismo,
tantas são as identidades com as suas propostas e intenção revolucionária de
olhar o mundo "por trás da aparência das cores" - um de seus ditames.
Assim, opta por um vocabulário plástico de deliberada simplificação, formas
reduzidas ao
essencial, corpos distorcidos, até se confrontar com certa obsessão pelo
grotesco, o satírico e o caricatural, sem com isso estar traindo – muito pelo
contrário - aquela representação do pathos baiano que Glauber Rocha de início
nele identificou.
Quanto a isto anota Teixeira Leite: "Essa tendência a pintar o ser humano
como é por dentro não permite dúvidas: Sante é um expressionista,
e sua arte, como toda arteexpressionista, resvala para a sátira e para a farsa,
para a caricatura e a imprecação". E, pela perspectiva do não convencional
e do grotesco, não se recusa a suscitar um parentesco com o alemão Hieronymus
Bosch (1450-1516), a que se poderia acrescentar o Goya dos Caprichos (1799), a
série de 82 gravuras que retrata um universo de pesadelos e ataques ferozes aos
costumes, isto é, à hipocrisia da circunstância. O crítico descreve-o como um
"pessimista incorrigível" descrente da nobreza do homem, encarando-o
"como um animal depravado e imperfeito", cujo exterior grotesco
apenas reflete o seu interior deformado pelas paixões, os vícios e
a ânsia de prazer e poder. Assim, o artista vê o ser humano no seu trânsito
social.
Nesse aspecto, há clara similitude entre o baiano e personagens de proa
doexpressionismo alemão, a exemplo de Franz Marc, na sua opção conceitual por
uma pintura animalista, sob o argumento de que a impureza dos homens que o
rodeavam não lhe despertava os verdadeiros sentimentos, pois, enquanto via só
feiúra nas pessoas, os animais lhe pareciam mais belos e mais puros, como diz
numa carta à mulher (1915), enviada do teatro da Primeira Guerra Mundial
(1914-18), na qual veio a morrer.
Embora suponha que nenhum deles "importou vanguardas estrangeiras",
nem se submeteu a modismos internacionais, não há como negar que é também pelo
visorexpressionista que o poeta e crítico de arte Theon Spanudis mira
Scaldaferri, ao unir sua arte, pela originalidade e autenticidade temáticas, à
de dois outros baianos, Rubem Valentim e Raimundo de Oliveira. No primeiro, o
misticismo e o simbolismo religioso de fundo afro-brasileiro; no segundo, o
catolicismo popular bíblico, focado na ingenuidade. "Sante se interessa
pelo povo nordestino, seus dramas, paixões e vitalidade", sublinha
Spanudis, agarrando-o pela geografia. Com variações de temas – no caso de
Valentim, o construtivismo simbólico das crenças de origem afro -, arrisco-me a
dizer que os três são tributários daquele despojamento rude e elementar de
cores fortes e saturadas, aplicadas com pincel grosso, para sugerir ou definir
figuras num espaço repleto de vibração interior, marca do expressionismo
- lógico que mais acentuado no caso de Scaldaferri, cujo parentesco artístico
na Bahia, a meu ver, o alinha com Mário Cravo e, no Brasil, com Iberê Camargo.
Sem ser um especialista, mas insistindo na tecla da codificação pictórica
doexpressionismo, que, pela violenta deformação da figura, o elemento
fisiológico, o corporal e a obsessão pelo corpo humano - e, porque não dizer,
por um ainda persistente vínculo com a cultura européia -, o aproxima da arte
de Munch, Kirchner, Egon Schiele, Heckel, Ensor e, mais recentemente, Francis
Bacon, sou tentado a ver em Sante, principalmente no que vem construindo desde
a segunda metade dos anos 80, que culmina nestas obras expostas pela Galeria
Paulo Darzé, a buscar inter-relação de sua arte com a representativa dos
movimentos de pós-vanguarda ou transvanguarda, que vicejaram, persistem e se
desdobram na Alemanha, Itália, Estados Unidos e outros países.
Não tenho dúvidas de que é nesta saga estética de ousadias figurativas que se encaixa
confortavelmente Sante Scaldaferri. A refinada afetação (roçando o excessivo e
o vulgar), o gosto por efeitos espaciais desconcertantes, a intensidade
emocional derivada das formas distorcidas, as desproporções, a maestria no
manejo das técnicas da pintura, as excitantes e eróticas alusões, a tendência à
exuberância e ao monumental, a marca de desespero e manifesto horror, a secreta
irracionalidade - enfim, toda uma arqueologia visual da transvanguarda, que,
segundo a crítica, evoca o maneirismo de Pontormo, Parmigianino, Bronzino e El
Greco, sendas do barroco, e, cogito – porque não? -, do romantismo libertário,
de Goya, e visionário, de William Blake. Pela tendência à narração insubmissa e
satírica, pejada de ironia, a habilidade e variação no uso das técnicas da
pintura, recorrendo entre outras até à
quase pré-histórica encáustica, de suportes e materiais (madeira, borracha,
pano, plástico), além da vitalidade e independência do vigoroso desenho -, com
a propositada malícia que levou Umberto Eco a vislumbrar em quadros seus
"uma sombra pop"-, vejo em Sante um artista mais identificado com a
rebeldia estética de alemães, como Georg Baselitz, Anselm Kiefer, Jörg
Immendorff. A. R. Penck, Sigmar Polke, Walter Dahn; os italianos Sandro Chia, Francesco
Clemente, Enzo Cucchi, Mimmo Paladino; os americanos Julian Schnabel, David
Salle, Cindy Sherman e, em certo sentido, por indícios mais recentes, com a
rudeza de desenho e grafismo de Keith Haring e Jean-Michel Basquiat, e outros
mais, todos legítimos representantes do que desde os anos 80 se passou a chamar
de transvanguarda, pelos laços com as vanguardas de inícios do século passado e
suplantação de seus processos e desdobramentos.
Como eles, sem se recusar até mesmo ao apelo à caricatura (afinidade possível
com o traço satírico de George Grosz), em essência, Scaldaferri pinta visões,
as suas, de um mundo torto, execrável, no seu secreto ou exposto horror.
Gostaria de reformá-lo; não podendo, escarmenta-o, denuncia, ironiza, satiriza.
Como? Pela distorção, pela vigorosa e contundente expressão do grotesco, contra
o totalitarismo subliminar da sociedade em que vive, a sua desigualdade, a
miséria explícita e invencível. Muitos se recusariam a pôr um quadro dele na
parede da sala-de-estar, não por alegada feiúra, mas por outras obsessões, uma
delas a hipocrisia.
Conheci Sante por volta de 1956 (não sou forte em datas), pela mão de Glauber
Rocha, no instante mesmo em que um punhado de jovens de mente lúcida e febril
começava a agitar o meio cultural baiano (entre os quais, além dele e GR, Paulo
Gil, Fernando da Rocha Peres, Calasans Neto, Fred Souza Castro, João Carlos
Teixeira Gomes, Carlos Anísio Melhor, Ângelo Roberto), a partir das sessões de
poesia dramatizada, levadas no auditório do então Colégio da Bahia (depois
Central), sob o mítico e lúdico nome de Jogralescas, no movimento que depois
se rotularia vagamente de geração Mapa, seguindo um hábito do tempo.
Acostumei-me, a partir daí, a conviver com este monumento de fraternidade, que
já ostentava o sorriso largo, o bigode mexicano, a barba à época acastanhada e
a luminosa e irrefreável calvície. Acostumei-me também a admirar um artista
cuja obra se afirma, em suas várias fases, na busca de horizontes mais amplos,
de essência perdurável, em conteúdo e forma, rumo à universalidade que lhe
apontam suas inquietações interiores, sua visão de mundo e suas emoções.
Acompanhei essa árdua prova de fidelidade a um sacerdócio, de incontestável
amor à arte.
Por isso, mesmo ante uma crítica mais purista, higiênica e depilada, atuante no
Rio e São Paulo, que, no dizer de Frederico Morais, exerce uma ditadura no
país, torcendo o nariz a exemplos de sinceridade e imaginação como este, de
Sante Scaldaferri, ele segue impávido seu caminho, sua devoção. E, ante tais
mostras de covardia e intencional descaso, a cada exposição, catálogo ou livro
de arte que publica, ao sair de cada um desses eventos, esse grande artista
baiano ostenta no rosto e no riso uma expressão de radiante e sonora
felicidade, que é uma lição de bravura, para a arte e para os artistas, e de
vida, para todos os que o conhecem, cuja obra não se desmerece ante nenhum
grande pintor brasileiro.
Florisvaldo Mattos é poeta e jornalista, com livros
de poesia e ensaios publicados; integra a Academia de Letras da Bahia.
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Caro Florisvaldo Mattos
Que triste notícia. Abala, como abala.
Tenho o privilégio de ser admirador da
arte desse grande artista baiano. Admiração que vem desde os idos da saudosa
Livraria Civilização Brasileira, na Rua Chile, quando o conheci.
Uma de suas generosidades para comigo está no desenho da capa que
ele fez para meus livros Os recuados, contos, segunda edição, 2014,
e Poemas da Terra e do Rio, 2015, publicados pela Editora Via
Literarum, do sul da Bahia. Ele era um artista de feitio simples,
prestativo, cordial. Solidário. Dele tenho certeza que existe o artista simples
como o homem e o homem simples como o artista.
Externo meus sentimentos à esposa do
Sante e à sua família nessa hora de grande pesar. Que descanse no jardim
da saudade e piedade, na eterna casa de Deus.
Abraços, dessa vez com tristeza.
Cyro de Mattos