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sábado, 14 de maio de 2016




                                  Machado na Cerca
                                     
                                     por Cyro de Mattos 


A casa-sede da fazenda com a pintura nova: as paredes brancas, portas e janelas amarelas. Ventilação e luminosidade invadem agora todos os cômodos, o que sempre quis o coronel Sotero Bala. Andorinhas fazem o ninho nas laterais do telhado novo. Trissam alegres  sob  a luz pura do dia.  Anos passaram, a casa-sede  ao abandono, servindo de morada  de ratos e morcegos no forro,  ninho de barata e lagartixa nas gretas. 
            Por trás da casa-sede, a chácara zelada por mãos competentes do novo capataz. O chão limpo, capinado com gosto para se achar uma moeda. As árvores frutíferas bem cuidadas, sem casa de cupim nem trilhas de formiga. A natureza ali alegre, pássaros cantando e bicando as frutas. 
            Os pastos gramados para os animais de serviço ao lado da chácara. Cinco divisões. O Ribeirão de Água Doce passa na baixa, brilha como um lagarto sob o sol de verão. Atravessa os pastos e alcança,  adiante numa curva, as roças novas de cacau. Seis barcaças e uma estufa  não  param de receber  cacau durante as colheitas, quase o ano todo.
            Descansa na rede, o peso do corpo quase tocando até o chão. Sono bom com a boca aberta e o sonho leve reconfortam corpo e alma, embalando-o  por entre vagas serenas. E o bater ritmado do coração. Charuto apagado, esquecido no piso de cimento.
            Céu alagado de luz. Periquitos chegam numa nuvem estridente, pousam nas bananeiras da chácara. A zoada acorda-o, os olhos entreabertos divisam  seres e coisas do mundo de fora. Vê primeiro os burros com a muda, amarrados pelo cabresto  aos dois moirões do terreiro. O tropeiro vigiando-os, sentado no cepo da jaqueira perto das barcaças, fumando o cigarrinho de palha. Olhos fiéis de quem sem pressa aguarda a ordem. Ouvidos atentos para qualquer ruído estranho.
            A voz roufenha ordena ao tropeiro:
           - Siga na frente, logo depois chego.
           Boceja como se quisesse sorver todo o ar  puro em volta. Antes de retornar à cidade, resolve fazer ligeira inspeção na casa-sede.  Na próxima vez que voltar à fazenda quer encontrar as coisas no mesmo lugar que deixou. Abre, fecha gavetas.  Passa os olhos com vagar sobre coisas nos móveis e cômodos. Agora que havia recuperado a casa-sede, o telhado novo, com mais cômodos, sanitário com piso ladrilhado e paredes azulejadas até a metade, não pode desfrutá-la mais alguns dias. Ter que voltar para a cidade, diacho! Também pretendia vistoriar as roças novas de cacau nas baixas. Ver os cacaueiros salpicados de flores, admirando-os sem pressa. Ficar embevecido com as árvores diante dos olhos como num jardim florido, prometendo doçuras na primeira safra,  como se antevê nos galhos arriados  com o peso dos frutos.
            A mulher tinha avisado. Neste ano de eleições seu lugar é aqui na cidade. Nada de pensar em fazer melhoria na casa-sede da fazenda, nem vistoriar as roças novas. O novo capataz não sabia cuidar das roças com zelo?  Tanto das velhas como das novas melhor do que o próprio dono. Corria um risco grande, se ficasse muito tempo na fazenda em ano de eleições. Ia enfraquecer o mando político, dando rédea larga  ao doutor Raposo Primeiro, inimigo político manhoso, o pior dos adversários. Não perde festa de casamento, aniversário e batizado para fazer discurso que empolga,comove,  desarma o coração rancoroso do vivente mais embrutecido.  Deixa escorrer a palavra fácil no melhor da festa, arrancando admirações e aplausos  no ambiente animado com a fala dele. Enterro então é um de seus momentos marcantes como orador sem igual na cidade, numa hora mais triste de todos. Em momento inspirado, as palavras que solta doídas fazem a família do morto e os presentes ensoparem o lenço com o choro derramado. Acontece até desmaios, desses que pode levar a vítima ao último suspiro, se não for socorrida às pressas. Sempre ressalta as qualidades do defunto, marido exemplar, pai generoso, cidadão honrado. Tanto emociona que só falta o falecido sair do caixão  para agradecer o palavreado afetivo, solidário, em momento indesejado, que os humanos se rendem submissos, pois nunca  conseguem desvendá-lo.  Guarda o melhor da fala para o final, afirmando com a voz trêmula que para isso fomos feitos todos nós, como o vento que passa ninguém fica nesta vida. Nascer, viver e morrer, eis na verdade absoluta o  que somos. Descansar, enfim, no jardim da piedade e saudade, mas deixar como consolo o  legado que não tem preço, ser lembrado sempre em bem-querer na saudosa memória dos que ficam no lado de cá deste mundo, nem sempre justo para muitos.
            A mulher, Benzinha, não deixa de ter suas razões. O loquaz Raposo Primeiro não vacila quando é  para conquistar mais amigos, adeptos, eleitores novos, com o único objetivo de conquistar um dia o comando da cobiçada Prefeitura Municipal de Bom Jesus do Mocambo.Quando isso acontecer, só para ele, um esperto fino,  o pedaço melhor do bolo, apenas  um pouco para a corja dos correligionários bajuladores, que causam nojo. No fundo só querem  tirar proveito do poder político, desprovidos de qualquer amor pela cidade.    E dona Benzinha, sempre vigilante, alertando-o: Veja que até os correligionários mais antigos de seu círculo político estão fugindo para o outro lado, sem motivo que justifique a atitude, a não ser o da crença de que este ano a prefeitura municipal vai ser de  doutor Raposo Primeiro. E não da pessoa  que você aponte e abone para se candidatar a prefeito,  como há anos acontece. Mas os jagunços estão com ele aí mesmo, prontos para dizerem quem é que  fala mais alto e com melhor som nestes cantos do Japará. A qualquer momento que precise, atrás como na frente, só querer e ordenar, que eles sem hesitar obedecem. Principalmente num caso de urgência urgentíssima, que se delineia agora como uma situação incontornável, a cada dia se apresentando  com sua feição nada confortável, ameaçadora, de enorme perigo. 
           

            Zé Taboca é o seu apelido. Modelo incomum de força natural, cabeça enterrada no pescoço grosso, ombros largos. Braços compridos, musculosos, mãos grandes,  calosas. Com o machado desfere golpes profundos na árvore enorme,  de tão grossa um homem não consegue abraçar, às vezes dois. Faz a  boca grande,  funda  em um dos lados,  no outro talha e sangra o tronco com machadadas que não cessam. Rosto respingado de suor, pele negra luzidia, músculos dos braços cheios de vigor. Até sentir que a árvore inclina-se aos poucos, vem sendo empurrada com  força pelo vento, um sorriso nos dentes brancos alumia o rosto bexiguento. Lá se vem rasgando os galhos das outras a árvore que tomba,  queda que estronda o chão e ecoa pela mata  como  barulho do mundo se acabando.  E o buracão no teto da mata.
            No mole ou no duro os passos seguros. Pelo caminho estreito agora, forrado de folhas que caem das arvores grandes. Bornal a tiracolo, espingarda, facão na cintura, machado na mão, lâmina sempre afiada. Pretende derrubar uma nesga de mata comprada ao carvoeiro da vila. Limpar o chão, erguer a tapera, ali viver com mulher e filhos.  Plantar roça de mandioca, construir uma casa de farinha, vender o produto na vila. A mulher vai se encarregar do criatório com bicho de terreiro.
            Desce o morro na parte de uma capoeira rala. Segue  junto ao ribeirão que corta as roças novas de cacau do coronel Sotero Bala. Daqui  a pouco alcança a estrada real, caminha nela umas duas horas até encontrar o desvio depois da lagoinha e a gameleira velha. Pouco depois do desvio chega até o pé da Serra da Onça Pintada. Sobe pelo espinhaço da serra  e lá no topo vai percorrer os marcos de pedra pontuda nos quatro cantos da nesga de mata comprada ao carvoeiro. Pensa em começar a derrubada dos paus grandes amanhã cedo.
            Ao divisar a lagoinha e a gameleira velha, interrompe a caminhada com olhos inquiridores. A estrada real fechada com uma cerca de seis fios de arame. Roceiros grampeiam o arame novo nas estacas. Seis fios impedem a passagem de qualquer pessoa,  até mesmo de bicho menor, como bezerro de poucos meses. Despropósito que não pode ser feito na estrada real.
- Quem mandou fechar a estrada com a cerca?          
- O coronel Sotero Bala.
- Merda de coronel Sotero Bala! – desfere golpes firmes com  o machado, repetidos numa fúria incontrolável.
A estrada real vem do tempo do  avô Bacabal, passagem livre de todo mundo, pensa, enquanto os roceiros recuam assustados, vendo o arame embaraçado nos pedaços de estaca pelo chão como uma coisa só.
- Ficou doido? – um com os olhos de temor, amarelados.
           - Afronta dessa o coronel Sotero Bala não engole – outro com a voz trêmula, fazendo o sinal-da-cruz no peito.           
           Veias inchadas no pescoço como cipó fino, zangado retoma os passos na estrada real. Do estômago à cabeça a raiva circula. Vento morno sopra no peito enfezado. Sua passagem assusta passarinhos  pelas margens.
           Um sol de fim de tarde ainda brilha na lagoa onde garças pescam peixinhos e sapos pequenos no trecho raso.



            As botas tiram sons fundos no assoalho da sala. Desce a escadinha do alpendre. O homem à sua frente, cabelos desgrenhados, rosto suado. Medo nos olhos.
            Numa voz forte:
           - Abra a boca e fale logo, homem, viu alguma assombração?
            - A cerca da estrada real.
           - O que aconteceu?
          - O machadeiro Zé Taboca botou abaixo. Nem ligou quando soube que a cerca na estrada real foi por ordem do coronel.
            - Façam a cerca de novo, amanhã quero conhecer esse desmiolado Zé Taboca.
             

             Os jagunços cedo  chegam  à casa-sede da fazenda,  montados nas mulas  bem tratadas, crinas aparadas, cascos com ferraduras novas,  arreios vistosos. Armados de revólver, repetição,  punhal e faca. Barbas e cabelos grandes, chapelão, lenço vermelho no pescoço. Em cada lado protegem o coronel Sotero Bala no cavalo pampa, que só ele monta. Os jagunços são oito, dois deles irmãos gêmeos, temidos até pelo resto do bando. Com que frieza e cálculo executam qualquer empreitada de morte.
            Calados seguem os cabras e o coronel Sotero Bala. Aproximam-se da cerca que os homens estão erguendo pela segunda vez. Apressam  as montarias quando avistam  um negro alto e forte, caminhando sozinho pela estrada. Ele está vindo na direção da cerca, os passos ligeiros, quase correndo.
            De novo os olhos inquiridores de Zé Taboca circulam pela cerca;  de novo está sendo feita por ordem do coronel Sotero Bala. O branco dos olhos anuvia, o corpo estremece incontido de raiva. Frente a frente dos jagunços,   estes com as armas engatilhadas. Careta medonha, numa grande raiva, torce o rosto cor de carvão.  Fúrias invisíveis apossam-se do corpo. Suspende e desce o machado. Funga com as narinas acesas de ódio, espuma e resmunga. Diabo de coronel Sotero Bala,  que a ele não amedronta. Cospe com violência, passa a mão nos olhos que ardem, vai derrubando, uma a uma, todas as estacas. Corta os arames.
             Os jagunços impacientes, à espera da ordem para que detonem uma saraivada de balas, enviando o mais rápido aquele negro desmiolado para as profundas do inferno,  acabando assim  com a afronta descabida, dardejando nos olhos incrédulos do coronel Sotero Bala. Encolhido na sela do cavalo, não acreditava  no que acaba de ser visto.   As sobrancelhas espessas franjam-lhe a testa. “Um homem corajoso como esse não merece o destino de machadeiro” , pensa.
            Para o jagunço mais perto dele:
           - Contrate o homem para ficar do nosso lado.
            Os jagunços não chegam a compreender o que fez o coronel Sotero Bala deixar de dar a ordem para que eles detonassem as repetições e acabassem com tamanha afronta acontecida ali mesmo.
       Atrás, um deles permanece na conversa mansa com Zé Taboca como  se fossem velhos conhecidos. O assunto não deixa de ser interessante, o machadeiro acha até graça.

·        Cyro de Mattos é escritor e poeta. Membro do Pen Clube do Brasil, Academias de Letras da Bahia, de Ilhéus e de Itabuna. “Machado na Cerca”  pertence

ao livro O Velho e o Velho Rio, contos e novelas, no prelo da Editora Escrituras (SP).

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